segunda-feira, 20 de outubro de 2014

QUEM MESMO DILMA VÊ DIANTE DE SI?



É possível imaginar situação de maior degradação do que a relação entre torturador e torturado?
Se quiserem passar ao largo da realidade política brasileira dos anos recentes, busque o caso de tortura mais repetidamente narrado da história da humanidade: a paixão de Cristo.
Lembrem da caminhada com a cruz ao ombro e os pés descalços, das chibatadas, da perfuração de pés e mãos durante a crucificação, de fazer o corpo se sustentar nos cravos, da lancetada no peito. Imagine o sangramento da pele a se colar no manto que o cobria. Não lhe foi apenas imposto o sofrimento físico. Foi coberto com um manto por ter sido antes desnudado. Foi ridicularizado, sendo-lhe colocada uma coroa de espinhos para provocar o riso da multidão. Foi-lhe dado fel quando disse ter sede e foi pregada na cruz a inscrição injuriosa de rei dos judeus. Assim teria sido o último dia de Jesus.
Passados cerca de dois mil anos, dá pra imaginar a que extremos de sofisticação chegou a tortura. Relatos nos chegam de todo o mundo, mais marcantes e profusamente lembrados os perpetrados pelo regime nazista contra os seus opositores, os comunistas ou judeus, ciganos, poloneses e todos os que tenham caído em desgraça.
Não foi diferente durante a ditadura do Brasil, especialmente na primeira metade dos anos 70.
Sei o quanto foi duro tomar conhecimento do que sofreram amigos, companheiros de luta, conhecidos ou quaisquer outras vítimas desse processo. É ainda hoje quase insuportável ouvir ou ver depoimentos de quem passou por isso. Para que não pareça um sentimento diante do padecimento de amigos, sofri recentemente a dor de alguém socialmente muito distante de mim e por quem não tenho qualquer afetividade, a jornalista Mirian Leitão. Ao ler seu relato, doeu-me a aflição de um ser humano.
Ao contrário do que consta na narrativa cristã, a tortura aplicada a militantes políticos no Brasil tinha teoricamente o objetivo de obtenção de informações. Por isso, ainda mais sofisticada. Torturadores eram treinados, inclusive com apoio externo. Belo Horizonte chegou a ter um logradouro batizado como Rua Dan Mitrioni, uma demonstração de gratidão a um “especialista” trazido dos Estados Unidos para aperfeiçoar os métodos de tortura.
É importante entender o comportamento do corpo após algum tempo de pau de arara, que é uma invenção nacional. O mínimo que se pode dizer é que a dormência toma conta dos membros, o sangue se concentra na cabeça e já não se consegue fechar a boca. Pense na cadeira de dragão, energizada para provocar choque elétrico em diferentes partes do corpo, imagine o afogamento, às vezes por mergulho, em outras com um pano embebido em água. Ou a variante com um saco plástico fechado envolvendo a cabeça. Ou a asfixia, como morreu Stuart Angel, obrigado a respirar a descarga de um jipe. Surras, quebras de dedos e membros, extração de unhas, submissão à fome e à sede.
Ao lado disso tudo, a tortura psicológica, somada à física. Como teria sido feito com Jesus, a primeira providência era o desnudamento do preso. Isolamento, inclusive com a perda de acesso à luz, de modo a que o preso não tivesse mais noção de tempo.
O MACHISMO COMO INSTRUMENTO DE TORTURA
Nos casos de prisioneiras, a violência era sempre acompanhada de exacerbação da humilhação, inclusive com apelo ao sexo forçado ou a demonstração de que isso poderia ocorrer a qualquer momento. Uma forma de demonstrar que, ali, além do poder irrecorrível da força brutal da repressão, havia a submissão antropológica da mulher pelo homem. Quanto mais isso angustiasse a vítima, melhor. A raiva acumulada pela circunstância levaria a prisioneira mais facilmente ao desespero, ao mais absoluto desequilíbrio emocional.
Por isso a prisão simultânea de parentes ou entes queridos e sevícias de um diante do outro, até a introdução de objetos nos corpos. Enfim, a busca do aniquilamento de toda resistência física ou moral.
É indispensável chamar a atenção para o fato de que se pretendia obter informações, sendo óbvio para o prisioneiro que, caso se fragilizasse, poderia causar a morte de companheiros ou pelo menos levá-los a viver o mesmo vexame. A tortura psicológica ocorria com a utilização dos interrogadores com papeis diferenciados. Ao lado de um extremamente violento, havia o que simulava solidariedade, buscava angariar a confiança do interrogado, prometia alívio.
Posso assegurar que toda essa rememoração do que li e ouvi é pouco diante do que realmente ocorreu nos presídios em que eram jogados os presos políticos. Não conheço ninguém que saísse íntegro, sem precisar recorrer a tratamentos psiquiátricos, a cuidados médicos especiais. Muitos jamais se recuperaram, como Luís Medeiros, jovem estudante de engenharia pernambucano, preso por jagunços e entregue à polícia após horas de espancamento, pendurado de cabeça pra baixo. Na Rua da Aurora (Recife), para onde foi removido, diariamente torturado, acabou não resistindo à tentação de saltar por uma janela aberta. Paraplégico, terminou seus dias em Brasília. A Dra. Abigail Feitosa, ginecologista, de tradicional família nordestina, aderiu à resistência à ditadura, sensibilizada pelas sequelas que viu e tratou a pedido de seu marido, Ribamar, militante de esquerda. Posteriormente, viria a se tornar deputada federal, com importante presença na bancada que lutou para superar a ditadura. 
