segunda-feira, 24 de novembro de 2014

QUER MAIS CONSCIÊNCIA DO QUE TEM O NORDESTINO?

Ao driblar Napoleão Bonaparte e trazer a Corte de Portugal para o Brasil, em 1808, Dom João, cuidou de fazer escala em Salvador. Ali, além de abrir os portos “às nações amigas” (leia-se à Inglaterra) criou o curso de cirurgia, que veio a ser a primeira experiência de ensino brasileira em nível superior. Novas jogadas de craque do Príncipe Regente, de Portugal, que assim acalmou a elite baiana da época, ávida por recuperar a condição de capital.
Nos dois séculos seguintes, foi a última decisão política do governo central em que a Bahia foi colocada em situação de vanguarda com relação à educação.
Com uma área superior à da França e a população superada pela da Holanda em pouco mais de um milhão de habitantes, a Bahia contava apenas com a Universidade Federal da Bahia, fundada em abril de 1946.
Relativa compensação só se deu a partir de 2003, com a chegada de Lula à Presidência da República e sua determinação de resgatar a dignidade do Nordeste, política que teve continuidade com o governo de Dilma Rousseff.
Além da UFBA, a população baiana tem hoje à disposição a Universidade Federal do Sul da Bahia, a Universidade Federal do Recôncavo da Bahia, a Universidade Federal do Oeste da Bahia e compartilha com piauienses e pernambucanos a Universidade Federal do Vale do São Francisco. Vários campi levam essas instituições a diversos municípios do Estado, enquanto outros contam com Institutos Federais de Educação.
Não se trata de um privilégio da Bahia ou uma discriminação com os estados que não integram o Nordeste. Para dar outros exemplos, Minas Gerais tinha cinco universidades no início do governo de Lula e atualmente conta com 11; o Rio de Janeiro tem quatro, dobrando o número existente em 2003; São Paulo, que não tinha universidades federais, hoje tem três.
O que pretendo deixar claro com o exemplo baiano é que o Nordeste não precisa mais padecer de complexo de inferioridade.
A mudança na política que excluía a região dos frutos do desenvolvimento brasileiro não se resume à questão da educação superior.
No período de 2002 a 2010, a participação do Nordeste no Produto Interno Bruto do Brasil teve um crescimento de 0,5%, alcançando 13,5% do total. Esse crescimento só foi superado pelo Norte, que passou a ter 0,6% da Renda Nacional. O Produto Bruto do Nordeste saltou de R$ 191,5 bilhões para R$ 507,5 bilhões. Não é pouco. Isso significa que a sua taxa média anual de crescimento do PIB per capita foi de 3,12% nesse período. A do Brasil alcançou 2,22%, enquanto o Sudeste ficou em 1,81%.
Durante a campanha, tive contato com inúmeros brasilienses que vieram de lá ou vão ao Nordeste, especialmente para visitar familiares. Os depoimentos são bastante significativos.
De vários, ouço que a família não tinha acesso a energia elétrica ou água em casa. De alguns, já colho testemunhos do atendimento à saúde agora disponível nas pequenas e médias cidades do interior. Fico sabendo que o jegue deixou de ser um meio de transporte e de tração ao ser substituído por motocicletas ou carros, não faltando quem se queixe de que os animais, sem serventia, tornaram-se perigosos às margens das rodovias.
Há quem relate importantes sinais de mudança na economia do interior nordestino. A Bolsa Família deu um novo impulso ao comércio das pequenas cidades, surgindo inclusive algo que era raro em milhares de municípios: o emprego com carteira assinada. As economias das cidades médias foram beneficiadas com os novos estabelecimentos de educação, inclusive de nível superior. Ouvi relatos de que a presença de professores universitários impôs novos padrões de consumo e níveis de serviço.
Uma colega de trabalho conta que tirou férias e foi descansar com a mãe no interior do Ceará. Aproveitou o dinheiro extra e comprou um celular mais sofisticado, repassando o seu para a filha. “Pois o meu era o pior celular da cidade e muitos tinham mais de um aparelho”, garantiu.
Achei ainda mais revelador o relato de outro colega. Ele e amigos que vieram de sua cidade no sul do Piauí a frequentam sistematicamente, na festa da Divina Pastora (padroeira da cidade), nas férias e até para votar. O grupo reunia sempre as roupas usadas e levavam para os parentes. Há alguns anos, ouviram a reclamação: “Nós podemos comprar roupas!” Passaram a deixar as roupas na Igreja, que as vende em bazares que organiza regularmente. O depoimento mostra o brio do povo da Região e desmente quem alega, por exemplo, que os nordestinos fazem da Bolsa Família um meio de vida.
É SÓ VISITAR A REGIÃO
Fechadas as urnas, saí de férias e resolvi fazer o que chamei de giro comemorativo. Estimulei amigos (alguns virtuais) a nos encontrarmos quando passassem por suas cidades e comemorarmos, juntos, a vitória de Dilma.

