sábado, 28 de abril de 2012

A CPI E O FIM DO JORNALISMO INVESTIGATIVO DE ARAQUE



Há oito anos, escrevi um livrete chamado “Jornalismo Investigativo”, como parte do esforço da Editora Contexto em popularizar o conhecimento básico sobre a atividade jornalística no Brasil. Digo “livrete” sem nenhum desmerecimento, muito menos falsa modéstia, mas para reforçar sua aparência miúda e funcional, um livro curto e conceitual onde plantei uma semente de discussão necessária ao tema, apesar das naturais deficiências de linguagem acadêmica de quem jamais foi além do bacharelado. Quis, ainda assim, formular uma conjuntura de ordem prática para, de início, neutralizar a lengalenga de que todo jornalismo é investigativo, um clichê baseado numa meia verdade que serve para esconder uma mentira inteira. Primeiro, é preciso que se diga, nem todo jornalismo é investigativo, embora seja fato que tanto a estrutura da entrevista jornalística co mo a mais singela das apurações não deixam de ser, no fim das contas, um tipo de investigação. Como é fato que, pelo prisma dessa lógica reducionista, qualquer atividade ligada à produção de conhecimento também é investigativa.

A consideração a que quero chegar é fruto de minha observação profissional, sobretudo ao longo da última década, período em que a imprensa tornou-se, no Brasil, um bloco quase que monolítico de oposição não somente ao governo federal, a partir da eleição de Luiz Inácio Lula da Silva, em 2002, mas a tudo e a todos vinculados a agendas da esquerda progressista, aí incluídos, principalmente, os movimentos sociais, os grupos de apoio a minorias e os defensores de cotas raciais. Em todos esses casos, a velha mídia nacional age com atuação estrutural de um partido, empenhada em fazer um discurso conservador quase sempre descolado da realidade, escoltado por um discurso moralista disperso em núcleos de noticiários solidificados, aqui e ali, em matérias, reportagens e editoriais de indignação seletiva.

A solidez – e a eficácia – desse modelo se retroalimenta da defesa permanente do grande capital em detrimento das questões sociais, o que tanto tem garantido um alto grau de financiamento desta estrutura midiática, como tem servido para formar gerações de jornalistas francamente alinhados ao que se convencionou chamar de “economia de mercado”, sem que para tal lhes tenha sido apresentado nenhum mecanismo de crítica ou reflexão. Essa circunstância tem ditado, por exemplo, o comportamento da imprensa em relação a marchas, atos públicos e manifestações de rua, tratados, no todo, como questões relacionadas a trânsito e segurança pública. Interditados, portanto, em seu fundamento social básico e fundamental, sobre o qual o jornalismo comercial dos oligopólios de comunicação do Brasil só se debruça para descer o pau.

O resultado mais perverso dessa estrutura midiática rica e reacionária é a perpetuação de uma política potencialmente criminosa de assassinato de reputações e intimidação de agentes públicos e privados contrários às linhas editoriais desses veículos. Ou, talvez pior ainda, a capacidade destes em atrair esses mesmos agentes para seu ventre, sob a velha promessa de conciliação, para depois, novamente, estrangulá-los sob a vista do público.

“Jornalismo Investigativo”, porém, foi escrito anteriormente ao chamado “escândalo do mensalão”, antes, portanto, de a mídia brasileira formar o bloco partidário ora em progresso, tristemente conservador, que se anuncia diuturnamente como guardião das liberdades de expressão e imprensa – conceitos que mistura de forma deliberada para, justamente, esconder sua real indiferença, tanto por um quanto pelo outro. Distante, por um breve instante de tempo, da guerra ideológica deflagrada a partir do mensalão, me foi possível escrever um livro essencialmente simples sobre o verdadeiro conceito de jornalismo investigativo, ao qual reputo a condição de elemento de influência transversal, e não um gênero capaz de ser enclausurado em editorias, como o são os jornalismos político, econômico, esportivo, cultural, etc.

