terça-feira, 30 de novembro de 2010

O MINISTRO X-9


Leandro Fortes

Os telegramas de Clifford Sobel nos deixaram,
outra vez, descalços no quintal do império

Uma informação incrível, revelada graças às inconfidências do Wikileaks, circula ainda impunemente pela equipe de transição da presidente eleita Dilma Rousseff: o ministro da Defesa, Nelson Jobim, costumava almoçar com o ex-embaixador dos Estados Unidos no Brasil Clifford Sobel para falar mal da diplomacia brasileira e passar informes variados. Para agradar o interlocutor e se mostrar como aliado preferencial dentro do governo Lula, Jobim, ministro de Estado, menosprezava o Itamaraty, apresentado como cidadela antiamericana, e denunciava um colega de governo, o embaixador Samuel Pinheiro Guimarães, como militante antiyankee. Segundo o relato produzido por Clifford Sobel, divulgado pelo Wikileaks, Jobim disse que Guimarães “odeia os EUA” e trabalha para “criar problemas” na relação entre os dois países.

Para quem não sabe, Samuel Pinheiro Guimarães, vice-chanceler do Brasil na época em que Jobim participava de convescotes na embaixada americana em Brasília, é o atual ministro-chefe da Secretaria Assuntos Estratégicos da Presidência da República (SAE). O Ministério da Defesa e a SAE são corresponsáveis pela Estratégia Nacional de Defesa , um documento de Estado montado por Jobim e pelo antecessor de Samuel Guimarães, o advogado Mangabeira Unger – com quem, aliás, Jobim parecia se dar muito bem. Talvez porque Unger, professor em Harvard, é quase um americano, com sotaque e tudo.
Após a divulgação dos telegramas de Sobel ao Departamento de Estado dos EUA, Jobim foi obrigado a se pronunciar a respeito. Em nota oficial, admitiu que realmente “em algum momento” (qual?) conversou sobre Pinheiro com o embaixador americano, mas, na oportunidade, afirma tê-lo mencionado “com respeito”. Para Jobim, o ministro da SAE é “um nacionalista, um homem que ama profundamente o Brasil”, e que Sobel o interpretou mal. Como a chefe do Departamento de Estado dos EUA, Hillary Clinton, decretou silêncio mundial sobre o tema e iniciou uma cruzada contra o Wikileaks, é bem provável que ainda vamos demorar um bocado até ouvir a versão de Mr. Sobel sobre o verdadeiro teor das conversas com Jobim. Por ora, temos apenas a certeza, confirmada pelo ministro brasileiro, de que elas ocorreram “em algum momento”.
Mais adiante, em outro informe recolhido no WikiLeaks, descobrimos que o solícito Nelson Jobim outra vez atuou como diligente informante do embaixador Sobel para tratar da saúde de um notório desafeto dos EUA na América do Sul, o presidente da Bolívia, Evo Morales. Por meio de Jobim, o embaixador Sobel foi informado que Morales teria um “grave tumor” localizado na cabeça. Jobim soube da novidade em 15 de janeiro de 2009, durante uma reunião realizada em La Paz, onde esteve com o presidente Lula. Uma semana depois, em 22 de janeiro, Sobel telegrafava ao Departamento de Estado, em Washington, exultante com a fofoca.
No despacho, Sobel revela que Jobim foi além do simples papel de informante. Teceu, por assim dizer, considerações altamente pertinentes. Jobim revelou ao embaixador americano que Lula tinha oferecido a Morales exame e tratamento em um hospital em São Paulo. A oferta, revela Sobel no telegrama a Washington, com base nas informações de Jobim, acabou protelada porque a Bolívia passava por um “delicado momento político”, o referendo, realizado em 25 de janeiro do ano passado, que aprovou a nova Constituição do país. “O tumor poderia explicar por que Morales demonstrou estar desconcentrado nessa e em outras reuniões recentes”, avisou Jobim, segundo o amigo embaixador.
Não por outra razão, Nelson Jobim é classificado pelo embaixador Clifford Sobel como “talvez um dos mais confiáveis líderes no Brasil”. Não é difícil, à luz do Wikileaks, compreender tamanha admiração. Resta saber se, depois da divulgação desses telegramas, a presidente eleita Dilma Rousseff ainda terá argumentos para manter Jobim na pasta da Defesa, mesmo que por indicação de Lula. Há outros e piores precedentes em questão.
Jobim está no centro da farsa que derrubou o delegado Paulo Lacerda da Agência Brasileira de Inteligência (Abin), acusado de grampear o ministro Gilmar Mendes, do STF. Jobim apresentou a Lula provas falsas da existência de equipamentos de escutas que teriam sido usados por Lacerda para investigar Mendes. Foi desmentido pelo Exército. Mas, incrivelmente, continuou no cargo. Em seguida, Jobim deu guarida aos comandantes das forças armadas e ameaçou renunciar ao cargo junto com eles caso o governo mantivesse no texto do Plano Nacional de Direitos Humanos a idéia (!) da instalação da Comissão da Verdade para investigar as torturas e os assassinatos durante a ditadura militar. Lula cedeu à chantagem e manteve Jobim no cargo.
Agora, Nelson Jobim, ministro da Defesa do Brasil, foi pego servindo de informante da Embaixada dos Estados Unidos. Isso depois de Lula ter consolidado, à custa de enorme esforço do Itamaraty e da diplomacia brasileira, uma imagem internacional independente e corajosa, justamente em contraponto à política anterior, formalizada no governo FHC, de absoluta subserviência aos interesses dos EUA.
Foi preciso oito anos para o país se livrar da imagem infame do ex-ministro das Relações Exteriores Celso Lafer tirando os sapatos no aeroporto de Miami, em dezembro de 2002, para ser revistado por seguranças americanos.
De certa forma, os telegramas de Clifford Sobel nos deixaram, outra vez, descalços no quintal do império.