Confesso que não consegui sucesso com os amigos virtuais de Goiânia, que alegaram compromissos diferentes no fim de semana em que passei por lá, alguns inclusive fora da cidade. Fui a Uberlândia (MG), onde confraternizei com Denise Silva Arantes. Passeamos pela Feira da Gente, onde almoçamos, e papeamos como se aquilo representasse meses e não nos conhecêssemos até então apenas pelo facebook. Depois, ela me apresentou a familiares e peguei a estrada para Jataí, em Goiás.
Jantei em Jataí com velhos amigos do tempo em que viviam em Brasília: Lena, Thainá Helena e Thaís Helena, Hildene, Henrique e Giovani. Participaram também vários amigos deles, que ali agitaram a campanha de Dilma. Por nos vermos e por poder comemorar aquela vitória, o clima foi de enorme euforia, do que não escaparam sequer as crianças.
De volta a Brasília, segui para Salvador, onde mora uma banda de minha família. Curti rever filhos, a mãe deles, netos, genro, meu irmão e minha cunhada, minha tia Janinha e amigos. Fiz questão de agradecer enfaticamente o resultado de Dilma na Bahia e a vitória de Rui Costa (PT) para dar continuidade ao trabalho de Jacques Wagner. É claro que houve quem não votasse nos candidatos do PT, mas isso é outra história.
Fiz o retorno de carro e vivi a oportunidade de confirmar o que me contam euforicamente os nordestinos de Brasília.

Vim sem pressa, cuidando da segurança e saboreando cada quilômetro. Dormi a primeira noite em Lençóis, com direito a uma cerveja na praça, para relaxar, e uma breve caminhada pela manhã. Como chegara tarde e não os encontrei acordados, visitei um primo e sua mulher, que têm, na cidade, a Pousada Raio de Sol (olhe o comercial aí, gente!). O suficiente para notar, no passeio, a presença do campus avançado da Universidade Estadual de Feira de Santana e ouvir de meu primo a influência desse tipo de estrutura na economia local, evitando que as famílias tenham de sustentar os filhos enquanto estudam em outras cidades.
A partir daí, foi uma sucessão de sinais da presença do governo, no geral ações articuladas do Estado e federal.
Na estrada entre Lençóis e Ibotirama – passando por Seabra e Oliveira dos Brejinhos – pude ver diversos ônibus escolares, dos que já me falavam os nordestinos de Brasília, explicando que não é apenas para garantir o Bolsa Família que as crianças permanecem estudando, mas principalmente por não ter mais de enfrentar uma caminhada de não raro mais de uma légua entre a casa e a escola.

O mais enfático estaria por vir, especialmente na estrada estadual que liga Ibotirama e Bom Jesus da Lapa. A região é visivelmente seca e as casas, que não são mais de taipa (de sopapo, como se diz na Bahia), mas de alvenaria, tinham ao lado grandes reservatórios ligados às calhas, para captação de água de chuva.  A uniformidade deles despertou minha curiosidade. Parei para me informar e tomei conhecimento de que se trata de um programa da Codevasf – Companhia de Desenvolvimento do Vale do São Francisco.

