sexta-feira, 13 de março de 2015

DE QUE LADO VOCÊ ESTÁ?



É quase chover no molhado lembrar que a eleição de 2014 foi uma guerra.
Depois de eleições concorrenciais em que Lula foi derrotado (1989, 1994 e 1998) e na que ganhou para José Serra (2002) e surpreendeu as classes abastadas do País, foram assim todas as que se seguiram: a da reeleição de Lula (2006), em que se tentou “sangrá-lo” durante três anos; e a da eleição de Dilma (2010), de que vale lembrar o jocoso episódio do atentado em que Serra teve que ser socorrido após ser vitimado pelo arremesso de uma bolinha de papel.
É compreensível. Não dá pra dizer que fossem eleições em que explicitamente se enfrentaram classes sociais, mas assim foram vistas pelos segmentos endinheirados da sociedade. Afinal, era simbólico que enfrentassem um candidato egresso do operariado e da luta sindical, um ex-retirante, sem formação superior. Na sua sucessão, uma ex-guerrilheira, ex-presa política e, como agravante, uma mulher. Não era só isso, esses candidatos traziam a marca do Partido dos Trabalhadores, tinham o apoio dos movimentos sociais mais mobilizados e empunhavam um programa de mudanças, ainda que não radical.
 Se isso já era suficiente para alarmar os grupos que se beneficiam do Estado desde 1808 (em alguns casos desde 1500), insuportável era ver a liderança do Poder Executivo permanecer em mãos de militantes do PT durante 12 anos. Mesmo que o arranjo de forças políticas que os sustentassem não tenham permitido que se pusesse um fim na drenagem de recursos públicos em favor dessas classes.
 A antevisão de mais quatro anos com Dilma Rousseff, fechando um ciclo de 16 anos e abrindo espaço para outros tantos, era o suficiente para levar à beira do infarto esses setores dominantes da sociedade.
Basta lembrar alguns detalhes. A cúpula do Poder Judiciário estará renovada, pouco restando da herança do período anterior. O novo período de governo poderia permitir que o PT ingressasse no fechado clube do Tribunal de Contas da União. Abria-se espaço para uma consolidação dos movimentos sociais, que poderiam ganhar condições de maior influência nas políticas públicas. Esse longo tempo de governos sob a direção política do PT tenderia a transformar em irrevogáveis os seus vários programas de distribuição de renda e seria fatalmente moldado um novo desenho na sociedade brasileira. Talvez mais do que tudo isso, um governo sob a liderança petista faria a condução da exploração do Pré-Sal, colocando a Petrobras e o Brasil no grupo dos grandes produtores de petróleo do mundo. Não bastante, o novo governo seria eleito com o resgate de bandeiras muito caras à esquerda brasileira, como a reforma política (com financiamento exclusivamente público de campanhas) e a regulamentação da mídia.
Na retaguarda dessas classes abastadas do Brasil, está a sombra da política hegemonista dos Estados Unidos. Não é apenas o Brasil que tem um governo identificado com teses de esquerda na América Latina. Já estão neste campo a Bolívia, o Uruguai, a Venezuela, a Argentina e mais recentemente o Chile, para não falar de países de menor potencial econômico e militar. Aos olhos estadunidenses, o Brasil surge como um fiador político da manutenção da democracia nesses países.
É pouco? Lembre-se que o Brasil passou a integrar, no período petista, o grupo de países efetivamente emergentes, já se situando como sétima economia mundial e a caminho de subir novos degraus nesse ranking. Com uma política externa independente, articula-se com os outros países que realmente crescem no mundo (China, Índia, Rússia e África do Sul) e constitui o BRICS, um bloco que ameaça a hegemonia dos Estados Unidos e o próprio dólar como padrão monetário internacional.
O Brasil, com o PT, revela-se cada vez mais como um país que fala alto no cenário internacional. Pior, sua articulação com aquelas potências emergentes e a postura solidária com diferentes blocos de países menos desenvolvidos leva a que eles sintam-se em condições de se apresentarem nos fóruns internacionais com os peitos inflados e os narizes erguidos.