Postado no blog Brasília eu Vi (http://brasiliaeuvi.wordpress.com)

às 16h24 de 30 de novembro de 2010

quarta-feira, 17 de novembro de 2010

AS DUAS VITÓRIAS DE 2010



Passadas as primeiras águas do segundo turno, é o momento de entender mais profundamente o processo e desembaçar as janelas para vislumbrar o futuro.


É possível dizer que o Brasil teve duas grandes vitórias?


A primeira foi a própria eleição de Dilma Rousseff.

É uma vitória de importância fundamental por ser a primeira vez que uma brasileira chega à Presidência da República no Brasil. Não é pouco em um país de cultura marcadamente machista e em que a política é tida como um território desaconselhável para a mulher.

Quem não viu, nesta campanha, ao menos um gesto de resistência a essa possibilidade?

Nem me refiro às grosserias de seu opositor, sempre sugerindo a incapacidade de Dilma para dirigir alguma coisa, decifrar questões mais complexas ou até compreender as perguntas que lhe fazia durante os debates. Falo da sua correspondência no imaginário popular, que Serra pretendia atingir, para inibir a corrida em direção à concorrente.

Ao parar para abastecer, na volta de Caldas Novas, em Goiás, o frentista comentou comigo que o Brasil nunca teve um presidente como Lula. Quando perguntei se votara em Dilma, confidenciou: “Não dei conta”. Diante de minha reação, foi mais enfático na incongruência ideológica: “Mas torci pro PT em Brasília; se eu morasse lá, ia votar em Agnelo”. Não me surpreendi. Já ouvira respostas assim, mais ou menos dissimuladas, em toda a minha vida de militante.

Pois o Brasil, que levou à Presidência um operário, de quem se dizia ser um “analfabeto” por não dispor de um diploma de graduação universitária, agora terá uma mulher comandando tantos quantos sejam os homens que terá em seu governo. Isso é muito! Mas não é tudo.

Queiram ou não os adversários, o Brasil será dirigido por uma gerente espetacular. Os críticos de Lula gostavam de dizer que ele não parava em Brasília para governar, que não sabia nada do seu próprio governo. Se fosse verdade, como explicar os resultados inequivocamente positivos na gestão da economia e especialmente da crise, nas políticas sociais, na política externa, na articulação política ou no relacionamento com o resto do mundo? Se não foi Lula (visto pelos detratores como um ausente), quem teria dirigido e coordenado o seu governo? Eles, é claro, se calam.