Pouco adiante, já no município de Paratinga, vi que as casas eram também rigorosamente iguais, a maior parte em fase de construção, e com distância regular entre elas. Entrei em uma dessas pequenas propriedades e interrompi o plantio de milho do Senhor Bento para entrevistá-lo. Trata-se do Assentamento Jovita Rosa. O nome é uma homenagem à líder daqueles sem-terra, finalmente assentados, após quase vinte anos de luta. Alguns quilômetros adiante, encontro o Assentamento Santo Antônio, mais antigo, já produzindo e com algum gado. Ali, a Codevasf mantém um programa de abastecimento e distribuição de água.
Não foi preciso esperar muito para ser surpreendido por uma nova placa, indicativa de uma pequena obra: a reforma da Unidade de Saúde da Família de Lagoa Dantas. São obras de pequeno porte, mas representando a prestação de serviços a uma população certamente acostumada a viver desassistida de qualquer serviço público. Se já se podia ver que a USF de Lagoa Dantas estava praticamente concluída, encontro pouco depois uma obra em fase intermediária: é a construção da Unidade Básica de Saúde do Entroncamento do Porto Novo.
Antes de chegar a Bom Jesus da Lapa, ainda passaria pelas instalações locais da Codevasf, onde a pluralidade de placas dá uma perfeita ideia da quantidade de ações desenvolvidas na área.

À saída de Bom Jesus da Lapa, nova surpresa. É a presença do vistoso campus do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia contrastando com a paisagem seca da região. Significa oportunidade de formação em nível superior para jovens que, como disse meu primo em Lençóis, já não precisam procurá-la na capital ou em cidades maiores do interior baiano.
Era como se a presença estatal desfilasse à minha frente enquanto eu percorria centenas de quilômetros pelo sertão baiano.
NORDESTINO VALORIZA O QUE NÃO TINHA
Compreendi: para quem mora em uma grande cidade, essas e outras realizações certamente também estão bem ali, mas não são vistas, cobertas pela multiplicidade de informações que nos atraem a atenção simultaneamente. Além do que, em alguns casos, não representa grande novidade, pois os seus moradores estão acostumados a dispor de alguma atenção pública.  
Passada a eleição, vimos uma enxurrada de mensagens preconceituosas, voltadas contra os brasileiros do Norte e do Nordeste, que decidiram garantir a continuidade dessa política de inclusão social e desconcentração regional dos frutos do desenvolvimento. Para isso, juntaram-se à maioria dos cariocas, fluminenses e mineiros que tiveram a mesma convicção, assim como milhões de eleitores do Sul, do Sudeste e Centro-Oeste.
Inconformados com o resultado das urnas, as mensagens taxavam os nordestinos de “burros”, inconscientes, incapazes de fazer uma escolha eleitoral adequada. Pude constatar que a ação do governo federal não é focada no Nordeste (ou no Norte), mas apenas estende a tais regiões benefícios que, antes, eram restritos a outros brasileiros. Tanto que vi a BR 116 sendo duplicada na saída de Feira de Santana, mais testemunhei as obras de duplicação já em fase final na BR 060, no trecho entre Jataí e Goiânia. Ou sendo implementadas na BR 050, entre Cristalina e Uberlândia. Mas, conhecendo razoavelmente bem o interior de vários estados do Nordeste e, particularmente, essa região, que já percorri diversas vezes, posso atestar que a presença do Estado é, aí, uma novidade. Basta lembrar, há não muitos anos, quantas vezes passei por longos trechos de estradas em que os motoristas jogavam moedas para pessoas que cobriam com terra os inúmeros buracos.  
Cheguei a Brasília me perguntando: serão mesmo tolos os nordestinos que votaram pela continuidade dessa nova política? E o que dizer de nordestinos que votaram para interrompê-la, devolvendo a região em que vivem a grupos políticos que a mantiveram segregada ao longo de séculos?
Fernando Tolentino