OS PERFIS DOS DOIS FINALISTAS
Para que remexer em tudo isso, lembrar um passado tão revoltante, hoje felizmente superado?
É impossível deixar de identificar os protagonistas deste segundo turno, ambos originários de Minas Gerais, sem levá-los àquele terrível período da história recente do Brasil.
De um lado, Dilma Rousseff, uma ex-militante de esquerda, prisioneira por três anos, barbaramente torturada. Conseguiu reconstruir sua vida no Rio Grande do Sul, lá se graduou, aperfeiçoou a sua formação e, com ela, voltou à política, ascendendo em funções técnicas no aparelho de Estado, até se eleger presidente da República.
O adversário prefere ser lembrado como neto de Tancredo Neves. Seria injusto deixar de trazer à luz sua trajetória, para que ninguém o tenha como um lutador da resistência democrática, ainda que de figurino conservador, como o de Ulysses Guimarães.
Tancredo integrou o antigo PSD, foi ministro duas vezes durante o governo democrático de Getúlio Vargas, teve papel decisivo na crise de 1961, quando uma tentativa de golpe militar pretendeu impedir a posse de João Goulart após a renúncia de Jânio Quadros. Foi um dos articuladores da saída parlamentarista e acabou se tornando o primeiro ministro até 1962. Durante a ditadura, foi deputado pelo MDB, sempre ligado à ala mais conservadora. Tentou ocupar o terreno da conciliação com o regime quando da imposição de criação de novos partidos. Criou o PP, mas os militares não aceitaram sequer correr o risco de deferir um espaço ao seu partido, forçando-o à incorporação pelo PMDB. Frustrada a emenda com que se pretendia reinstaurar eleições diretas para a Presidência, Tancredo colocou-se como alternativa para a disputa no colégio eleitoral, derrotando o candidato Paulo Maluf. Não chegou a governar, vítima de doença que impediria a sua posse. Com esse episódio, Tancredo passou para a história como um dos principais artífices da redemocratização.
Aécio Neves, convenientemente, destaca essa descendência, colocando em segundo plano a figura do pai, o deputado Aécio Cunha, integrante destacado do partido que representava a ditadura no Parlamento, a ARENA. Quando Dilma amargava a prisão política, ele ocupava um cargo no gabinete do pai. O gabinete era em Brasília e o pai da bancada de Minas Gerais, mas Aécio vivia e estudava no Rio de Janeiro.
Aécio nasceu e se criou em um ambiente em que se respirava política nos dois ramos da família, o pai nas entranhas da ARENA e o avô como importante membro do PMDB, prestigiado por interlocução constante com expoentes do regime. Debruçado nessa destacada janela, podia observar com atenção o que se passava nas hostes governistas e testemunhar a perseguição aos adversários.
O privilégio dessa posição no cenário político foi ingrediente fundamental para a sua carreira: deputado, governador, senador, candidato a presidente. É toda essa carga de experiência que coloca em jogo na disputa.
AS ARMAS DE CADA UM
Especialmente no segundo turno, algo me impressiona ao ver Dilma e Aécio encarando-se nos debates. Quatro anos após eleger-se para o primeiro mandato, percebo Dilma com muito mais informação e capacidade de articulá-las ao debater com Aécio que na disputa anterior. Paradoxalmente, vejo nela agora certo abalo emocional que não revelava ao confrontar José Serra, por sinal um político com muito mais quilometragem que Aécio.
Aécio não é mais que um fedelho diante de Serra, Dilma tem clara noção da superioridade de seus conhecimentos e de sua argumentação, além de que já teve nos debates do primeiro turno oportunidade suficiente para constatar a falta de conteúdo do adversário.
O que incomoda Dilma, a ponto de desestabilizar o seu emocional?
Cada um de nós se dá o direito de opinar sobre o que ela deveria fazer para pôr o oponente em seu lugar. Afinal, em política, como em futebol, qualquer um se sente à vontade para sentar na cadeira do técnico e dar o seu pitaco.
Caso estivesse na equipe que a prepara para os debates, eu não teria dúvida: buscaria apoio psicológico, promoveria sucessivos laboratórios colocando-a diante de um personagem que assumisse o papel de um torturador debochado, aquele que ocupava o espaço de desestabilizar emocionalmente a prisioneira política, ferindo-a moralmente, impondo a superioridade pela força e pela falta de escrúpulos.
Só isso explica, para mim, que Dilma não reduza Aécio ao seu verdadeiro tamanho e, mais, revele certa angústia por ter de enfrentá-lo. Suspeito que Dilma veja nele a figura daquele torturador desprovido de limites morais. Mais que isso, não estou certo de que, sabendo o que foi o passado dela, Aécio não tenha sido preparado justamente para desestruturá-la emocionalmente, usando de tais artifícios. Afinal, seria essa a única forma de não evidenciar a sua própria inferioridade.
Fernando Tolentino