O processo eleitoral avançou


Ainda não é o principal. Esta eleição representou um salto qualitativo ainda não suficientemente avaliado.

No passado recente, o Brasil viveu várias eleições em que a sociedade se limitava a posicionar-se diante da ditadura militar. A cada pleito, evidenciava-se a rejeição da sociedade. O governo criava regras para inibir essa manifestação: extinção dos partidos e confinamento apenas na Arena e no MDB, sublegenda para cargos majoritários, fidelidade partidária, verticalização do voto, coincidência de eleições gerais, senadores biônicos, alteração da proporção de representação dos estados, interferências nas regras de propaganda eleitoral e, por fim, a extinção dos partidos criados por imposição da própria ditadura e obrigatoriedade de criação de novas legendas. A cada novo pacote de casuísmos a sociedade encontrava meios para driblá-las.

Em 1986, a escolha de constituintes deu certo caráter ideológico à primeira eleição do período da redemocratização, boa parte dos partidos e candidatos discutindo propostas de sociedade. É claro que isso se restringia a um determinado segmento da sociedade e à propaganda formal. Prosperavam nos redutos eleitorais tradicionais e nos estratos sociais menos esclarecidos e mais carentes os mesmos mecanismos clientelistas e práticas populistas e despolitizadas.
Esse caráter ideológico se aprofundou em 1989, a primeira eleição direta para a Presidência desde o movimento militar de 1964. Foi uma eleição solteira, em que não havia disputa para qualquer outro cargo eletivo. Daí, embora as campanhas buscassem enraizamento a nível municipal, os candidatos tinham que falar diretamente aos eleitores, o que lhes impunha a explicitação do discurso. Nem todos os 21 candidatos tinham nitidez de posições, mas dá pra imaginar a diversidade ideológica do debate.

As eleições seguintes foram todas casadas, em que há forte influência dos candidatos proporcionais como puxadores de votos para governadores, senadores e presidente. São pleitos que favorecem os partidos com grande número de prefeitos, fortes estruturas e bancadas, especialmente nas regiões menos desenvolvidas. Influi decisivamente o poder político local, notadamente nos grotões, com forte dependência do eleitor com relação aos chefes políticos e praticamente nenhuma consciência política das massas. O debate propriamente político se circunscreve a grupos urbanos de classe média e aos detentores de poder econômico, que manipulam o processo em seu próprio proveito.

Em 1994, o forte impacto do sucesso inicial do Plano Real caminhou junto àquele voto dirigido pelas máquinas partidárias. As maiores carregavam a candidatura de Fernando Henrique Cardoso, seja na coligação PSDB, PFL, PTB ou, informalmente, PMDB e PPR (atual PP). Orestes Quércia (PMDB) teve somente 4,38% dos votos e Espiridião Amim (PPR) não passou de 2,75%. Fernando Henrique (54,27) venceu no primeiro turno, numa disputa em que praticamente não houve discussão política.

Durante o seu primeiro mandato, Fernando Henrique instituiu a reeleição e, na corrida sucessória (1998), conseguiu formalizar a base de apoio informal da disputa anterior e do próprio mandato, uma coligação com PSDB, PFL, PPB e PTB e, ainda, o apoio do PMDB. Repetiu-se o processo despolitizado de quatro anos antes e Fernando Henrique teve nova vitória em primeiro turno, com 53,06% dos votos. Lula e o PT cresceram dos 27,04% do pleito anterior para 31,71%.