DICAS DE ESTRADAS NOS TRECHOS QUE PERCORRI DURANTE AS FÉRIAS
Fiz 3 mil quilômetros de estradas nas férias em um giro comemorativo.
Aproveito para repassar as dicas desse roteiro, que podem ser interessantes para muitos amigos e leitores do Blog de Tolentino que devem usar algumas dessas estradas nas próximas férias, daqui a não mais que uns dias.
O giro teve duas fases. A primeira compreendeu Brasília – Uberlândia (MG) – Jataí (GO) – Brasília. A segunda se deu no trecho Salvador – Brasília. Usei avião na ida para Salvador.
Brasília – Uberlândia (MG): BR 040 e BR 050
423 km – Tráfego extremamente intenso entre Brasília e Luziânia e ainda intenso até Cristalina, onde há troca de rodovia. Esse trecho tem uma alternativa (que não usei), a rodovia estadual GO 436 (Goiás Verde), em excelente estado de pavimentação e com pouco tráfego, o que compensa o excedente em distância, a que se pode ter acesso pela saída para Unaí próxima ao bairro Tororó (BR 251) ou pouco depois de Luziânia, pela rodovia GO 010. Há obras de duplicação entre Cristalina e Araguari. A viagem volta a ter maior intensidade de tráfego entre Araguari e Uberlândia. Mas a estrada está duplicada a partir da Ponte Estelita, junto a Araguari. A rodovia entre Cristalina e Uberlândia está em bom estado e tem boa sinalização.
Uberlândia – Jataí (GO): BR 365 e BR 060
426 km – Tráfego intenso na saída de Uberlândia e nas proximidades de Rio Verde. A rodovia tem bom estado e boa sinalização, salvo em pequenos trechos e na passagem pela BR 364 (em que há sinalização para Itaipava), quando o motorista pode ser induzido a erro e entrar na estrada errada.
Jataí – Brasília: BR 060
527 km – Rodovia em fase final de duplicação no trecho entre Rio Verde e Goiânia, o que acarreta trânsito pesado, que se torna muito ainda mais intenso nas proximidades de Goiânia. Esse tráfego se repete nas proximidades de Brasília. A maior parte da rodovia utilizada tem sinalização perfeita. Há poucos postos de abastecimento (ou locais para lanches e outras atenções pessoais) entre Jataí e Goiânia.
Salvador – Brasília:
Trecho Salvador – Feira de Santana: BR 324
105 km – Rodovia totalmente duplicada, com dois pedágios (R$ 1,30 para carros pequenos), piso e sinalização em bom estado e tráfego muito intenso em todo o percurso, mas fluxo em boa velocidade. Sofri longa parada por conta de um acidente à frente.
Trecho Feira de Santana – Ibotirama: BR 116 e BR 242
538 km – Obras de duplicação na BR 116, com construção de viadutos e retornos que tornam a saída de Feira de Santana extremamente tumultuada e demorada. O asfalto do trecho da BR 116 até a entrada para a BR 242 está em bom estado. Pessoas que utilizam frequentemente as estradas da região sugerem que se dê preferência à Estrada do Feijão (primeira saída da BR 116, com indicação para Irecê), utilizando-a até Ipirá, de onde se pode seguir para Lençóis e retomar a BR 242. Esta rodovia tem piso em bom estado, mas maior volume de tráfego (inclusive de caminhões), sinalização desgastada e alguns trechos com muitas curvas no início da Chapada Diamantina. Com o uso da alternativa, evita-se também quase todo o percurso que seria utilizado na BR 116 e os 15 km excedentes podem ser compensados. Poucas opções de postos de abastecimento ou paradas para lanches e atenções pessoais na BR 242.
Trecho Ibotirama – Bom Jesus da Lapa: BA 160
141 km – Rodovia estadual, um pouco mais estreita, mas com asfalto em bom estado e sinalização adequada. Poucas opções de postos de abastecimento ou paradas para lanches e atenções pessoais.
Trecho Bom Jesus da Lapa – Brasília: BR 324 e BR 020
670 km – Há desgaste de vários trechos, com eventuais buracos entre Bom Jesus da Lapa e o entroncamento das duas rodovias e alguns poucos trechos com o asfalto sofrendo desníveis daí até Formosa. Entre Formosa e Brasília (100 km), a rodovia é inteiramente duplicada, mas recebe obras de recapeamento até Planaltina, já no Distrito Federal.

