quinta-feira, 25 de setembro de 2014

A PRESSA ÀS VEZES NOS TRAI



Quando jovens, todos temos muita pressa!
No meu tempo de estudante secundarista e universitário, a inquietação era imensa.
Contestávamos os valores culturais, especialmente a colonização a que o Brasil já era submetido. Nasceram daí o Cinema Novo, a Bossa Nova, o Tropicalismo e tantas outras manifestações de nova cultura ou contra-cultura. Contraditamos costumes e derrubamos, por exemplo (mas não só), a inapelável exigência de virgindade como exigência para a mulher casar. Contestamos fundamentos da autoridade paterna e do distanciamento entre professores e alunos.
Perseguíamos cada vez maior liberdade, justamente quando o Brasil vivia sob uma ditadura, que não tardou a se tornar sanguinária. Mas não repelíamos apenas toda a forma de repressão, censura, perseguição às manifestações libertárias. Aqueles jovens eram sinceramente indignados com as condições sociais do País.
O retirante, banido de sua terra pela seca, pela sede, pela miséria e pela fome era uma bofetada em cada um de nós. Considerávamos simplesmente inaceitável a impossibilidade de acesso aos estudos pelas classes (em tudo) marginalizadas. Quanto mais o analfabetismo, chaga que contaminava parcela enorme da população! A morte prematura, especialmente dos que com comiseração eram chamados de “anjinhos”, pequenos caixões brancos que desfilavam diante de nós, mesmo nas capitais e cidades maiores. Moléstias como a doença de chagas, que tragavam famílias inteiras de moradores em casas de taipa, a tuberculose, a elefantíase, comum aos moradores dos “alagados”, do mangue, dos mocambos. As mortes por verminoses ou diarreias.
Tudo isso nos agredia, pois nos sentíamos responsáveis pelas condições de exclusão social. Era enorme a ansiedade por mudarmos tudo isso.
Não dava para crer em mudanças por meio de eleições. Dois partidos: o do poder e o criado para aparentar uma democracia. Se esse partido figurante, o MDB, oferecia algum risco para a supremacia do poder central, mandatos eram cassados ou as regras do jogo eram mudadas. Bem simples assim.
E nós com uma pressa enorme para superar aquilo tudo. Muitos acabamos concluindo que a saída era a revolução.
Às favas as eleições. E, já que iríamos fazer a luta para tomar o poder, por que conquistar apenas a liberdade? E muitos enveredamos por organizações que se propunham a implantar o socialismo no Brasil. Em curto prazo, claro. Polop (depois POC), PCBR, PCdoB, MR 8, Var Palmares, dissidências várias do PCB, AP (a minha Ação Popular) eram siglas que corriam de boca em boca, disputando a arregimentação de militantes e espaços no movimento estudantil.
Vários foram para a luta armada, determinados a derrubar o regime e implantar o socialismo ou, no mínimo, um estado popular.
As organizações foram praticamente exterminadas, milhares dos jovens mais comprometidos com a superação de miséria da sociedade brasileira foram presos, torturados, mortos. Não poucos tiveram que deixar o País. É claro que muita gente se acomodou. Seduzida pela fortuna ou pelo sucesso, passou a considerar uma bobagem aquele passado. Um erro ou uma brincadeira de crianças.
O regime, especialmente hegemônico após a decretação do AI 5, impôs o seu modelo. Inacreditáveis ingressos de capital estrangeiro – que gerariam uma enorme dívida externa – financiaram o que era apresentado à sociedade como modelo de desenvolvimento e modernização.
É claro que houve crescimento econômico e desenvolvimento tecnológico, com a implantação de lógica, diretrizes, concepções e estilo importados. Não foram poucas as empresas que se beneficiaram com esse processo. O capital especulativo dizimou as pequenas organizações financeiras, surgindo imensos conglomerados. A economia concentrou-se ainda mais nos centros urbanos, especialmente os do Sudeste.
Enquanto se expandia a fronteira agrícola e devastavam-se os recursos florestais, o campo foi sendo contraditoriamente esvaziado, multiplicando as populações marginalizadas das grandes cidades. Devemos a esse processo o inchaço e a favelização de nossas regiões metropolitanas.
Esse processo de urbanização foi avassalador, invertendo-se o perfil de ocupação do espaço territorial ao cabo de pouco mais de duas décadas: os 70% que viviam no campo minguaram para discretos 30%.
