sexta-feira, 29 de julho de 2011

IMPRENSA: DIREITO E RESPONSABILIDADE


A aula do professor Dalmo Dallari (porque se trata de uma verdadeira aula), até parece tratar de obviedades porque passam a impressão de óbvias as verdades fundamentais.
A partir da discussão das peripécias de Rupert Murdoch, o texto discorre sobre questões muitas próximas da realidade que vivemos todos os dias em nossas relações com a mídia nacional.
O artigo deveria estar ao alcance dos olhos de todos os editores de meios de comunicação brasileiros.

IMPRENSA: DIREITO E RESPONSABILIDADE

A liberdade de expressão é um dos direitos fundamentais da pessoa humana proclamados pela ONU em 1948, sendo enfaticamente referida no artigo 19 da Declaração Universal dos Direitos Humanos, onde se diz que “toda pessoa humana tem direito à liberdade de opinião e expressão, incluindo-se nesse direito a liberdade de, sem interferências, ter opiniões e de procurar, receber e transmitir informações e ideias por quaisquer meios e independentemente de fronteiras”.

Para reforço da eficácia jurídica desse direito, e também para deixar expressa a existência de limitações que podem ser consideradas legítimas, bem como para ressaltar que o exercício desse direito implica deveres e responsabilidades, a ONU estabeleceu algumas regras básicas sobre o exercício da liberdade de expressão no Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos, aprovado em 1966. No artigo 19 do Pacto, que está em vigor no Brasil, com força de lei, desde 24 de janeiro de 1992, dispõe-se que o exercício desse direito implicará deveres e responsabilidades especiais, acrescentando-se que ele poderá estar sujeito a certas restrições, “que devem ser expressamente previstas em lei e que se façam necessárias para assegurar o respeito dos direitos e da reputação das demais pessoas, ou para proteger a segurança nacional, a ordem, a saúde ou a moral públicas”. Assim, pois, a liberdade de expressão, aqui incluída, obviamente, a liberdade de imprensa, é um direito fundamental e como tal deve ser assegurado e protegido, mas jamais poderá ser invocado como justificativa ou pretexto para a prática de atos que ofendam outros direitos.

Direito da cidadania


Como tem sido muitas vezes proclamado em documentos internacionais, e é expressamente consagrado na Constituição brasileira, a liberdade de imprensa faz parte do aparato essencial do Estado Democrático de Direito. É de interesse de todas as pessoas e de todo o povo que essa liberdade seja respeitada, mas é absolutamente necessário que ela seja concebida e usada como um direito da cidadania e não como um apêndice do direito de empresa ou como privilégio dos proprietários e dirigentes dos meios de comunicação, ou, ainda, dos jornalistas e demais agentes que atuam no sistema. Fazem parte dessa liberdade o direito e o dever de respeitar as limitações legais e de informar corretamente, o que implica fazer a divulgação de fatos verdadeiros, sem distorções, com imparcialidade e também sem ocultar fatos e circunstâncias que são de interesse público ou necessários para o correto conhecimento do que for divulgado.

Essas considerações tornam-se oportunas neste momento em que um farto noticiário da imprensa informa sobre tremendos desvios éticos, implicando ilegalidades de várias naturezas, praticados sob o comando de um famoso proprietário e dirigente de um poderoso sistema de comunicações, incluindo jornais ingleses de grande circulação e tendo ramificações em muitos outros países.


Abusos de um poderoso

Pelo que já foi divulgado, esse personagem, o australiano Rupert Murdoch, estabeleceu sua base na Inglaterra e, ignorando barreiras éticas e legais, tornou-se verdadeiro chefe de quadrilha, desenvolvendo um conglomerado de “imprensa investigativa”, organizando um sofisticado sistema de invasão de aparelhos de comunicação e de registro de dados confidenciais. E isso vem sendo utilizado há muitos anos para a ampliação de seus negócios, publicando informações escandalosas e confidenciais, conquistando um grande público e, naturalmente, atraindo grande volume de publicidade e também a cumplicidade de grandes empresários.

Levando ainda mais longe o abuso da liberdade de imprensa, Murdoch invadiu também a intimidade de pessoas e famílias, inclusive determinando que seus agentes fizessem a interceptação das comunicações telefônicas da própria família real inglesa, o que foi descoberto e levou um deles à prisão. Mas desse modo, valendo-se do controle de uma grande rede de jornais e penetrando também na televisão, Murdoch acabou criando um aparato de intimidação que lhe deu a possibilidade de exercer muita influência na vida política inglesa, pois, como tem sido noticiado, ele colocou agentes em postos-chaves do governo e assim até mesmo os ocupantes do mais alto posto de governo da Inglaterra, que é o cargo de primeiro-ministro, passaram a temer seu corrupto sistema de imprensa.


Poder implica papel social


Os fatos ocorridos agora na Inglaterra devem servir de advertência. O extraordinário crescimento dos meios de comunicação e de seu potencial de influência social já tem levado a liberdade de imprensa a ser usada como instrumento da corrupção, a serviço dos interesses empresariais e também políticos, ou de ambos conjuntamente. Não há dúvida de que modernamente a imprensa livre é requisito essencial para a existência de uma sociedade livre e democrática, mas o gozo dessa liberdade implica uma responsabilidade social, sobretudo tendo em conta a enorme influência que a imprensa exerce sobre a população. Transmitindo informações, a imprensa pesa muito na formação das convicções e pode ter um papel fundamental tanto para a consagração de posições favoráveis à dignidade e aos direitos fundamentais da pessoa humana, quanto para o estabelecimento e a alimentação de preconceitos, de atitudes discriminatórias ou para a imposição e manutenção de graves injustiças na organização da sociedade e nas relações entre os seres humanos.