Jornalismo investigativo é a sistematização de técnicas e conceitos de apuração para a produção de reportagens de fôlego, não necessariamente medidas pelo tamanho, mas pela profundidade de seus temas e, principalmente, pela relevância da notícia que ela, obrigatoriamente, terá que encerrar. Este conceito, portanto, baseado na investigação jornalística, existe para ser utilizado em todos os gêneros de reportagem, em maior ou menor grau, por qualquer repórter. Daí minha implicância com o termo “jornalista investigativo”, ostentado por muitos repórteres brasileiros como uma espécie de distintivo de xerife, quando na verdade a investigação jornalística é determinada pela pauta, não pela vaidade de quem a toca. O mesmo vale para o título de “repórter especial”, normalmente uma maneira de o jornalista contar ao mundo que g anha mais que seus colegas de redação, ou que ficou velho demais para estar no mesmo posto de focas recém-formados.


Para compor o livro editado pela Contexto, chamei alguns jornalistas para colaborar com artigos de fundo, como se dizia antigamente, os quais foram publicados nas últimas páginas do livro. Fui o mais plural possível, em muitos sentidos, inclusive ideológico, embora essa ainda não fosse uma discussão relevante, ou pelo menos estimulante, dentro da imprensa brasileira, à época. O mais experiente deles, o jornalista Ricardo Noblat, hoje visceralmente identificado ao bloco de oposição conservadora montado na mídia, havia também escrito um livro para a Contexto sobre sua experiência como editor-chefe do Correio Braziliense, principal diário de Brasília que, por um breve período de oito anos (1994-2002), ele transformou de um pasquim provinciano e corrupto em um jornal respeitado em todo o país. Curiosamente, coube a Noblat assinar um artigo intitulado ”Todo jornalismo é investigativo” e, assim, reforçar a lengalenga que o livro esforça-se, da primeira à última página, em desmistificar.

Tivesse hoje que escrever o mesmo livro, eu teria aberto o leque desses artigos e buscaria opiniões menos fechadas na grande imprensa. Em 2004, quando o livro foi escrito (embora lançado no primeiro semestre de 2005), o fenômeno da blogosfera progressista era ainda incipiente, nem tampouco estava em voga a sanha reacionária dos blogs corporativos da velha mídia. No mais, minha intenção era a de fazer um livro didático o bastante para servir de guia inicial para estudantes de jornalismo. Nesse sentido, o livro teve relativo sucesso. Ao longo desses anos, são raras as palestras e debates dos quais participo, Brasil afora, em que não me apareça ao menos um estudante para comentar a obra ou para me pedir que autografe um exemplar.

Faz-se necessário, agora, voltar ao tema para trazer o mínimo equilíbrio ao recrudescimento dessa discussão na mídia, agora às voltas com uma CPI, dita do Cachoeira, mas que poderá lhe revolver as vísceras, finalmente. Contra a comissão se levantaram os suspeitos de sempre, agora, mais do que nunca, prontos a sacar da algibeira o argumento surrado e cafajeste dos atentados às liberdades de imprensa e expressão. A alcova de onde brota essa confusão deliberada entre dois conceitos distintos está prestes a tomar a função antes tão cara a certo patriotismo: o de ser o último refúgio dos canalhas.

Veio da revista Veja, semanal da Editora Abril, a reação mais exaltada da velha mídia, a se autodenominar “imprensa livre” sob ataque de fantasmas do autoritarismo, em previsível – e risível – ataque de pânico, às vésperas de um processo no qual terá que explicar as ligações de um quadro orgânico da empresa, o jornalista Policarpo Jr., com a quadrilha do bicheiro Carlinhos Cachoeira. Primeiro, com novos estudos do Santo Sudário, depois, com revelações sobre a superioridade dos seres altos sobre as baixas criaturas, a revista entrou numa espiral escapista pela qual pretende convencer seus leitores de que a CPI que se avizinha é parte de uma vingança do governo cuja consequência maligna será a de embaçar o julgamento do “mensalão”. Pobres leitores da Veja.


Não há, obviamente, nenhum risco à liberdade de imprensa ou de expressão, nem à democracia e ao bem estar social por causa da CPI do Cachoeira. Há, isso sim, um claro constrangimento de setores da mídia com a possibilidade de serem investigados por autoridades às quais dedicou, na última década, tratamento persecutório, preconceituoso e de desqualificação sumária. Sem falar, é claro, nas 200 ligações do diretor da Veja em Brasília para Cachoeira, mentor confesso de todos os furos jornalísticos da revista neste período. Em recente panfletagem editorial, Veja tentou montar uma defesa prévia a partir de uma tese obtusa pela qual jornalistas e promotores de Justiça obedecem à mesma prática ao visitar o submundo do crime. Daí, a CPI da Cachoeira, ao investigar a associação delituosa entre a Veja e o bicheiro goiano, estaria colocando sob suspeita não os repórteres da semanal da Abril, mas o trabalho de todos os chamados “jornalistas investigativos” do país.

