segunda-feira, 14 de março de 2011

A HISTÓRIA DAS COISAS



Gente de minha idade conheceu uma coisa absolutamente abstrata para os dias de hoje: a navalha. Chegavam a ser herdadas. Tive amigo que herdou a navalha do avô falecido.

Ou seja, a indústria de navalhas produzia no máximo uma para cada homem.

Criou o barbeador, em que as lâminas eram substituídas e descartadas. Isso fez a fortuna da Gillete. A empresa descobriu o pulo do gato, mas achou pouco. Era preciso fazer os consumidores jogarem mais que as lâminas fora. Foram criados os barbeadores descartáveis, em que se joga tudo fora.

E foram mantidos os barbeadores permanentes, em que se joga fora a extremidade que contém as lâminas. E, para que eles não se eternizem, lançam-se barbeadores com mais lâminas, entre outros atributos, para que os velhos vão para o lixo. Periodicamente, a indústria retira uma linha de barbeadores do mercado e, com isso, monopolista que é, obriga milhões de consumidores a comprarem os da nova linha. E fabricarem mais lixo, com os imprestáveis.

Um ciclo idêntico se deu com as canetas. As penas foram substituídas pelas canetas-tinteiro, uma novidade. Ganhava uma quem se saía bem nos estudos, na presunção de que a teria para o resto da vida. Ledo engano! A indústria não podia se contentar apenas com a venda da tinta. Criou as canetas com cargas embutidas (antes com pena e, depois, esferográficas) em que se passou a descartar a carga inteira. A indústria vendendo mais e nós produzindo mais lixo. Vieram as esferográficas inteiramente descartáveis. Daí, se joga a caneta inteira no lixo!

É pouco lucro? A indústria entendeu que tais canetas duravam muito. Tanto que a tinta empedrava e o consumidor aprendeu a derretê-la com calor. A solução foi substituir a extremidade, de metal para plástico, que se derrete com o calor. A tinta explode e a caneta fica impestável. Daí, vai para o lixo quando a tinta se empedra... Não satisfeita, a indústria adelgaçou a extremidade dessas canetas, de modo a que a extremidade se quebre com a pressão da escrita. Lixo mais cedo. E lucro também.

Dois bons casos para ilustrar o excelente vídeo A HISTÓRIA DAS COISAS, de Annie LeonardFunder Workgroups for Sustenaibles production and consumption and Free Range Studios (conexão abaixo). Eu recomendo.  

Fernando Tolentino

http://www.youtube.com/watch?v=lgmTfPzLl4E


sábado, 5 de março de 2011

PARADOXO DA NATUREZA

Por que não seca esta fonte
se já não há um solo fértil a regar?
Por que as águas não cessam
se as sementes estão espalhadas em outras paragens,
se ali, onde a terra se racha de uma aridez incorrigível,
o húmus espera uma gota, uma brisa que espalhe ao menos umidade,
pra brindar a paisagem de verde?
Para que se precipitam as nuvens
se as águas correrão sobre o solo sem encontrar onde se acomodar?
Se as águas se transformarão em torrentes, bravias, inconformadas,
como a vingar a sua inutilidade.


Onde aquele solo túmido, prenhe, vesperal?
Esta terra nem sempre foi tórrida, infértil,
indiferente à provocação das águas.
Neste solo, o verde prometia rebentar a cada gota que lhe umidificava.
Ao menor estímulo, a vida se mexia, se criava, sorria.
Este solo se fechou.
Impermeável, tornou-se uma laje e aprisionou a riqueza no seu ventre.


Para a água que insiste em molhar
resta a certeza de que, expulsa daqui,
pode ser recebida mais ali,
onde uma possível natureza, latente, paciente,
prepara uma festa.


Fernando Tolentino

sexta-feira, 4 de março de 2011

ESSAS MULHERES... VIVAM ELAS!



