sábado, 17 de fevereiro de 2018

APONTAMENTOS SOBRE A INTERVENÇÃO




O momento ainda está recente para uma análise segura, mas cabe a primeira reflexão.
A direita tem um projeto de país e, com o golpe, criou a oportunidade institucional e midiática de implantá-lo. Desgastou-se tão rapidamente quanto era possível supor, tal o caráter antipopular e antinacional das medidas e os fatos recentes mostraram que está politicamente acuada. E muito antes de completar a implantação do projeto.
Seria ingênuo imaginar que iria simplesmente ajoelhar-se. Fez a sua primeira grande ofensiva, a parte hegemônica da grande mídia à frente.
Enquanto a esquerda comemorava a nada desprezível bofetada da Tuiuti, aproveitando o Carnaval para terminar de desmoralizar a coalisão golpista, inclusive aos olhos do mundo, a direita também se valia do mesmo carnaval para armar o bote.
Passou para a opinião pública a imagem de “guerra civil” no Rio de Janeiro, tendo como vítima a hipersensível classe média, sempre disposta a mergulhar no pânico, ainda mais na presença de um negro, um miserável, alguém que, por si só, já lhe representa uma ameaça. Fui genro de uma mulher que as poucas letras não impediam de esclarecer muito bem como esse raciocínio leva ao racismo. Ela se definia como racista e explicava que “tratamos tão mal os negros e por tanto tempo que só podemos esperar que eles aproveitem a primeira chance para vingar-se”.
O Rio de Janeiro não pegou o Brasil de surpresa, tornando-se violento a partir deste carnaval. Hospedado em casa de meu irmão, em 1979, peguei emprestado o carro e fui me deliciar com Chico Buarque no teatro Casa Grande, sendo advertido para que levasse no bolso o “dinheiro do ladrão” e não parasse sequer em sinais fechados. Ao explicar que só havia parado em um deles porque duas viaturas policiais estavam na porta de um bar naquela esquina, ouvi meu irmão, assombrado, reclamar: “Pior! Você escapou de ter sido assaltado!”
Mas lembre-se que recente levantamento apontou 19 cidades brasileiras entre as mais violentas do mundo e o Rio não está nessa lista.
Ao anunciar a intervenção, Michel Temer declarou textualmente que “as cenas do Carnaval revelaram uma agressividade muito grande e uma desorganização social e até moral muito acentuada. As pessoas lá não têm mais limites”.
Isso é verdade?! Tenho grande número de amigos e parentes vivendo no Rio de Janeiro. Não vejo um só que “não tem limites”, ainda mais pela alegada “degradação social e moral”.
A cidade sofre dos mesmos problemas de tantas outras metrópoles brasileiras, vítimas de um processo acelerado de urbanização, em que não era oferecida qualquer perspectiva inclusiva, tendo os migrantes que se acomodarem nas cidades do jeito que as sociedades locais toleravam. Ou seja, obrigadas a sobreviverem em condições de subemprego, habitando em condições subnormais, sem acesso a serviços básicos de saúde e educação, sem proteção de segurança pública e suportando péssimos e caros serviços de transportes. No caso do Rio e sua região metropolitana, isso ocorreu com uma população ao menos duas vezes superior às de grande concentrações urbanas do País.
A manifestação de violência nessa sociedade de suprema contradição não é novidade para os cariocas, para os brasileiros ou mesmo em outros países.
A escalada do tráfico e a contaminação do aparelho policial (e judicial), além dos meios políticos, também são suficientemente conhecidas. Mas não há como negar que, salvo exceções pontuais, o Brasil gasta fortunas para fazer apenas uma aparência de combate ao tráfico.
É um país em que uma mulher como Jéssica Monteiro, moradora de uma casa em que se abrigavam várias famílias, em pleno trabalho de parto, é presa por portar quatro porções de maconha e o juiz, alegando como agravante que ela não exerce “atividade lícita” (não lhe ocorreu que o Brasil tem 13 milhões de desempregados?), decreta a sua prisão preventiva. Junto com a criança e deixando em casa outra de 3 anos. Prisão domiciliar? Nem pensar!
Enquanto isso, continua sem “esclarecimento” a detenção de um helicóptero pertencente a um senador, conduzido por um assessor parlamentar de seu filho deputado e que era abastecido com verba de mandato. O helicóptero estava abastecido com 450 kg de pasta básica de cocaína e o fato se deu há mais de 3 anos.
Há quase um ano, um avião foi apreendido com 664 kg de cocaína, após decolar da fazenda de um senador, licenciado para exercer o cargo de ministro de Estado.