A tese é primária, mas há muita gente no topo da pirâmide social brasileira disposta a acreditar em absurdos, de modo a poder continuar a acreditar nas próprias convicções políticas conservadoras. Caso emblemático é o do atentado da bolinha de papel sofrido pelo tucano José Serra, na campanha eleitoral de 2010. Na época, coube ao Jornal Nacional da TV Globo montar um inesquecível teatro com um perito particular, Ricardo Molina, a fim de dar ao eleitor de Serra um motivo para entrar na fila da urna eleitoral sem a certeza de estar cometendo um ato de desonestidade política. Para tal, fartou-se com a fantasia do rolo-fantasma de fita crepe, gravíssimo pedregulho de plástico e cola a entorpecer as idéias do candidato do PSDB.

Todos nós, jornalistas, já nos deparamos, em menor ou maior escala, com fontes do submundo. Esta é a verdade que a Veja usa para tentar se safar da CPI. Há, contudo, uma diferença importante entre buscar informação e fazer uso de um crime (no caso, o esquema de espionagem da quadrilha de Cachoeira) como elemento de pauta – até porque, do ponto de vista da ética jornalística, o crime em si, este sim, é que deve ser a pauta. A confissão do bicheiro, captada por um grampo da PF, de que “todos os furos” recentes da Veja se originaram dos afazeres de uma confraria de criminosos, nos deixa diante da complexidade desse terrível zeitgeist, o espírito de um tempo determinado pelos espetáculos de vale tudo nas redações brasileiras.

Foi Cachoeira que deu à Veja, a Policarpo Jr., a fita na qual um ex-diretor dos Correios recebe propina. O material foi produzido pela quadrilha de Cachoeira e serviu para criar o escândalo do mensalão. Sob o comando de Policarpo, um jovem repórter de apenas 24 anos, Gustavo Ribeiro, foi instado a invadir o apartamento do ex-ministro José Dirceu, em um hotel de Brasília. Flagrado por uma camareira, o jornalista acabou investigado pela Polícia Civil do Distrito Federal, mas escapou ileso. Não se sabe, até hoje, o que ele pretendia fazer: plantar ou roubar coisas. A matéria de Ribeiro, capa da Veja, era em cima de imagens roubadas do sistema interno de segurança do hotel, onde apareciam políticos e autoridades que freqüentavam o apartamento de Dirceu. A PF desconfia que o roubo (atenção: entre jornalistas de verdade, o roubo seria a pauta) foi levado a cabo pela turma de Cachoeira. A Veja, seria, portanto, receptadora do produto de um crime. Isso se não tiver, ela mesmo, o encomendado.

Por isso, além da podridão política que naturalmente irá vir à tona com a CPI do Cachoeira, o Brasil terá a ótima e rara oportunidade de discutir a ética e os limites do jornalismo a partir de casos concretos. Veremos como irão se comportar, desta feita, os arautos da moralidade da velha mídia, os mesmos que tinham no senador Demóstenes Torres o espelho de suas vontades.

Leandro Fortes. Publicado no blog Brasília, eu vi, em 23.04.2012 

sábado, 21 de abril de 2012

BRASÍLIA: A CIDADE MUDA


Já ouvi tanto sobre ela. Muito, mas muito mesmo, dos que não a conhecem, ainda que com ela convivendo diariamente. A mim, não interessa o que esses dizem.

Ouvi muito dos que dela desconfiaram.

Cheguei a Brasília como a maior parte dos que a adotaram. Para trabalhar. E, como a maioria, imediatamente me deslumbrei. Já a tinha visto quando a cidade mal nascia, tinha implantadas algumas superquadras, parte da W3, quase toda a Esplanada e seus palácios. Ao chegar, a vi madura enquanto implantação de um projeto urbanístico e arquitetônico.

Mas era uma cidade muda. O primeiro evento “político” com que tive contato foi algo que, àquela época, só proporcionaria mesmo mobilização espontânea em Brasília. Seria votada a Emenda Nelson Carneiro, que criaria a possibilidade de divorciar-se. O plenário da Câmara encheu, de gente da cidade que tinha o maior índice de casamentos desfeitos do Brasil.