terça-feira, 4 de novembro de 2014

"SE É PRA MIM, SOU A FAVOR"



Cresci em um tempo em que os liberais confrontavam a esquerda alegando que o ideal não seria que a sociedade desse a todos a mesma condição de vida, mas igualdade de oportunidades.
Não sendo um liberal, até que achava uma máxima interessante.
Pois bem.  Nasci em uma família de classe média baiana. Se não absolutamente branca (seria pedir muito em Salvador), mas tida como tal. Até porque meu pai se casara com uma catarinense, a minha mãe. Ao galgar a condição de pequeno comerciante, meu avô impôs-se a meta de formar os filhos. De modo que meu pai, bacharel em Direito, tornou-se promotor público e professor universitário. Minha mãe, enfermeira, graduou-se também em Nutrição e foi imediatamente aproveitada como professora desse curso. Adiante, faria um pós-graduação no México e se aposentaria como diretora da Escola.
Éramos de classe média. Se ter filhos com formação superior já era um sonho para meu avô, imagine para os meus pais, ambos professores da Universidade Federal da Bahia.
Consegui passar no exame de admissão para o Colégio de Aplicação. Equivalia mais ou menos ao quinto ano do primeiro grau, de modo que ali faria mais quatro de curso ginasial e o segundo grau. Colégio público, vinculado à Faculdade de Filosofia da Universidade Federal da Bahia, era seguramente um dos três melhores de Salvador. Tão bom que, sendo público, eu era de família situada na média de renda dos estudantes, talvez um pouco abaixo disso. As vagas eram disputadas por crianças e adolescentes vindos de classes abastadas. De modo que não precisei de preparação para o vestibular. Pra falar a verdade, ainda tentei um reforço em matemática, já que vinha de curso clássico, onde a disciplina era restrita ao primeiro ano e com nível de exigência inferior. Para completar o valor do cursinho, acrescentei inglês.
Uma sala comprida, em que os vestibulandos se espremiam, mal tendo como escutar o professor. Eu chegava atrasado e, claro, só conseguia lugar no fundão. Ao meu lado, um rapaz gritava; “Pode repetir, professor”. De longe, repetia o que representava no quadro negro: "Ângulo alfa e ângulo beta”. Lá do fundo, mais um reclamava: “Não deu pra escutar”. Já irritado, mas preocupado em repassar toda a disciplina, vem a resposta: "Alfa e beta; estou falando grego?" Levantei-me e saí. Concluí que, com sorte, até podia aprender matemática, mas desaprenderia o resto. E larguei as duas disciplinas. A aprovação no vestibular de Administração, na mesma Universidade Federal da Bahia, foi garantida pelo básico do Colégio de Aplicação. Em uma das primeiras colocações, vale lembrar, como se esperava de seus ex-alunos.
Passados quatro anos, terminei o curso e logo fui aproveitado como profissional. Era um dos primeiros cursos de Administração do Brasil, de modo que não havia problema de colocação no mercado. Mais quatro anos e fui convidado para trabalhar no MEC, em Brasília.
Foi nessa época que decidi cursar Jornalismo. Não me sentia acomodado trabalhando no governo em pleno período da ditadura. Não precisei um novo vestibular para ingressar no curso, pois já tinha uma graduação.
A longa remissão biográfica serve apenas para conduzir à reflexão: onde está a tal “igualdade de oportunidades”?
Não estou renunciando aos meus méritos pessoais. Mas, tenho que reconhecer, as condições me foram amplamente favoráveis.
De classe média e filho de profissionais de nível superior, ambos depois professores universitários, já nasci em situação que me dava boas condições comparativas, além de me encaminhar para uma formação acima do conjunto da sociedade. 
É importante, aqui, lembrar um esforço localizado, em Salvador, para reparar essa desvantagem dos filhos de classes econômicos inferiores.