COMO SE MUDA UM RESULTADO
Ninguém pode esquecer a decisão absolutamente insólita da Veja de antecipar em três dias o lançamento da edição que circulou pouco antes do segundo turno, com uma capa cuidadosamente desenhada para influir no resultado eleitoral. Uma denúncia alarmante, a que não se teria como responder tempestivamente, baseada em uma informação que jamais veio a se confirmar. A de que Dilma e Lula teriam sido citados na delação premiada de presos envolvidos em corrupção na Petrobras. A “verdade” da Veja foi intensamente repercutida na grande mídia brasileira, especialmente nos veículos do grupo Globo. No domingo da eleição, a capa da revista, reimpressa aos milhões, foi distribuída em várias capitais. Foi como a multiplicação por mil megatons do episódio da filha que Lula teria rejeitado, em 2002. Uma armação recentemente confessada por seu autor.
Nem esqueçam que não ficou nisso. No dia da eleição, as emissoras de rádio de quase todo o País repetiram insistentemente o boato matreiramente veiculado em redes sociais de que o denunciante citado pela Veja, ainda que preso, teria sido envenenado pelo PT.
Quantos por cento dos eleitores teriam sido contaminados por essas duas ondas de mentiras? Avalia-se que não menos de oito por cento dos eleitores de São Paulo, o contingente de maior número no Brasil.
Ao se aproximar o fim da apuração, Aécio Neves chegou a reunir seus cardeais, entre outras celebridades, e teria havido uma comemoração precoce, desmentida pelo resultado final. No mínimo o portal UOL chegou a publicar a sua vitória.
Ninguém imaginava que fosse diferente, em uma eleição tão ideologicamente polarizada quanto aquela. Dilma fez a disputa ornamentada por uma sopa de letrinhas: PT, PMDB, PSD, PP, PR, PROS, PDT, PCdoB, PRB. O primeiro turno teve dez concorrentes, dos quais sete saltaram para o palanque de Aécio no segundo turno. A única exceção foi Luciana Genro, que não apoiou Dilma, mas seu partido recomendou que não se votasse em Aécio.
Somente a soma dos votos obtidos por Marina Silva no primeiro turno já davam a Aécio a expectativa de mais de 57 milhões de votos, cerca de 6 milhões a mais do que realmente teve. O que se viu, no entanto, mesmo enfrentando toda essa unidade dos opositores e o exacerbado (e nem sempre ético) respaldo da grande mídia, foi Dilma dar um pulo, de 43.253.800 para 54.483.045. Mais de 11 milhões de votos, representando cerca de 10% dos eleitores.
E daí? A estreita diferença de votos permitiu que se instalasse o mantra na grande imprensa de que o Brasil saíra dividido da eleição. Não faltou quem traçasse linhas divisórias entre as regiões e buscasse responsabilizar programas sociais pela vitória de Dilma, mesmo as evidências desmentindo tais análises.
As semanas seguintes viram ódio escorrer de olhos e lábios de eleitores idiotizados pelo nível em que se fez a campanha aecista e pelo estímulo à atitude preconceituosa insinuada pela grande mídia.
O DNA golpista da candidatura de Aécio Neves não esperou para se manifestar. O PSDB tentou questionar a contagem dos votos e, como não conseguisse nada, tentou impugnar o resultado.
ONDE SURGE O GOLPISMO
Essa postura e o resultado mais estreito que em derrotas anteriores estimularam duas vertentes de inconformismo. Um grupo resolveu simplesmente melar o jogo e, de uma tentativa inicial de questionar o resultado, partiu para uma campanha pura e simples de derrubar a presidenta da República. Lançou a campanha do impeachment, esgrimindo falsamente o que constaria de delações premiadas que a grande mídia passou a dar como ocorridas. A insistência foi tamanha que de nada adiantou a abertura da verdadeira lista de políticos citados pelos presos. Há sete petistas e sete pemedebistas, ao lado de 32 políticos do PP, além de um do PTB e um do PSDB.
Não consta qualquer menção a Dilma ou mesmo a Lula e, paradoxalmente, constava o de Aécio, retirado por ponderação do procurador geral, por se tratar de denúncia relativa a episódio de outra estatal. Por outro lado, as denúncias evidenciam que o processo teria se originado no governo de Fernando Henrique, do PSDB. Mais, que a roubalheira teria sido viabilizada por decisão de seu governo, quando eximiu a Petrobras de fazer aquisições passando pelo filtro da Lei de Licitações.