O segundo foi o aniversário de 15 anos do Iate Clube. Um almoço com tudo de frívolo, até que foi anunciada a carta enviada pelo cassado Juscelino Kubtischek desde Anápolis, para onde foi quando a sua aeronave foi impedida de pousar na cidade por ele criada e, assim, de comparecer à festa. A alta sociedade local, ali presente, levantou-se, protestou, revoltou-se, o microfone passou de mãos em mãos igualmente iradas e se chegou até a falar em eleições em Brasília, um tema proibido durante aqueles anos de ditadura.

Ainda eram atos em recintos fechados, não convenciam ninguém de que aquela cidade linda, mas fria, poderia pulsar. Quando o corpo de JK chegou à cidade e à Catedral, em 1961, o Brasil e a própria cidade se assustaram. Já não era um grupo de homens e mulheres separados a quererem autorização legal para reconstruir suas vidas ou a elite da cidade. Nem a manifestação se dava em recinto fechado ou com linguagem polida. Os operários, os candangos, com as suas próprias mãos, tornaram-se uma multidão à frente da Catedral e arrancaram o esquife de cima do caminhão do Corpo de Bombeiros, para enfrentar a resistência policial e levá-lo ao Campo da Esperança.

SILÊNCIO FORÇADO

Brasília era tida como uma cidade que não se movimentaria politicamente. Isso seria assegurado por seus amplos espaços, pela proposital separação entre a incipiente burguesia e as camadas médias da população, no Plano Piloto, e os setores populares nas distantes cidades satélites.

A abulia recebia grande contribuição da inexistência de representatividade política, sequer a permissão legal para funcionamento de partidos políticos. Ao lado disso, a mídia aceitava a tese de que em Brasília não acontecia nada. Até a criação do frustrado projeto do Correio do Planalto, praticamente não havia editorias locais nos seus órgãos de comunicação. A mídia quase restringia sua cobertura ao “aquário”, ao universo constituído pelos poderes federais constituídos, eleito como vitrine da cidade.

Daí a dificuldade de as direções nacionais dos próprios partidos políticos verem com tranquilidade a instituição de suas seções locais. Em alguns casos, a resistência teve que ser vencida com razoável enfrentamento interno, a que felizmente se associaram alguns políticos progressistas de outros estados brasileiros.

O marco da perspectiva de mudança na cidade viria a se dar 20 anos depois de os operários tomarem nas mãos o corpo de Juscelino, a quem aprenderam a ver como um amigo que visitava os canteiros de obra no tempo em que a cidade se implantava. Foi quando um ato político, num desenho incapaz àquela altura de se repetir em qualquer local do País, reuniu no mesmo palanque Ulisses Guimarães, Leonel Brizola, Lula e Tancredo Neves.

Os quatro líderes foram levados por seus correligionários brasilienses ao que seria um “debate”, no auditório da Associação Comercial. O debate era parte da mobilização para a votação de duas emendas (do senador Itamar Franco e do deputado Epitácio Cafeteira) que restituiriam representatividade aos moradores da capital brasileira.

O auditório regurgitou a quantidade de gente que tentava participar e os organizadores transferiram o ato para o estacionamento diante do prédio, os oradores utilizando um balcão improvisado como palanque. A polícia não aceitou isso e interveio, encerrando a manifestação com a utilização de grande aparato. O ato ganhou repercussão nacional.

CIDADE MUDA?

Mas a cidade era mesmo muda? Sim, mas é claro que a cidade muda. E Brasília mostrou a força com que mudou.

Mudou com os diversos comícios da campanha pelo direito a eleições, que juntaram a população em todas as suas cidades satélites e no Plano Piloto. Passou a ter atos políticos de movimentos contra aumentos de passagens de ônibus, mobilizações de universitários, de diferentes grupos culturais e de contingentes sociais que se sentiam marginalizados, entre eles mulheres e negros. Além de manifestações marcadamente políticas, que chegaram aos bares, como o Beirute, e deram origem ao Pacotão, bloco carnavalesco criado principalmente por jornalistas e que, com a sua tradicional irreverência, pautou os carnavais com denúncias e críticas políticas.