Em 2002, o PSDB lançou José Serra, tentando repetir a tática que dera certo. Só não contava com a pretensão da governadora maranhense Roseana Sarney, do PFL, que explodiu nas primeiras pesquisas de opinião, encostando em Lula e ocupando o lugar que os tucanos supunham reservado para o seu candidato. Como era preciso desalojá-la dali, veio a Operação Lunus, da Polícia Federal: um monte de dinheiro exposto em rede nacional de TV e dado como parte do caixa 2 de sua campanha. O projeto de Roseana desabou. Serra até conseguiu colar o PMDB à sua candidatura. Mas o PFL ficou ao menos formalmente fora e José Sarney não engoliu a manobra contra a filha e apoiou Lula. Informalmente, porém, contou com quase o mesmo enraizamento municipal de Fernando Henrique.

A insatisfação da sociedade com os dois governos tucanos era grande e Lula insistiu no debate político das questões centrais deles: o desmonte da máquina estatal e o arrocho sobre os servidores públicos, a reforma previdenciária à chilena (tendo em vista o fortalecimento dos fundos de pensão), a política de privatizações, a perda de poder aquisitivo dos trabalhadores e da classe média, o forte endividamento externo, a estagnação da economia. E, claro, os retumbantes casos de corrupção. No primeiro turno Lula teve 46,44% e Serra 23,196% dos votos. A discussão política se intensificou e Lula venceu, no segundo turno, com 61,3% da votação.

O primeiro governo de Lula teve sérios problemas de articulação política. A tremenda crise econômica e financeira em que assumiu o obrigou a impor medidas rígidas, causando desgaste na sua própria base social, especialmente os servidores públicos. A base parlamentar limitadíssima o forçou a manter negociações penosas e que motivaram desapontamento entre apoiadores tradicionais.

A campanha da reeleição (2006) se deu no escoadouro dessa crise, principalmente de identidade, causada pelos episódios que a mídia chamou de “mensalão”, por medidas políticas que não eram esperadas por sua própria base, como a reforma da previdência, e pela ampliação do arco de alianças, tido como excessivamente amplo por setores do Partido dos Trabalhadores. A campanha do primeiro turno refletiu a composição mais conservadora da coligação que então apoiava Lula, despolitizando o debate.

Ainda assim, o primeiro governo de Lula lograra maior reequilíbrio das contas públicas e da dívida externa, melhorara as relações com os movimentos sociais, aumentara as taxas de desenvolvimento e o nível de emprego e implantara programas sociais importantes. Além disso, o Brasil se reposicionou no mundo, aproximando-se da América Latina, da África, dos países árabes e da China. Junto à ampliação da coligação que apoiava a sua reeleição e ante a fragilidade do adversário, a expectativa era de que a eleição se liquidasse no primeiro turno.

Lula chegou perto, com 48,61% dos votos, mas a vitória só veio no segundo turno, quando ele politizou o discurso, evidenciando compromissos mais avançados com setores sociais mais amplos. Atingiu 60,83%.


2010, um novo paradigma


A eleição deste ano se dá após os dois períodos de Lula, que participou intensamente da campanha. Dilma Rousseff esteve a centímetros da eleição no primeiro turno, em que alcançou 46,91% dos votos. No segundo turno, Dilma chegou a 56,05% do eleitorado.

Prestígio pessoal? Capacidade de transferência de votos? Empatia com o eleitorado? São explicações que, aqui e ali, a imprensa veicula para explicar como Lula conseguiu fazer de Dilma uma candidata vencedora.

O que lhes chama a atenção é que Lula sagrou Dilma como candidata sem que ela tivesse qualquer experiência eleitoral anterior. E isso soa muito estranho para a maioria dos analistas. Como é que ele teria coragem de colocar uma estreante em disputas eleitorais para enfrentar um dos políticos mais experientes do Brasil? José Serra foi deputado, constituinte, senador, prefeito da maior cidade da América Latina, onde deixou o seu vice e o reelegeu sem qualquer dificuldade. Depois de ocupar dois ministérios, governou São Paulo, um Estado que reúne, sozinho, 22,3% dos eleitores brasileiros e em que os tucanos se sucedem desde janeiro de 1995.