5 comentários:

  1. Gostei muito Tolentino. Vou compartilhar para divulgação. Parabéns! Texto muito bom, com motivação histórica.

    ResponderExcluir
  2. Fernando Tolentino, seu ótimo artigo faz importantes considerações históricas e políticas e ressalta algo extremamente pertinente: o perfil psicológico e o histórico dos dois candidatos e o comportamento de ambos no enfrentamento dos debates .Tenho observado em todos eles, o estilo AGRESSIVO de Aécio Neves, o qual utiliza de um artifício extremamente autoritário em sua fala, "CENSURANDO a PRESIDENTE , quando esta lhe apresenta dados oficiais, fazendo o incauto telespectador ser levado a concluir que o candidato mais forte é o que "bate" no adversário, e neste caso, um home batendo numa mulher! Causa-me muita repugnância assistir estes debates entre os dois e , depois de ler seu importante artigo, compreendi melhor o por quê..Não é a qualidade nem o conteúdo do discurso que diminui Dilma ante a platéia e sim a a face OPRESSORA e AGRESSORA de seu interlocutor...

    ResponderExcluir
  3. Texto incrível, sensível e perspicaz. Não duvido nada que esse pessoal maldoso da turma do moço tenha programado esse ar de deboche e machismo pra lembrar nossa presidente das torturas que ela viveu sim.
    Nos resta esperar que ela o esmague, a ele e a tudo que ele representa.
    Dilma é muito polida, humana... Mas tem que arrasar com esse "tucanoboy" no debate! (Vai arrasar tbém através de sua reeleição e de seu sucessivo governo- este se Deus quiser!)

    ResponderExcluir
  4. Excelente texto. Nos debates tenho sentido essa impressão das salas de tortura que você bem colocou aqui. Esse texto deve ser amplamente divulgado. Abraços e Parabéns.

    ResponderExcluir
  5. Fernando, li com muito gosto seus três últimos textos. Não tinha ainda acessado o seu blog. Fiquei bastante feliz com a consistência das informações e da sua qualidade, o que aliás, não é novidade. Curiosamente quando vi os últimos debates, a sensação que tive foi parecida com a que vc descreve no seu artigo. A desestabilidade de Dilma diante da frieza, do cinismo e das injúrias arquitetadas pelo seu algoz Aécio, foi como se estivesse rebobinando um filme de terror que ela gostaria de ter apagado definitivamente da sua memória.
    Felizmente, para a felicidade de muitos, a verdade prevaleceu e o Brasil se soergueu com Dilma reeleita.

    ResponderExcluir