Como tornaram-se comuns também manifestações de trabalhadores dos poucos sindicatos então já estruturados e efetivamente controlados pelas categorias representadas. Ou por interesses do conjunto desses trabalhadores, como as realizadas contra os decretos-leis de arrocho salarial, em 1983. O crescimento delas acabou desencadeando as primeiras medidas de emergência, um reconhecimento evidente do regime de que os brasilienses, junto aos brasileiros que viessem à capital, poderiam promover pressão popular sobre o Congresso, levando-o a rejeitar os decretos-leis.

No caudal dessa efervescência, veio a campanha das DIRETAS JÁ, em 1984, que ganhou definitivamente as ruas. À véspera da votação da Emenda Dante de Oliveira, novas medidas de emergência e, de novo, as ações tresloucadas do general Newton Cruz que, desesperado com o buzinaço com que a população local respondeu à repressão, chegou a agredir automóveis com cassetetadas.

Brasília não se calou mais. Ocupou definitivamente as ruas, entre outras manifestações para exigir o impeachment de Fernando Collor, a derrubada de José Roberto Arruda e a punição dos deputados pilhados com ele na Operação Caixa de Pandora.

CIDADE DIFERENTE

Quem se criou em Brasília aprende cedo que aqui o pôr do sol é mais belo, a sua altitude permite que o horizonte seja mais amplo e o céu mais próximo. Acostuma-se a uma cidade mais organizada, capaz de impor-se e resistir até aos sucessivos desgovernos de Roriz.

Uma amiga me contou que, ao chegar em cidades tradicionais, tinha a impressão de vê-las cobertas de teias de aranha! Só depois de algum tempo descobriu que eram os fios que ligavam os postes, diferentes dos que estão nas tubulações enterradas de Brasília.

Mas, o que verdadeiramente marca a cidade quando chega aos 52 anos é a história produzida por seu povo. A história política, claro. Mas também a forma de se apropriar da cidade, dos seus espaços, de fazer a sua cultura.

Nessas pouco mais de cinco décadas, a cidade produziu e revelou tanto que me sinto à vontade pra listar nomes, com a certeza de esquecer muitos outros, entre os quais vários amigos. Pra não alongar demais, cito apenas nomes da música e do cinema: Renato Russo, Legião Urbana, Capital Inicial, Plebe Rude, Paralamas, Ney Matogrosso, Patrícia Pillar, Liga Tripa, Cássia Eller, Zélia Duncan, Clodo, Climério e Clésio, Teodoro do Bumba meu Boi (saudade), Oswaldo Montenegro, Vladimir Carvalho, Geraldo Moraes, Renato Mattos, Pedro Jorge, Natiruts, Raimundos.

Fernando Tolentino

sábado, 7 de abril de 2012

DEMÓSTENES, MARCONI E POLICARPO



Ainda como homenagem, na passagem do Dia do Jornalista, republico o editorial da revista Carta Capital, escrito pelo editor Mino Carta. 
A homenagem, não fosse já o texto em si, o libelo contra as deformações do jornalismo hoje praticado no Brasil, seria também merecida pela ação atribuída ao Governo de Goiás de retirar das bancas da edição anterior da revista em que uma reportagem evidenciava as ligações do governador Marcondes Perillo (PSDB) com o contraventor conhecido como Carlinhos Cachoeira.