A imprensa deve ter o direito de ser livre, a fim de que possa manter o povo informado de todos os fatos de alguma relevância para as pessoas e a humanidade, que ocorrerem em qualquer parte do mundo, sem reservas ou discriminações. Na sociedade contemporânea são muitas as atividades, às vezes de grande importância para muitas pessoas ou para grupos humanos, que dependem de informações corretas, atualizadas e, quanto possível, precisas, cabendo à imprensa um papel relevante no atendimento dessa necessidade social. Bastam esses pontos para se concluir que as tarefas da imprensa configuram um serviço público relevante. E por isso a Constituição proclama e garante a liberdade de imprensa como direito fundamental.

Deveres, não privilégios


Mas é absolutamente necessário ter consciência de que esse direito e essa garantia não são outorgados como um favor ou privilégio aos proprietários dos veículos de comunicação de massa ou aos jornalistas e demais participantes do sistema, mas têm sua justificativa precisamente no caráter de serviço público relevante, da imprensa. Dos mesmos fundamentos que justificam o direito e a garantia de liberdade decorre o dever de informar honestamente, com imparcialidade, sem distorções e também sem omissões maliciosas, sem a ocultação deliberada de informações que possam influir sobre a formação da opinião pública. Assim, a liberdade de imprensa enquadra-se na categoria de direito/dever fundamental para a existência de uma sociedade livre, democrática e justa.

Dalmo de Abreu Dallari é jurista e professor emérito da
Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (Observatório da Imprensa)

quarta-feira, 13 de julho de 2011

PROPRIEDADE CRUZADA: LÁ E CÁ



Um Tribunal Federal de Apelações, na Filadélfia, derrubou, no último dia 7 de junho, a decisão da agência reguladora das comunicações nos EUA que permitia a um mesmo grupo de mídia aumentar o número de jornais e emissoras de radiodifusão sob seu controle, em uma mesma cidade.

Embora a decisão não tenha considerado o mérito, mas o procedimento que excluiu as audiências públicas determinadas por lei, um Tribunal Federal de Apelações (The United States Court of Appeals for the Third Circuit) , na Filadélfia, derrubou, no último dia 7 de junho, a decisão da Federal Communications Commission (FCC) – a agencia reguladora das comunicações nos Estados Unidos – que permitia a um mesmo grupo de mídia aumentar o número de jornais e emissoras de radiodifusão sob seu controle, em uma mesma cidade.

Além de decidir que devem ser mantidos as limitações à propriedade cruzada, o Tribunal determinou que a FCC encontre formas de garantir o controle da mídia por mulheres e grupos étnicos [cf. http://www.nytimes.com/2011/07/08/business/fcc-cross-ownership-rule-is-overturned.html].

Propriedade cruzada nos EUA

As regras que restringem a propriedade cruzada no setor de comunicações nos EUA estão em vigor desde o Radio Act de 1934. A norma original proibia que nenhum grupo que controlasse emissora de rádio e/ou televisão poderia também ser dono de um jornal no mesmo mercado.

A mais recente “flexibilização” dessas regras havia sido estabelecida pela FCC em 2008 e considerava os índices de audiência das emissoras e o número de veículos independentes [que não faziam parte de uma rede/network] já existentes no mercado. Essa “flexibilização” só era válida para as vinte maiores áreas de mercado dos EUA (210 no total) e apenas, no caso de canal de televisão, se a emissora não estivesse entre as quatro de maior audiência e, ainda, se restassem, pelo menos, outros oito veículos independentes [cf. http://www.direitoacomunicacao.org.br/content.php?option=com_content&task=view&id=7514].

Após protestos generalizados de organizações da sociedade civil, a “flexibilização” foi derrubada pelo Congresso americano e, agora, também pela Justiça.

E no Brasil?

Na Terra de Santa Cruz não existe agencia reguladora para a radiodifusão (nada sequer parecido com a FCC). Nem qualquer controle sobre a propriedade cruzada da mídia. Decisão judicial que determinasse à autoridade competente outorgar concessões de rádio e televisão para “mulheres e grupos étnicos”, por óbvio, seria considerada “censura judicial” e/ou uma interferência indevida no mercado.

Em fevereiro pp. comentei nesta Carta Maior a posição do Grupo RBS que considera o controle da propriedade cruzada superado pela “convergência de mídias”, além de “ranço ideológico”, “discurso radical que flertava com o autoritarismo”, “impasse ultrapassado” e “visão retrógrada” [cf. http://www.cartamaior.com.br/templates/colunaMostrar.cfm?coluna_id=4948 e http://www.cartamaior.com.br/templates/colunaMostrar.cfm?coluna_id=4964].

Diante da decisão do Tribunal Federal de Apelações da Filadélfia, nos EUA – referência de liberdade e democracia – seria interessante saber se um dos grupos de mídia que mais se beneficia com a total ausência de controle à propriedade cruzada no Brasil mantém sua posição.

A ver.


Venício A. de Lima é Professor Titular de Ciência Política e Comunicação da UnB (aposentado) e autor, dentre outros, de Regulação das Comunicações – História, poder e direitos, Editora Paulus, 2011. Publicado originalmente pela Carta Maior (DEBATE ABERTO).