O Brasil se tornou um país com imensas megalópoles: São Paulo beirando os 12 milhões de habitantes; Rio de Janeiro aproximando-se 6,5 milhões; Salvador, com 2,9 milhões; o Distrito Federal, já atingindo 2,8 milhões (cerca de 4 milhões, se considerado o seu entorno goiano e mineiro); Fortaleza, com mais de 2,5 milhões; Belo Horizonte, com apenas 100 mil habitantes a menos e Manaus, já ultrapassando os 2 milhões. Outras 14 capitais ultrapassam a casa de um milhão, juntando-se a esse grupo as paulistas Guarulhos e Campinas, assim como São Gonçalo, no Estado do Rio.
Esse quadro era apresentado aos brasileiros como mais uma comprovação de modernidade e desenvolvimento. Mas a verdade é que raros países do mundo convivem com uma realidade dessas.
Nos Estados Unidos, em que Nova Iorque chega a 8 milhões de habitantes, o seu tradicional centro industrial, Detroit, é a décima maior cidade, com 950 mil moradores. Paris é a única cidade francesa que bate a marca de 1 milhão e Marselha (segunda maior cidade) tem a população equivalente à de Teresina. Na Alemanha, são três: Berlim, Hamburgo e Munique (1,3 milhão). Ceilândia, maior cidade satélite de Brasília, tem população equivalente à de Florença (Itália) e à de Miami (Estados Unidos).
Nunca é demais lembrar que não se trata somente de um problema de tamanho dessas cidades, mas principalmente do caráter abrupto do processo de urbanização.
Chegaram às cidades pessoas despreparadas para a vida em centros urbanos, sem habilitação para o mercado de trabalho e facilidade para conviver com os padrões de vida de cidades. Basta lembrar o forte significado da unidade familiar que haviam deixado no meio rural. A família é uma unidade produtiva no campo e uma unidade de consumo na cidade. As migrações raramente traziam famílias para as cidades, mas quase sempre apenas um de seus membros. Em muitos casos, não se deram propriamente migrações. Pequenas cidades passaram a ter só havia mulheres e crianças, os homens deslocando-se pelo Brasil para aproveitar épocas de plantio e colheita ou constituindo o exército de “barrageiros”, gente com ocupação transitória em grandes obras.
Com níveis consideráveis de desemprego e a inexistência de programas sociais para recepcionar ou amparar as novas populações marginalizadas de nossas imensas cidades, é fácil concluir o impacto em níveis de morbidade e problemas de segurança.
Esse foi um dos aspectos mais perversos do novo Brasil, herdado dos longos anos de ditadura. E que provocaria efeitos duradouros, impactando fortemente a vida das cidades.
Ninguém diga que é fácil adaptar cidades a essa realidade, suas redes de serviços urbanos (água, eletricidade, rede viária, transportes) ou estruturas de saúde, educação, formação de mão de obra. Para não falar da face não menos visível, a de insegurança, irmã siamesa de uma sociedade socialmente desestruturada e sem condições razoáveis de sobrevivência.
É chocante ver alguém, diante dos grandes problemas atuais, dizer que isso não havia durante a ditadura, sem atentar quem foi responsável por chegarmos a tal ponto.  
COMO ENCARAR ESSA HERANÇA?
Assim se deu o processo de democratização, com uma sociedade desorganizada, sindicatos frágeis e pouco representativos das categorias profissionais, além de partidos que, na quase totalidade dos casos eram apenas arranjos eleitoreiros.
A sociedade de alguma forma se viu com a liberdade nas mãos e sem entender o que poderia fazer com aquilo.
As mudanças no modelo político tiveram o seu próprio ritmo, extremamente lento, e o modo brasileiro de se assegurar que as transições se dão sem que o poder mude de mãos.
Mal saído de um quadro político com dois partidos fortemente controlados por um regime de força, que fazia o arremedo de democracia com o uso sistemático de regras casuísticas, o Brasil ingressou em um processo constituinte, encavalado com o funcionamento de um Congresso eleito segundo as regras anteriores, até incluindo a presença de senadores que apenas cumpriam a segunda metade de seus mandatos.  
De tanto ansiar por influir decisivamente na vida nacional, ali foi produzida uma Constituição moldada para o parlamentarismo. Quando o sistema foi derrotado no plebiscito de 1993, o texto constitucional não sofreu qualquer reparo, permanecendo o Legislativo com enorme capacidade de submeter decisões de governo.