DEMÓSTENES, MARCONI E POLICARPO

O caso do senador Demóstenes Torres é representativo de uma crise moral que, a bem da sacrossanta verdade, transcende a política, envolve tendências, hábitos, tradições até, da sociedade nativa. No quadro, cabe à mídia um papel de extrema relevância. Qual é no momento seu transparente objetivo? Fazer com que o escândalo goiano fique circunscrito à figura do senador, o qual, aliás, prestimoso se imola ao se despedir do DEM. DEM, é de pasmar, de democratas.
Ora, ora. Por que a mídia silencia a respeito de um ponto importante das passagens conhecidas do relatório da Polícia Federal? Aludo ao relacionamento entre o bicheiro Cachoeira e o chefe da sucursal da revista Veja em Brasília, Policarpo Júnior. E por que com tanto atraso se refere ao envolvimento do governador Marconi Perillo? E por que se fecha em copas diante do sequestro sofrido por CartaCapital em Goiânia no dia da chegada às bancas da sua última edição? Lembrei-me dos tempos da ditadura em que a Veja dirigida por mim era apreendida pela PM.
A omissão da mídia nativa é um clássico, precipitado pela peculiar convicção de que fato não noticiado simplesmente não se deu. Não há somente algo de podre nas redações, mas também de tresloucado. Este aspecto patológico da atuação do jornalismo pátrio acentua-se na perspectiva de novas e candentes revelações contidas no relatório da PF. Para nos esclarecer, mais e mais, a respeito da influência de Cachoeira junto ao governo tucano de Goiás e da parceria entre o bicheiro e o jornalista Policarpo. E em geral a dilatar o alcance da investigação policial.
Quanto à jornalística, vale uma súbita, desagradável suspeita. Como se deu que os trechos do documento relativos às conversas entre Cachoeira e Policarpo tenham chegado à redação de Veja? Sim, a revista os publica, quem sabe apenas em parte, para demonstrar que o chefe da sucursal cumpria dignamente sua tarefa profissional. Ou seria missão? No entanto, à luz de um princípio ético elementar, o crédito conferido pelo jornalista às informações do criminoso configura, por si, a traição aos valores da profissão. Quanto à suspeita formulada no início deste parágrafo, ela se justifica plenamente: é simples supor vazamento originado nos próprios gabinetes da PF. E vamos assim de traição em traição.
A receita não a dispensa, a traição, antes a exige nas mais diversas tonalidades e sabores. A ser misturada, para a perfeição do guisado, com hipocrisia, prepotência, desfaçatez, demagogia, arrogância etc. etc. E a contribuição inestimável da mídia, empenhada em liquidar rapidamente o caso Demóstenes, para voltar, de mãos livres, à inesgotável tentativa de criar problemas para o governo. Os resultados são decepcionantes, permito-me observar. A popularidade da presidenta Dilma acaba de crescer de 72% para 77%.
E aqui constato haver quem tenha CartaCapital como praticante de um certo, ou incerto, “jornalismo ideológico”. Confesso, contristado, minha ignorância quanto ao exato significado da expressão. Se ideológico significa fidelidade canina à verdade factual, exercício desabrido do espírito crítico, fiscalização diuturna do poder onde quer que se manifeste, então a definição é correta. E é se significa que, no nosso entendimento, a liberdade é apanágio de poucos, pouquíssimos, se não houver igualdade. A qual, como sabemos, no Brasil por ora não passa de miragem.
E é se a prova for buscada na nossa convicção de que Adam Smith não imaginava, como fim último do capitalismo, fabricantes de dinheiro em lugar de produtores de bens e serviços. Ou buscada em outra convicção, a da irresponsabilidade secular da elite nativa, pródiga no desperdício sistemático do patrimônio Brasil e hoje admiravelmente representada por uma minoria privilegiada exibicionista, pretensiosa, ignorante, instalada no derradeiro degrau do provincianismo. Ou buscada no nosso apreço por toda iniciativa governista propícia à distribuição da renda e à realização de uma política exterior independente.
Sim, enxergamos no tucanato a última flor do udenismo velho de guerra e em Fernando Henrique Cardoso um mestre em hipocrisia. Quid demonstrandum est pela leitura do seu mais recente artigo domingueiro na página 2 do Estadão. O presidente da privataria tucana, comprador dos votos parlamentares para conseguir a reeleição e autor do maior engodo eleitoral da história do Brasil, afirma, com expressão de Catão, o censor, que se não houver reação, a corrupção ainda será “condição de governabilidade”.
Achamos demagógica e apressada a decisão de realizar a Copa no Brasil e tememos o fracasso da organização do evento, com efeitos negativos sobre o prestígio conquistado pelo País mundo afora nos últimos dez anos. Ah, sim, estivéssemos de volta ao passado, a 2002, 2006 e 2010, confirmaríamos nosso apoio às candidaturas de Lula e Dilma Rousseff. Se isso nos torna ideológicos, também o são os jornais que nos Estados Unidos apoiaram e apoiarão Obama, ou que na Itália se colocaram contra Silvio Berlusconi. Ou o Estadão, quando em 2006 deu seu voto a Geraldo Alckmin e em 2010 a José Serra.
Não acreditamos, positivamente, que de 1964 a 1985 o Brasil tenha sido entregue a uma “ditabranda”, muito pelo contrário, embora os ditadores, e seus verdugos e torturadores, tenham se excedido sem necessidade em violência, por terem de enfrentar uma resistência pífia e contarem com o apoio maciço da minoria privilegiada, ou seja, a dos marchadores da família, com Deus e pela liberdade. Hoje estamos impavidamente decepcionados com o comportamento de muitos que se apresentavam como esquerdistas e despencaram do lado oposto, enquanto gostaríamos que a chamada Comissão da Verdade atingisse suas últimas consequências.
Agora me pergunto como haveria de ser definido o jornalismo dos demais órgãos da mídia nativa, patrões, jagunços, sabujos e fâmulos, com algumas exceções, tanto mais notáveis porque raras. Ideologias são construídas pelas ideias. De verdade, alimentamos ideias opostas. Nós acreditamos que algum dia o Brasil será justo e feliz. Eles querem que nada mude, se possível que regrida.