Tive a sorte de descobrir, ainda criança, que se devia olhar as mulheres de perto.

Hoje, estou convencido de que esta é uma questão fundamental. Na sociedade machista, os homens veem as mulheres de longe. Só os seus aspectos exteriores. As mulheres são belas, Ou não são. Graciosas ou não. São ou não sensuais. Quando muito, são educadas, virtuosas, inteligentes. E só.

Foi no trabalho político de base que as coisas foram se tornando mais nítidas. A política de base é essencialmente feminina. Na verdade, o tradicional entre os nossos trabalhadores, é entender que, como os homens passam a semana agarrados ao trabalho, pesado, exaustivo, esgotante mesmo, têm as noites e o final de semana para a folga, o ócio, o prazer.

Cabe às mulheres segurar o peso da casa e da família. Cuidar das roupas, da higiene da casa, da comida, dos filhos. Com a profissionalização delas, isso se tornou a segunda jornada.

O fato é que, de tão trabalhosa e, ainda assim, assumida pelas mulheres, a rotina da casa tornou-se natural, quase uma extensão da brincadeira de boneca a que foi levada a se acostumar desde a infância.

Daí, não foi difícil para a mulher ter também uma terceira jornada. De alguma forma, já era assim. Qualquer um vê como é mais rara a presença masculina nas igrejas. Na época em que permanecia em casa, era a mulher quem tinha relações de vizinhança. E, com elas, a solidariedade com os vizinhos, a organização de festas solidárias (por extensão, as festas comunitárias) e, a partir daí, a manifestação de inconformismo, o protesto, a organização por melhores condições de vida na comunidade.

É disso que advém a política de base.

A organização de associações de moradores, de clubes de vizinhança, de movimentos populares mostra claramente que quem junta gente é mulher. Junta e mobiliza.

Descobri nos trabalhos de base de partido político ou em campanhas eleitorais de caráter popular que isso se dá assim até o momento em que as atividades se institucionalizam. Os homens surgem quando o trabalho em si cede espaço à escolha de lideranças formais. Aí, são os homens os escolhidos para dirigentes. Com a anuência e até por proposta das mulheres. Confirma-se a tese marxista de que “a ideologia dominante é a ideologia da classe dominante”.

Então militante do PCdoB, vi isso de forma muito clara, por exemplo, ao organizar o PMDB (o velho PMDB, popular, de base, com forte viés esquerdista) na cidade satélite de Planaltina, Distrito Federal. O partido sequer teria existência legal. Era uma época em que não havia eleições em Brasília. Toda a militância era feminina. Participavam ativamente dos debates, traziam sugestões e novos adeptos, levavam as propostas para seus vizinhos.

Em um fim de semana, propus que na próxima reunião, no sábado seguinte, escolhêssemos quem seria os dirigentes locais. Nunca houvera tantos homens nas reuniões. Não houve sequer tempo para traçar uma estratégia de escolha dos nomes. Uma voz se levantou para defender que era preciso, em primeiro lugar (nem deixou claro por que era preciso começar por aí), decidir quem seria o presidente. E já anunciou a candidatura de um pequeno empresário da cidade. Apoio geral. Ainda sugeri que se começasse pelos cargos menos expressivos. Como se sabia que o partido não teria dinheiro, alguém lembrou: “Tesoureiro”. O nome da maior liderança do grupo, uma comerciaria com alguma experiência de base sindical, foi rechaçado pelo primeiro discurso assumidamente machista. “Não dá. Tesoureiro é um cargo de muita responsabilidade”. A moça foi indicada para secretária, eleita por unanimidade, em um grupo que ainda desconhecia ser este o segundo cargo de maior importância na estrutura partidária.