Os dois flagrantes foram identificados como tráfico internacional de drogas e ocorreram porque os traficantes vinham sendo monitorados pela Polícia Federal. Isso não sugere que fosse rápida a elucidação dos dois casos?
Não há dúvida de que o tráfico tem enorme força no Rio de Janeiro. Não poderia ser diferente em uma megalópole, que se coloca como grande centro consumidor, ainda mais contando a permanente afluência de enormes levas de turistas. É também uma obviedade que o tráfico caminha junto com a violência e tem indiscutível poder de contaminação das forças policiais. Mas dá para acreditar que a sede desse tráfico está nas favelas?
A verdade é que uma mentira eclodiu neste momento e isso se deu para justificar a tal intervenção militar na segurança pública do Rio de Janeiro. E isso se dá com a parceria (seria melhor dizer com a cumplicidade) do governador do Estado.
Quem desmentiu foi o Instituto de Segurança Pública (ISP), na última sexta-feira (16), com dados sobre a criminalidade ao longo do período.
A entidade revela que, entre 2015 a 2018 (ver matéria do Diário do Centro do Mundo), o total de ocorrências caiu de 9062 para 5865.
Os roubos a pedestres tiveram o menor índice nesses anos: 1062 em 2018, 1485 em 2015, 1739 em 2016 e 1178 em 2017.
A redução no número de furtos a pedestres foi surpreendente, ocorrendo 584 casos, contra 2144 em 2015.
As lesões corporais dolosas caíram de 1808 para 1297 desde 2015.
O registro por furto de celulares vem se reduzindo. Foi de 711, 644, 506, respectivamente nos anos de 2015, 2016 e 2017. Neste ano, foram registrados 394 casos.
Um dado é também significativo fora do período carnavalesco. Em dezembro de 2017, houve 66 vítimas a menos de letalidade violenta (casos de homicídio doloso, homicídio decorrente de oposição à intervenção policial, latrocínio e lesão corporal seguida de morte), com uma queda de 10,9% em relação a dezembro de 2016.
Talvez por isso, o general Walter Souza Braga Netto assumiu o comando da intervenção com um discurso destoante do usado pelo presidente, em perfeita articulação com a parte expressiva da mídia que apoiou a medida. Disse que a situação no Estado “não está tão ruim” e, embora falando pouco, deixou claro o que ocorre: “Muita mídia”.
A professora Jaqueline Muniz, especialista em segurança pública da Universidade Federal Fluminense, em entrevista à Globo News, disseca as ações militares anteriores no Rio, desde 1992, e avalia que esta não é para funcionar. Chama a atenção inclusive para que ela é anunciada pouco mais de uma semana após a apresentação de um plano estratégico de segurança pública  da PM do Estado.
Várias interpretações estão colocadas para que se entenda o que se pretendeu com a intervenção.
- É o início de uma escalada militar que pode levar à intervenção em vários outras unidades da Federação e, chegam a crer alguns (paranoia de quem viveu a ditadura?), à própria implantação de um novo regime militar em nível nacional?
- É uma jogada de desespero político que poderia levar até (quem sabe?) a não realização de eleições, dada a certeza de que não há como manter o governo, pois novas medidas impopulares só levariam a fortalecimento ainda maior de Lula, que tende a ganhar o pleito ainda que não tenha o seu próprio nome na urna?
- É tão só uma manobra política para evitar a votação da reforma da Previdência e, portanto, a humilhação diante de uma derrota parlamentar?
- É, ao contrário, uma tentativa de disseminar o terror entre parlamentares que ora se sentem à vontade para peitar o presidente e rejeitar a votação em tal mudança no sistema previdenciário?
- É uma grande jogada midiática para recuperar o fôlego diante de uma opinião pública que não dá mais um tostão de crédito ao presidente e seu governo?
De certo, foi um tiro na asa no candidato que tem o nome em segundo lugar nas pesquisas de opinião pública. Parece ter buscado um contato direto com os que vinham manifestando apoio a suas propostas. Com isso, apropriou-se do discurso e o deixou em um vazio em que o máximo a fazer será aplaudir a intervenção.
Mas é claro que o Palácio do Planalto (com os seus parceiros) criou uma “intervenção militar localizada” em cima de uma mentira para buscar recompor-se politicamente, em um período pré-eleitoral, no momento em que tudo favorece os adversários e os parceiros parecem sair discretamente da sala para não serem identificados com o presidente.
O que ocorrerá? A ver.
Fernando Tolentino