Mino Carta, editorial de CartaCapital

A MÍDIA BRASILEIRA E AS BOAS LIÇÕES DE MURDOCH


No Dia do Jornalista, há dois registros inevitáveis, como a minha homenagem aos colegas.
Uma parece meramente corporativa, mas pode ser tomada como uma advertência aos demais profissionais, pois se revela como uma perigosa tendência do mercado: a pejotização. O neologismo refere-se à prática (de resto, irregular) de empresas contratarem os seus empregados como se fosse uma relação entre empresas, deles exigindo que constituam-se previamente em pessoas jurídicas (PJs). O objetivo inequívoco é de sonegar os direitos trabalhistas e previdenciários. Falo disso hoje porque nossa “comemoração” coincide com número considerável de demissões em Brasília e os colegas não têm o que reclamar, salvo por via judicial, buscando configurar que havia efetivamente uma relação de trabalho.
A outra é a solidariedade com uma categoria em que deixamos cada vez mais de ser profissionais da notícia, para nos transformarmos nos porta-vozes de opiniões do patronato da mídia. Uma situação em que somos pautados em uma direção que não necessariamente significa a efetiva apuração dos fatos, mas a cata de elementos que possam dar ares de verdade ao que nossos patrões (ou direções de jornalismo) tenham antecipadamente decidido, não raro em uma articulação de intereses de empresas, levar ao público.
Nada mais oportuno que republicar o texto do jornalista Enio Squeff, publicado originalmente no sítio Carta Maior,