Na lógica do PSDB seria um passeio. Serra se preparava para uma vitória no primeiro turno, animado com os índices das primeiras pesquisas de opinião, que lhe davam uma dianteira em torno de 30 pontos. Bastaria pacificar sua relação com o ex-governador mineiro Aécio Neves, que saíra do governo com um índice de popularidade de quase 80%. Minas tem o terceiro colégio eleitoral do País e, junto com São Paulo, beira um terço do eleitorado nacional. Aécio ainda tinha sangue fresco nas feridas causadas pela disputa velada com Serra pela indicação tucana. Mas Serra costuma raciocinar com a teoria do fato consumado. Venceu. Logo, trata-se de negociar a melhor forma de rendição entusiástica. Frustrou-se o apelo para que Aécio aceitasse a candidatura a vice. Tentaria outras abordagens. Aécio não deixaria de contribuir para uma candidatura vitoriosa e não quereria arcar com o ônus da derrota de um candidato cuja vitória era dada como certa.

Lula, porém, sabia o que estava fazendo. Em primeiro lugar, escolheu bem. Ousou, pois sempre foi adepto de desafios, e determinou-se a romper mais um preconceito enraizado na sociedade brasileira.

Lula conhece bem o bairrismo dos mineiros. Dilma nasceu em Minas Gerais e seus conterrâneos jamais esqueceriam desse detalhe. Ainda mais para trocá-la por um paulista. Dilma integrou-se à sociedade gaúcha, lá se projetou como técnica, livrando o Rio Grande do Sul do apagão imposto ao País pelos tucanos no tempo de Fernando Henrique. Os gaúchos aprenderam a respeitá-la e admirá-la. Dilma hoje é petista, mas surgiu no Rio Grande do Sul como militante do PDT de Leonel Brizola. Tendo coordenado os ministérios no governo de Lula e com a sua capacidade pessoal, teria preparo suficiente para o debate. Sua personalidade forte e experiência pessoal completavam o figurino, características indispensáveis para o enfrentamento com um adversário que tem como traço predominante a agressividade.

Lula não escondeu o que pretendia: um plebiscito. A Nação entendeu e respondeu como tal. Em outras palavras, Lula colocou o debate ideológico no centro da disputa e o eleitor percebeu isso claramente. Não se tratava simplesmente de uma escolha entre dois políticos. O eleitor teria que escolher entre a volta ao neoliberalismo ou a continuidade do projeto petista de governo. Foi a eleição mais ideológica desde 1989. Assemelhou-se, nisso, ao segundo turno entre Lula e Alkmin, em 2006.

Ao longo da campanha eleitoral, no primeiro e, especialmente, no segundo turno, Serra passou a imagem ao País de ser, no mínimo, o mais poderoso dos mortais. Capaz de levantar ou confirmar alguma suspeita (qualquer uma) contra a sua adversária, dá-la como veraz e, a partir daí, acusá-la, julgá-la sumariamente e, por fim, condená-la. Se possível, entregá-la para a execução.

Mas a eleição acabou. Ele esperneou. Enquanto Dilma fez um discurso em que falou de paz e estendeu a mão à conciliação nacional, ele disse que a campanha serviu para abrir uma trincheira e ameaçou: “A guerra está apenas começando”.

A verdade é outra. Serra não é mais nada. Perdeu o futuro e, antes, no afã de se viabilizar na disputa, desvencilhou-se do que pode ser o maior patrimônio de qualquer homem, o passado. Já não é o que, um dia, foi. Ou finge ser o que, na verdade, não é. Ou é muito diferente do que se pensa que ele foi. Ninguém sabe ao certo. Mas não importa. Vítima de si mesmo, tende ao desaparecimento. Para o Brasil, será “aquele cara que tentou duas eleições pra presidente”. Para São Paulo, talvez fique na memória como “aquele cara que se elegeu prefeito e governador, mas nunca completou um mandato”. Talvez alguém pense que decidiu realizar seu sonho, provar que é competente administrando uma loja de 1,99.

E aí está o vértice da segunda vitória. Uma vitória que, paradoxalmente, pode ser dos vencedores e dos vencidos.