Pois bem, cresci atento à movimentação política no mundo e não podia deixar de perceber que nomes de mulheres se destacavam. Lembro Indira Gandhi, na Ìndia; Golda Meir, em Israel; Evita Perón, na Argentina. Depois a primeira ministra Margareth Tatcher, na Inglaterra. Em anos bem mais recente, os sandinistas (Nicarágua) foram derrotados por Violeta Chamorro, os chilenos escolheram Michele Bachelet e os argentinos voltaram a ter, com Cristina Kichner, uma mulher no poder.

O que parecia absolutamente natural para tantos povos era impensável para o Brasil.

Quem teve a coragem de ousar e lançar esse desafio ao nosso povo foi Lula. Ele mesmo, que já rompera com preconceito de monta semelhante ao provar ser possível ter origem operária e tornar-se presidente da República.

Inicialmente isso pareceu um despropósito para não poucos políticos brasileiros, ainda mais que Lula determinou-se a sagrar como candidata à sua sucessão não apenas uma mulher, mas uma mulher que não trazia em seu currículo qualquer experiência de disputa eleitoral. A sua experiência política, por sinal, revelava mais um atrevimento de Lula. Tratava-se da história exemplar de Dilma, de mulher que colocou sua própria vida à disposição da luta pela democracia no Brasil. Mulher que sofreu a forma mais infame de afirmação do machismo, a submissão pela tortura.

Ainda praticamente adolescente, Dilma Rousseff acreditou ser possível derrotar um inimigo fortemente armado, como era a ditadura brasileira, que se amparava na mais poderosa potência do Mundo, os Estados Unidos, e impor essa derrota a partir de um pequeno grupo de militantes idealistas, que sequer contavam com manifesta simpatia popular, em um período em que o governo operava o que chamou de “milagre econômico”.

Com essa mesma aparente “ingenuidade”, aceitou o desafio de Lula e se colocou à disposição para fazer o enfrentamento com José Serra, um dos mais experientes políticos brasileiros. Seu adversário fora deputado estadual e federal, senador, ministro por duas vezes, prefeito da maior cidade brasileira e governador do estado mais poderoso. Já trazia um nome amplamente conhecido em todo o País, especialmente por ter disputado a Presidência com o próprio Lula, em 2002.

É verdade que Dilma contava com o maior cabo eleitoral do Brasil. E que Lula ostentava popularidade inédita para um presidente em final de mandato. Mas era também sabido que a presidente chilena Michele Bachelet tinha popularidade semelhante à de Lula e não conseguiu eleger o seu sucessor.

Tímida, desconhecida, sem cacoete eleitoral, empunhando cerca de 4% das intenções de votos, Dilma assumiu a campanha. Foi às ruas, subiu nos palanques, reuniu-se com políticos das mais variadas tendências, colocou-se na intimidade do povo, conseguiu impor discurso e estilo próprios, defendeu o seu projeto, enfrentou a campanha mais torpe de que já se teve notícia em disputas presidenciais brasileiras. Teve contra si a quase unanimidade da grande mídia nacional. Em boa parte da trajetória, as sondagens mostravam que ela tinha ao seu lado a minoria das intenções de voto de mulheres.

Mas, por muito pouco, já não saiu vitoriosa do primeiro turno. Recompôs-se, sacudiu a poeira, projetou ainda mais nitidamente a sua imagem, especialmente a sua condição de mulher. E se tornou a primeira presidenta do Brasil.

Não foram poucos os analistas que previram dias difíceis para o início do seu mandato, uma enorme dificuldade de articulação com as forças políticas. Os primeiros resultados mostram o evidências de sucesso.

Dilma já provou o contrário. Uma mulher pode não chegar à vitória se não estiver, ela mesma, convencida do que é capaz de alcançar. Resoluta, determinada, sem receio de enfrentar o preconceito, realizará tudo o que for possível para os homens.

Nesse Dia Internacional da Mulher, Dilma Rousseff se tornou uma das principais figuras da política mundial e motivo de justo orgulho para todos os brasileiros. Merece, como ninguém, simbolizar a luta das mulheres do Brasil.

Fernando Tolentino