SÓ SE VÊ O QUE SE QUER
Nada disso adianta. Não se quer fatos, mas resultados. Ou seja, anular a eleição de 2014.
O outro grupo já não se prende à eleição de 2014. Tenta antecipar a disputa de 2018, abrindo claramente o jogo de que pretende “fazer Dilma sangrar” durante os próximos quatro anos. Em outras palavras, não permitir que ela governe. Esse grupo aproveita o fato de que o resultado obtido por Dilma ficou muito distante das eleições legislativas.
Aquela sopa de letrinhas desenhou-se de forma totalmente diferente nas eleições estaduais e grande parte das legendas que nominalmente apoiavam Dilma, juntaram-se a candidatos adversários do PT em nível regional.
Em um pleito mais marcadamente influenciado pelo poder econômico que em quaisquer dos anteriores, elegeram-se composições nitidamente conservadoras para a Câmara dos Deputados e para o Senado. Ou seja, Dilma tem uma base de apoio aparentemente forte, se olhada pelas plaquetas de partidos levantadas pelos parlamentares. E assim, por sinal, é compelida a retalhar a composição dos cargos de governo. Mas não conta com essa sustentação para as medidas que precisa aprovar.
A fragilidade dessa base se torna muito maior se ela for mantida no canto do ringue, constantemente ameaçada de perda do mandato.
No meio desse lodaçal de políticos fisiológicos e vinculados a poderosos grupos econômicos, está uma grande quantidade de parlamentares disposta a usar essa fragilidade de apoio para mercadejar interesses inconfessáveis.
O QUE ESTÁ REALMENTE EM JOGO
É nisso que crê a grande mídia. É essa a estratégia da oposição. É a isso que serve a disseminação do ódio. Nesta semana, diante da sanção de Dilma à importante lei que tipifica o feminicídio, definindo-o como crime hediondo, um juiz federal espalhou na rede Facebook uma piada de péssimo gosto, em que sugere que os brasileiros quem matar Dilma. Na véspera, justamente quando se comemorava o Dia Internacional da Mulher, uma charge de Chico Caruso, no jornal O Globo, tem o mesmo conteúdo.
E há quem diga que não falta o encorajamento de interesses externos. Basta dizer que a processo da Petrobras tende a impedir que contrate qualquer empreiteira brasileira, sendo forçada a buscar serviços em empresas de outros países.
Quem preferir não precisa entender.
Mas cada brasileiro estará dividido neste fim de semana. E certamente durante mais algum tempo. Participa das manifestações convocadas pela oposição para o dia 15 e favorece o golpe e, no mínimo, a inviabilização do funcionamento do País. O golpe significa em primeiro lugar a ruptura com a ordem democrática, com consequências imprevisíveis. Quem viveu ou se informou sobre o que se passou a partir de 1964 tem uma ideia clara de até onde podemos ir. Representa também o encerramento de uma fase de conquistas dos trabalhadores e setores populares, o fim de programas sociais que reduziram as disparidades sociais e permitiram que milhões de famílias vislumbrasse um novo tempo. Desfaz a esperança de que o Brasil possa ter mudanças fundamentais inclusive para que não continuemos a conviver com a corrupção sempre de braços dados com a política, pela garantia da investigação de toda e qualquer denúncia que apareça, mas principalmente por mudanças fundamentais na ordem institucional, como a reforma política e a democratização do sistema de comunicação. Enfim, retira o poder de iniciativa política de Dilma Rousseff e o entrega para as forças que elegeram os presidentes da Câmara e do Senado, Eduardo Cunha e Renan Calheiros, ambos envolvidos até o pescoço com a corrupção, inclusive na Operação Lava-Jato. São esses os que vão marchar no dia 15.
Ou se levanta para defender a democracia (e o resultado das urnas), a Petrobras e os interesses nacionais e populares. Quem tiver estes compromissos está convocado para as manifestações da tarde de hoje em todo o Brasil.
De que lado você está?
Fernando Tolentino