O pleito deste ano serviu para sepultar Serra no mesmo mausoléu em que descansarão Arthur Virgílio, Heráclito Fortes, Mão Santa. Tasso Jereissati, Jarbas Vasconcelos, Marcos Maciel, João Alves, Albano Franco, Aleluia, Gabeira, Orestes Quércia (este nem precisou participar do pleito para ter o mesmo destino), Efraim Morais, Antero de Barros, Rita Camata (vice de Serra em 2002), César Maia, Yeda Crusius, Joaquim Roriz e tantos outros. Lula não é dado à vingança, mas tem compromisso com o futuro. O seu plebiscito serviu para passar uma esponja no passado.

Não é o caso de Marina. Segurou-se o quanto pôde e fingiu que não participara do segundo turno sequer como eleitora, temerosa de enfrentar os eleitores. Depois, viu-se porquê. Os eleitores não eram seus. A eleição do Acre deixou isso bem claro. Foi o único Estado fora da região Sul em que Serra venceu. E, aparentemente, arrastando todos os que a haviam sufragado na primeira fase da eleição.

Mas, tenha-se claro que o PSDB-DEM não morreu. Ao contrário, deu uma demonstração de força ao eleger oito governadores tucanos e dois demistas. O herdeiro disso, porém, atende pelo nome de Aécio Neves.

Não que Aécio seja, em si, a negação de Serra. Têm o mesmo DNA, daí cacoetes semelhantes. Basta lembrar o episódio dos dossiês, que a mídia comprometida, tentando fabricar uma verdade antipetista, tentou rotular de crise da “quebra de sigilo”. Até o mais distraído concluinte de curso de jornalismo ouviu falar, nos últimos meses de 2009, que explodiria um dossiê sobre a vida privada do então governador mineiro, revelando como trataria suas namoradas, ainda que diante de estranhos, e até sugerindo que manifestasse gosto por certas substâncias capazes de alterar os níveis de consciência. Mas levou longas semanas para que algum veículo de imprensa mencionasse a relação entre a quebra de sigilo de tucanos de alta plumagem e da filha de Serra (que se tornou sócia de Verônica Dantas, tendo sido, ela própria, responsável pela quebra de sigilo de milhares de correntistas do Banco do Brasil) e, de outro lado, a produção de dossiês pela turma do então governador paulista. Mera tática de Aécio para inibir a publicação dos dossiês preparados por Serra e, assim, ganhar condições de disputar a indicação do PSDB, quem mostrou que a quebra de sigilo de tucanos teria sido apenas isso só o fez quando compelido pelo encaminhamento do inquérito da Polícia Federal.

Embora lhes corra na veia o mesmo sangue tucano, Aécio e Serra têm, porém, diferenças de estilo. E, se for mesmo verdade o que é hoje anunciado pela mídia, sua disposição para fazer uma oposição construtiva, o Brasil pode sair ganhando.

E é significativo que Lula tenha se dado ao luxo de escolher a vencedora e o líder dos derrotados.


Fernando Tolentino

domingo, 7 de novembro de 2010

O EVANGELHO E A ELEIÇÃO


Se você é cristão e, há uma semana, teve (ou ficou com) alguma dúvida sobre o acerto da sua decisão na hora da escolha entre Dilma ou Serra, veja o que disse o Evangelho um domingo depois:
"Naquele tempo, vendo Jesus as multidões, subiu ao monte e sentou-se. Os discípulos sentaram-se, e Jesus começou a ensiná-los: Bem-aventurados os pobres em espírito, porque deles é o Reino dos Céus. Bem-aventurados os aflitos, porque serão consolados. Bem-aventurados os mansos, porque possuirão a terra. Bem-aventurados os que têm fome e sede de justiça, porque serão saciados. Bem-aventurados os misericordiosos, porque alcançarão misericórdia. Bem-aventurados os puros de coração, porque verão a Deus. Bem-aventurados os que promovem a paz, porque serão chamados filhos de Deus. Bem-aventurados os que são perseguidos por causa da justiça, porque deles é o reino dos Céus. Bem-aventurados sois vós, quando vos injuriarem e perseguirem, e, mentindo, disserem todo tipo de mal contra vós, por causa de mim. Alegrai-vos e exultai, porque será grande a vossa recompensa nos céus”.