quarta-feira, 14 de fevereiro de 2018

VOCÊS NÃO NOS CONHECEM!


“Basta estar vivo
pra ser subversivo
(Ou subservivo.)”

Nesse breve atalho entre o berço, com guarnições de cambraia, hidratante importado para as dobrinhas e colônia francesa para realçar o cheirinho de bebê, imagino que tenha custado muito suor para chegar ao chamado reconhecimento do mérito.
Regras rígidas para não passar a hora das refeições, não sujar o uniforme antes de sair para a escola, só assistir desenhos animados na hora autorizada por mamãe, fazer as lições do dia, chamar a professora de senhora, só brincar com as crianças que os pais autorizassem, não falar com estranhos (muitos menos aceitar balinhas oferecidas por eles), não falar alto durante o culto ou a missa, entender que “é para o seu bem” tudo que lhes foi dito pelos familiares mais velhos.
Tudo isso deve ter sido muito cansativo.
Nem um só dia sem carne (de primeira) ou peixe ou frango ou equivalente. Sem sobremesa. Sem merenda entre as refeições. Nem um ano sem uniforme e sapatos novos. Sem cadernos e livros novos. Jamais um professor que lhe falasse mais alto que o autorizado pelos pais. Férias sem alguma viagem, de jeito nenhum. Talvez mais de uma para a Disney! Festas de aniversário (e noivado) com círculos selecionados de convidados. Nenhuma topada ou mesmo chuva sem a proteção devida. Um Natal sem o presente escolhido, nem pensar!
Como entender o lado de cá?
Como aceitar quem frequentou escola pública (se e até quando conseguiu)? Como entender quem estudou com uniforme de segunda mão, restos de cadernos, livros usados e rabiscados? Ou nem isso? Como respeitar quem chegou à escola e não havia a merenda, que substituiria o almoço, ou ela estava estragada? Como igualar-se com quem cresceu fazendo a faxina da casa, tomando conta dos irmãos, esquentando o próprio almoço, dividindo um bife ou um ovo? Como conhecer quem fazia as suas amizades na rua, ali jogava bola, brincava de pega, iniciou-se sexualmente? Como considerar cidadãos os que se revoltaram com a falta de ônibus, as cadeiras quebradas na escola, os banheiros interditados, a falta de professores? Os que transformaram a sua indignação em explosões individuais ou coletivas? Aquilo que se convencionou chamar de baderna?

“Basta não figurar
no registro civil
pra ser incivil.
(Ou vil, pra encurtar a palavra.)”

Mas nem todos tiveram sequer esses “direitos”.
Muitos (talvez a maioria) vivia em um lugar que dificilmente poderia ser chamado de casa. Não havia praticamente o que limpar no local. Não tinha, por exemplo, um banheiro. Precisava buscar a água para as necessidades mínimas. Ao menos uma vez por ano, tinha que abandonar o lugar em que se recolhia a família por conta de inundações. Família?! Quantos foram abandonados em orfanatos ou entregues a quem os criasse? Ou ao menos abrigasse? Quantos tiveram que deixar suas cidades e buscar a sobrevivência onde simplesmente nada os esperava?  