O meio político e as elites econômicas se ambientaram rapidamente. A criação de mais de meia centena de legendas partidárias casou-se perfeitamente com o modelo de eleições parlamentares, com o voto apurado proporcionalmente, mas o sufrágio realizado pelos nomes dos candidatos. Somado a isso o fato de que as coligações são amplamente livres, sem qualquer limite de número de siglas ou mesmo coerência nos diferentes níveis em disputa. Assim, as agremiações partidárias podem juntar-se em um arranjo para apoiar candidatos majoritários locais (governadores e senadores), outro no apoio aos que disputam a Presidência da República, um terceiro para a eleição de deputados estaduais (distritais no Distrito Federal) e mais um para concorrerem a deputados federais.
Essas composições sequer chegam ao conhecimento dos eleitores, que também não sabem como serão aproveitados os seus votos. Raríssimos deles têm noção que o voto dado ao seu candidato, caso ele não seja eleito, será somado para permitir a eleição de outro do mesmo partido ou coligação.
O fato se agrava pelo fato de que, fora os dos partidos com nitidez ideológica (como PT, PCdoB, PSol e poucos outros), raros candidatos usam identificação partidária em sua propaganda eleitoral.
Durante a campanha, também não é cobrada coerência dos candidatos com os compromissos assumidos por seus partidos de apoio a campanhas majoritárias, sendo comum identificar os que pedem votos para nomes presumivelmente adversários.
SEUS CANDIDATOS NÃO APOIAM QUEM VOCÊ QUER ELEGER!
Passada a eleição, a coligação é desfeita. Os partidos e os parlamentares que eles tenham eleito não têm qualquer compromisso de apoiar governadores ou presidente com os quais tenham feito campanha!
Começa a temporada de caça. Presidente e governadores eleitos são praticamente obrigados a correr atrás de apoio parlamentar para governar. São definidas as moedas de troca, poucas vezes reivindicações aceitáveis para a sociedade, quase nunca compromissos programáticos.
Essa é a discussão colocada na atual campanha com o nome de “nova política”.
Uma proposta sem dúvida encantadora, tal a justa revolta da população com o preço que supõe ser pago por esse apoio parlamentar, seja nos governos estaduais ou no nível federal, provocando imensas mobilizações populares em junho de 2013.
A presidenta Dilma Rousseff respondeu aos manifestantes com a proposta de cinco pactos: pela responsabilidade fiscal; a proposta de uma Constituinte exclusiva para tratar da reforma política (simplesmente desconsiderada pelo Legislativo); pela mobilidade urbana (R$ 50 bilhões foram acrescentados aos R$ 93 bilhões já investidos no setor desde 2011); a destinação de 100% dos recursos dos royalties do petróleo para a educação (o Congresso aprovou a medida, mas reservando 25% para a saúde); o Programa Mais Médicos, para resolver nacionalmente o problema da atenção básica à saúde.
Dilma aproveitou, portanto, as manifestações de junho, ao perceber que não eram principalmente contra o governo, mas uma denúncia enfática da necessidade de aprofundamento nas mudanças. Por mais que se tentasse dar a ideia do inverso, não foi um movimento por menos Estado, mas justamente por um Estado mais comprometido com a mudança e as carências básicas da população.
O seu governo e o de Lula fizeram até o ponto em que seria possível com uma presença progressista minoritária no Congresso Nacional. Foi muito. E é exatamente isso que me faz concluir que, com a terrível lentidão das transformações em nosso país, consegui ver realizado muito do sonho de minha adolescência: a universalização da educação, inclusive com o acesso à universidade, quando não à pós-graduação, de considerável número de filhos de pais humildes; a perspectiva, em curto prazo, de universalização da atenção básica de saúde; a garantia de uma renda mínima, que assegure a sobrevivência das pessoas não incluídas no mercado; a desconcentração regional da atividade econômica; o acesso de praticamente toda a sociedade à alimentação, à moradia e a bens de consumo e serviços antes privativos dos ricos e da alta classe média; aproximação do pleno emprego e melhor nível de remuneração, por meio da valorização do salário mínimo; maior respeito pelas manifestações culturais e religiosas diferenciadas da maioria da sociedade; maior respeito aos direitos da mulher e dos negros; reconhecimento internacional. Enfim, conquistas de que a sociedade não pode abrir mão, até por virem (pelas contas dos meus anos) atrasadas em pelo menos meio século, e que estão atravessados nas gargantas de quem sempre se beneficiou, com exclusividade, dos frutos do trabalho de todos.