A MÍDIA BRASILEIRA E AS BOAS LIÇÕES DE MURDOCH


Não se sabe exatamente em que condições, ou por que, uma determinada expressão ou um nome entra no dicionário como adjetivo ou verbo– mas é possível imaginar que o Houaiss venha um dia a incorporar a palavra “murdochização” -e não necessariamente com “h”, mas com “q” mesmo. Keith Rupert Murdoch, conhecido como o “magnata da mídia “ não inventou nada de novo na história contemporânea da imprensa mundial, mas é dono de uma rede infinda de jornais, comprovadamente não dá guarida a qualquer opinião que não seja estritamente a sua e é uma das forças mais reacionárias com que a direita e os conservadores podem contar no mundo.
Orson Welles inventou o seu “Cidadão Kane” a partir de uma sociedade multifária: o dono de jornais é um manipulador notório, um sacripanta – mas não manda sozinho. Tem rivais. Rupert Murdoch ainda conta com alguns resistentes residuais – mas ninguém duvida de que se pretenda hegemônico. E que siga, afinal a lei do capitalismo rumo ao monopólio.
É natural. Marx, que teve de se mudar de vários países por suas ideias, só conseguiu sobreviver numa Inglaterra minimamente democrática, onde vigeu durante mais tempo a idéia de “imprensa livre”. Talvez não seja apenas irônico que Rupert Murdoch tenha instalado parte do seu império justamente na Inglaterra. Foi a partir dela, em todo o caso, que o compositor francês Hector Berlioz passou a venerar Shakespeare, assim como foi no Império Britânico que, anos antes, exilado, Voltaire, também francês, pode apreciar as primeiras experiências democráticas no sentido literal da palavra. Parece, em suma, haver uma convergência entre idéias livres, inteligência e democracia.
O criador do primeiro jornal brasileiro (Correio Brasiliense), o gaúcho Hipólito da Costa (1777-1823), poderia ter tentado editar seu periódico em outros lugares do mundo. Preferiu a Inglaterra, por motivos óbvios. Ninguém o premiria por opinar sobre seu país a quase dez mil quilômetros de distância. Mas é aqui que talvez entre a palavra “mudorchização” da imprensa.
A rigor, em alguns aspectos ela já existe. Não parece fortuita, a proibição expressa que a imprensa hegemônica brasileira vem mantendo, de afastar das suas páginas nomes de artistas, de escritores e intelectuais de todos os tipos, que professam opiniões diferentes das orientações de seus editoriais. E não se afigura, igualmente, uma exceção que os jornais omitam notícias e inventem outras, tudo em nome da sua independência e da sua prerrogativa de vetar o que não lhe agrada. Não existe brasileiro minimamente informado, que não sabe haverem omissões ou notícias deturpadas na imprensa brasileira. Talvez seja aí que mudochização da mídia comece a ter algum sentido.
Não é novidade, certamente, que a imprensa sempre foi restritiva. Pietro Maria Bardi, criador do Museu de Arte de São Paulo (MASP), não podia ter seu nome estampado no “Estadão”. A proibição não era explícita, mas corria entre o seu corpo redacional que Bardi não deveria ser mencionado nas páginas do jornal, fosse para o que fosse. Tinha sido coadjuvante de Assis Chauteaubriand, dono dos Diários Associados, na obtenção de recursos junto ao empresariado paulista – não raro sob a ameaçadas de chantagem – para a compra das obras garimpadas pelo próprio Bardi numa Europa economicamente combalida, depois da Segunda Guerra. A história é conhecida.
O que se ignora são justamente os interditos da grande imprensa. Na época, não havia “impérios midiáticos” como hoje; tampouco os jornais cerravam qualquer acordo para não mencionarem denúncias de corrupção de políticos ligados, sabe-se bem porque, a quase todos os órgãos de imprensa. “O Estado de S. Paulo”, por exemplo, criticava a “Veja” que, por sua vez, não poupava os Mesquitas; ou os Frias, ou mesmo Roberto Marinho de “O Globo” Era uma guerra. democraticamente suja; ou limpa ( dependendo das denúncias mútuas). E até onde a formação dos oligopólios permitia, as coisas não eram unânimes. Se uma publicação tinha um furo – valia o furo a despeito de todo o resto. Hoje a coisa mudou.
Jacob Burkhardt que foi o grande historiador da Renascença no século XIX, ao falar sobre Aretino, que, com razão, ele considerava acima de tudo um jornalista – anotava, imparcialmente, que a maledicência entre os potentados italianos, era uma prática comum. Aretino mesmo, mediante bons emolumentos, tanto podia falar bem do Papa, quanto ridicularizá-lo. Não era uma questão ideológica. Hoje é exatamente essa a questão. E Murdoch (mas também muitos mais), só é citado como passível de alguma censura, quando ultrapassa as leis do comércio (ninguém imagina que fechar jornais seja, em princípio, um bom negócio) – no mais, porém, é um exemplo a ser seguido. Ou será que os donos dos principais jornais e meios midiáticos brasileiros não o invejam?
A resposta talvez não inaugure uma nova expressão na língua portuguesa –a “murdochização”. Mas há uma confluência de interesses “murdochianos” no oligopólio midiático brasileiro. A mesma notícia que é acolhida – ou não – por Rupert Murdoch, e seu império, guardadas as proporções do alinhamento dos jornais, revistas e estações de TV, aos programas e procedimentos dos partidos brasileiros que ela apóia – é integralmente acoitada por aqui.
Claro, a” murdochização” – a palavra é complicada, deve-se admitir – não é senão uma virtualidade. Por enquanto, a mídia nativa aspira chegar a um poder incontestável, o que está cada vez mais difícil devido à rede social. Uma vez que isso se realize, porém, “depois a gente conversa”. De qualquer maneira, a tendência à “murdochização”, essa parece inegável. Alguém do oligopólio, vencerá. O resto, o império “murdochiano”, no momento oportuno explicará.
Em tempo: a palavra sacripanta também entrou no dicionário a partir de um personagem. Era “Sacripante”, figura descrita como espertalhão e velhaco, na canção de gesta de Matteo Maria Boiardo (1441-1494). Mais tarde entraria no “Orlando Furioso”, de Ariosto, mas já então tinha sido devidamente dicionarizada para sacripanta com o sentido que guarda ainda hoje.


Enio Squeff (artista plástico e jornalista). Publicado em DEBATE ABERTO, no sítio Carta Maior, em 3 de abril de 2012.