“Basta ser incivil
pra não ser ninguém.”

Enfim, no lado obscuro da lua, ali onde não há visibilidade para os bem nascidos, onde lhes é impossível enxergar, ali vivem negros, vivem índios, muitos dos ciganos (“existe isso no Brasil?”), ali crescem e habitam os que enfrentam a luta para estar vivo ao final de cada dia.

“Basta não ser ninguém
pra ter o apelido
que a polícia dá
a quem não é ninguém.”

Isso muitas vezes significa oferecer o seu corpo, o que lhe resta de força física, de destreza para superar ou evitar condições adversas, como o enfrentamento com os maiores e mais fortes ou experientes, a intolerância dos que não aceitam sequer a sua aproximação, da segurança privada, de milícias ou da polícia. Implica em compartilhar com práticas que nem sabem constituir-se em crimes. Ou imaginam, mas percebem que não existe alternativa.

“Tinha eu dois nomes:
Zebedeu,
que a miséria me deu.
E “elemento subversivo”
que a polícia me deu.”


É nessa maioria da sociedade que floresce a rebeldia. Nessa maioria nem sequer vista pelos destinados à avaliação de mérito, ou vista como algo a ser evitado, mantida ao longe.

Como as flores que vicejam na lama. A lama formada pela assepsia daquele ambiente em que se cuida dos fadados ao sucesso. Ou dos poucos a quem se dá a esperança de penetrar nessa disputa pelo nem sempre provável reconhecimento de sua dignidade.
Não falta quem tenha instrumentos para aliciar parte dessa maioria marginalizada, iludi-los com promessas vãs ou fazer com que se voltem contra os semelhantes, identificando-os como inimigos.

“E apenas uma dor:
a que a vida me deu.
e eis-me aqui, incivil,
(ou vil, pra encurtar a palavra).”

Ali está a origem de Lula.
Cada vez mais gente percebe que ele sentiu as mesmas dores, passou pelas mesmas condições e só por isso pode lhes oferecer alguma esperança.
Cada vez mais gente consegue traduzir as ações de seus governos, o conteúdo do seu discurso simples e rico de significação. Apropriar-se disso e identificar que aquele é o caminho.
É por isso que Lula é inaceitável.
É por isso que Lula precisa ser destruído.
Grande parte dos despossuídos já tem a clareza do que está em disputa. E até muitos dos que eram embriagados com a ilusão de que estavam muito próximos dos privilegiados já conseguem ver a mentira que sempre lhes foi diariamente incutida, a falsidade da expectativa de futuro que lhes era oferecida.

“Uma patada de cavalo
em meio do comício
e eis-me aqui, estendido em decúbito
dorsal.

(Ou já cortado ao meio,
sem dor, nem sal.)”

Não! Não podemos nos submeter à fatalidade aludida nos belíssimos e lúcidos versos do Canto Incivil de Cassiano Ricardo.
A luta está à nossa frente e sequer temos mais como evitá-la.
Vivemos um processo de urbanização forçado por interesses que fizeram desaparecer a possibilidade de vida no campo. Vivemos a favelização da população que foi lançada nas cidades. Vivemos a segregação dessa gente. Vivemos a violência com que durante duas décadas de ditadura a revolta foi reprimida. E a marginalização de parcelas cada vez maiores da sociedade. Sabemos que se coloca à nossa frente a imposição de um projeto em que o sofrimento será ainda maior, um grupo cada vez menor terá acesso a condições aceitáveis de sobrevivência.
Não temos alternativa que não seja lutar.
E aprendemos a suportar dificuldades e enfrentar inimigos aparentemente superiores.
Temos o caminho e vamos segui-lo.

“Basta estar vivo
pra ser subversivo
(Ou subservivo.)”

Lula pode contar conosco. 
Fernando Tolentino