Iniciada a disputa eleitoral, a dobradinha Eduardo Campos – Marina Silva tratou de assenhorear-se da grita de junho, alegando que representava aquela proposta da “nova política”. Beneficiada com a comoção decorrente da trágica morte de Campos, Marina assumiu-se como o verdadeiro arauto dessa bandeira. E o fez no melhor estilo demagógico, descendo ao nível de consciência das massas. Ou seja, tentando massificar a impressão de que isso seria possível pela mera declaração de princípios de quem viesse a ocupar o Palácio do Planalto. Alardeou que comporia o seu governo por um mero processo de análise de currículos, selecionando “os bons” de todas as posições políticas.
Criou-se, assim, uma conjunção de fatores que a impulsionou para o limiar de uma vitória no primeiro turno.
É claro que sua candidatura foi alvejada por uma sucessão de fatos que desmentiram cabalmente o seu perfil: a descoberta da ainda não explicada história de um avião sem dono, o que levara Eduardo Campos e mais seis pessoas à morte, e que, agora se sabe, era frequentemente usado por Marina; a presença na coordenação de sua campanha de uma herdeira do Itaú, por sinal o principal sustentáculo financeiro de sua aventura política; o fato de ser a sua presença determinante em questões tão importantes quanto a autonomia do Banco Central e a redução do papel dos bancos públicos; o compromisso com a flexibilização das leis trabalhistas, inclusive com a liberalização da terceirização; o passa-moleque do pastor Malafaia, por ela aceito com assustadora subserviência em questões de interesse da comunidade homossexual, entre tantos outros eventos.
Que bom! Nada tão pedagógica quanto a dissecação imposta pelo debate eleitoral.
Mas é indispensável enfatizar a mentira da “nova política” na questão da relação com o Poder Legislativo.
Diante de uma Constituição com sério viés parlamentarista, como governar sem base de apoio substancial no Congresso Nacional? Representando um partido e liderando uma coligação que não prometem eleger sequer um décimo da composição da Câmara e do Senado, além de não aparentar possibilidade de eleger um conjunto minimamente representativo de governadores?
Dos três candidatos mais cotados, até por não dispor de qualquer capital de representatividade política além de uma possível votação, Marina tenderia a ser a mais submissa às negociações com as raposas da velha política.
Isso pode ter sido justamente o que a fez, em determinado momento, a favorita da fina flor do grande capital brasileiro, a musa dos grandes grupos de mídia. Frágil, sem expressão política própria, sem sustentação parlamentar, nas mãos de quem vocês acham que cairia para poder ao menos manter-se à frente do governo?
Essa gente sabe o que representa uma nova derrota política. São insistentes os sinais de que um novo governo liderado pelo PT pode não ficar apenas na satisfação de anseios populares por inclusão social. Ao contrário, pode sustentar-se na ampla aceitação da sociedade para impor mudanças de fundo e que tiram muito mais que o sono dos eternos controladores da política nacional, como a reforma política e a regulamentação dos meios de comunicação.
Constatando a incapacidade de derrotar Dilma Rousseff com uma candidatura marcadamente à direita, enamorou-se por Marina, por sua imagem popular, mas principalmente pela enorme capacidade de dobrar a coluna. Como no episódio Malafaia e ao assimilar teses dos grandes grupos econômicos, mesmo quando representando a mais clara confrontação com o seu tradicional perfil de ambientalista, como se deu com os ruralistas que antes enfrentava.
A base conservadora de sua campanha não oferece qualquer expectativa de que Marina viesse a assumir o perfil populista de governar com as massas nas ruas, acuando permanentemente os demais poderes, como poderia parecer crível para o eleitorado mais ingênuo. Disso, resta apenas a leitura equivocada de alguns jovens sonhadores, os que sobraram à frente de seu palanque depois dos sucessivos recuos exibidos nesse mês e meio de campanha.
Melhor seria Marina assumir que a “nova política” foi só uma estratégia de publicidade eleitoral para seduzir aqueles segmentos da juventude tão apressados como os dos revolucionários da minha adolescência, mas que, hoje, não tem razões para lançar-se em algum sonho revolucionário.
Fernando Tolentino