Testemunhei a implantação de preparativos para que 30 ou 40 crianças comprovadamente pobres tivessem melhor condição para concorrer no exame de admissão do nosso Colégio. Foi uma iniciativa da notável professora Maria Angélica Matos, então diretora. Metade da turma foi aprovada e foi acompanhada durante a 1ª. Série, saindo-se muito bem.
Angélica, com quem tenho a felicidade de manter relação pessoal ainda hoje, explica que “o objetivo era mostrar que o pobre tem vez se lhe derem oportunidade.” Modesta, faz um reparo à qualificação de notável. “Basta ter sensibilidade e formação política”, avalia. E conclui: “Hoje, sinto-me feliz ao ver a realização de um sonho ‘muito sonhado’ na década de 1960.”
A verdade é que o exame de admissão foi a minha primeira confirmação do diferencial de classe. O detalhe é que, a partir daí, meu desenvolvimento futuro estava mais ou menos assegurado e o custo desse desenvolvimento seria integralmente bancado pela sociedade: cursos ginasial e colegial, assim como o superior, em instituições gratuitas, da Universidade Federal da Bahia.
Certa vez, um amigo lembrou um fato ocorrido quando voltou à casa dos pais, que viviam em um bairro popular, após graduar-se em Administração e passar alguns anos fora da Bahia. Ao entrar em um bar próximo para comprar refrigerantes, foi cumprimentado por amigos de infância, os mesmos que não tomavam conhecimento de que fosse o dono da bola e escalavam o time, deixando-o sentado no meio-fio para entrar quando alguém cansasse ou, quando muito, determinando que ficasse no gol. Esses mesmos amigos dirigiram-se a ele com reverência, chamando-o de “Doutor” e não pelo apelido ou, ao menos, o nome. Já haviam "aprendido" a estabelecer uma nítida sujeição social.
Importa, agora, é esta reflexão. Enquanto eu me tornava o que sou hoje, um profissional com dupla graduação superior e três cursos de especialização, a sociedade investia em mim. E a sociedade não é uma coisa abstrata. A sociedade é aquela turma que trabalha e produz, quase sempre com salários escassos e muitas vezes não recebendo suficiente compensação do Estado.
Ainda na universidade e já com modesta remuneração de estagiários, reuníamos anualmente os colegas para preenchermos os complicadíssimos formulários de Declaração de Rendimentos. Participou conosco o marido de uma professora que queria uma ajuda. Tinha alguma terras, praticamente improdutivas, já que não tinha capital suficiente para explorá-las. Mas era agrônomo do Estado. Ao final, foi o único sem nada pra pagar. Era beneficiado pela chamada Cédula G, utilizada pelos proprietários rurais. Ali, o imposto sumia.
Trabalhei como auxiliar de contabilidade durante o tempo de faculdade, prestando serviço para várias empresas. Fiquei impressionado porque eram todas absorvidas como sendo da empresa as despesas pessoais dos sócios: aquisição e manutenção dos carros da família, custeio de viagens, despesas de saúde e por aí vai. Os filhos não recebiam mesadas, mas eram registrados na folha de pagamento. A retirada era próxima do salário mínimo. Resultado, nada de imposto de renda para os sócios e imposto muito menor para as empresas.
Impossível não comparar com a nossa situação do tempo de estagiários!
O que me pergunto hoje é que direito eu tenho de negar o mínimo de compensação aos filhos de muitos que produziram para eu chegar à minha atual condição pelas condições desvantajosas que lhes foram oferecidas para ascender na vida .
Pois são políticas voltadas para atingir esses resultados que são combatidas atualmente pelos neoliberais, filhos e netos de muitos daqueles que, outrora, enfrentavam a esquerda com o discurso da igualdade de oportunidades.
São esses os que, raivosos, não aceitam um resultado eleitoral que vai representar a confirmação e aprofundamento desses programas de compensação social.
Fernando Tolentino