segunda-feira, 15 de dezembro de 2014

BEM QUE DILMA AVISOU: NÃO SOBRARÁ PEDRA SOBRE PEDRA



A maioria dos brasileiros tem hoje mais um importante motivo para comemorar. E essa euforia, vamos ver, está justamente nas bombásticas denúncias de corrupção na Petrobras.
Fechadas as urnas, Dilma selou a sua vitória com um vigoroso discurso de conclamação à unidade nacional.
Mostrava ali que havia entendido claramente o recado das urnas. Obtivera uma vitória insofismável. “De virada!” O que normalmente costuma ser motivo de comemoração especial do torcedor brasileiro de futebol. Mas, a partir dali, quisessem ou não os derrotados, era de novo a presidenta de todos os brasileiros.
Os oposicionistas haviam estado à beira da comemoração. Em volta do candidato, preparados para ejacular o grito de vitória, já estavam inclusive Fernando Henrique, ACM Neto, o comunicador Hulk e o ex-atleta Ronaldo. Não era pra menos. Era esse clima que propagava a mídia parceira. O portal UOL chegou a “esquecer” de tirar do ar a manchete previamente preparada e flagrada por Luís Nassif. Todos confiavam piamente que não haveria como o eleitorado brasileiro escapar do garrote vil preparado pelo esforço concentrado de última hora pela mídia, a partir da manchete jamais confirmada da Veja, que circulou com conveniente antecedência, garantindo que Dilma e Lula foram praticamente cúmplices das malversações da Petrobras, pois saberiam de tudo e nada teriam feito para evitar ou punir os responsáveis.

 

O tresloucado ex-candidato não conseguiu assimilar o “quase deu” e, como assinalou o professor Michel Zaidan, simplesmente não “acordou”.  Ele e a grande mídia parceira, que falou de um Brasil dividido, uma divisão regional, em que Dilma seria a presidenta apenas de nordestinos e nortistas. Uma leitura absolutamente equivocada, forçada, para dar a ideia de que sua vitória se devesse à maior pobreza dos habitantes dessas regiões, politicamente menos conscientes e aliciados por programas sociais do governo. Errada, pois Dilma também teve a maioria no Rio de Janeiro e em Minas Gerais. Distorcida, já que a maioria dos beneficiários do Bolsa Família e de outros programas sociais está em São Paulo. Manipulada, pois o resultado das duas regiões pode ser avaliado justamente pela satisfação com os resultados obtidos no Norte e no Nordeste em doze anos de lulodilmismo (Veja QUER MAIS CONSCIÊNCIA DO QUE TEM O NORDESTINO?)

A teoria da divisão nacional tomou conta dos radicais e dos inconformados com a derrota da direita, gerando manifestações inaceitáveis de ódio justamente de quem se enxerga como mais consciente. Quem falava mais alto em nome do País passou a jurar que iria para o Exterior. Não faltou quem propusesse até a eliminação física dos eleitores de Dilma.

Esse ânimo doentio rapidamente se transformou em uma proposta golpista e foi assumida pelo candidato derrotado, arrastando o nome do PSDB para essa loucura. Ainda que boa parte da grande mídia fizesse eco, o TSE não se curvou à tentativa de recontagem dos votos e, mais adiante, o Supremo reconheceu a licitude das contas de campanha de Dilma. As tentativas de mobilizar massas transformaram-se em uma ridicularia, dezenas (raras vezes centenas) de manifestantes que sequer tinham claro se defendiam Aécio ou o retorno da ditadura. O próprio Aécio escondeu-se em uma praia catarinense para não se expor à situação, dividido entre a zombaria e uma radicalização que não lhe renderia frutos pessoais.
De tão absurdo, o alarido golpista não inflamou todo o PSDB. Os governadores eleitos – Alckmin (SP) e Perillo (GO) à frente – trataram de aproximar-se da presidenta reeleita e avançar em suas agendas de executivos estaduais. Entenderam claramente ue os berros alucinados de Aécio e sua tentativa golpista como meramente cenográficos, meros movimentos para se manter em evidência. Aécio tem claro que, ao baixar o tom, será jantado por Alckmin e Serra, lideranças tucanas mais consistentes, também interessadas em disputar as eleições de 2018. Serra galgando os resultados de disputas presidenciais anteriores e a recente vitória para o Senado, quando muitos já o tinham como uma carreira agonizante. Alckmin, com o capital de sua própria reeleição no estado de maior eleitorado, o que ainda é mais significativo diante da derrota de Aécio em Minas, tanto para presidente, como na disputa de seu candidato a governador.
De fato, só Aécio e seus fanáticos aliados das colunas jornalísticas escondem o vazio dos seus números nas urnas. A poucos dias do primeiro turno, já era francamente discutida a proposta de retirar a candidatura para engrossar a votação de Marina Silva e evitar que Dilma liquidasse a parada de uma vez. Não fosse a concentração absoluta do eleitorado conservador em torno de seu nome – com os apoios de Marina, Fidélis e Everaldo – e a alarmante campanha dos grandes veículos de comunicação, decerto sofreria uma derrota acachapante.
CORRUPÇÃO QUE VEM DE LONGE
Foi a antevisão desse cenário quase jocoso que animou o discurso de unidade de Dilma no anúncio do resultado eleitoral. A manifestação de quem assumia a liderança da Nação, que democraticamente acabava de lhe ser entregue.
Não disse (e nem precisava dizer, pois já o dissera enfaticamente na campanha) que o Brasil, sob a sua determinada direção, continuaria perseguindo a corrupção e oferecendo saídas para acabar com essa chaga, já entrevista na carta de Pero Vaz de Caminha, descarada no patrimonialismo do período colonial, no Império e na Velha República e presente em toda a história brasileira. A corrupção não teria momento mais fértil para fincar as suas raízes e florescer que um longo período ditatorial, com todas as armas do autoritarismo a lhe dar guarida, começando pela censura e terminando pelo apoio entusiástico de quase a unanimidade da mídia.
Parece incrível que os novos arautos do combate à corrupção fechem os olhos a algumas evidências. De quando vieram o poder e o enriquecimento de personagens como José Sarney, Paulo Maluf, Antonio Carlos Magalhães e Henrique Eduardo Alves, para citar só alguns casos? Quando surgiram fortunas como as dos brasilienses Luís Estêvão e Paulo Octavio ou Fernando Collor?
A certeza de que Dilma efetivaria o seu compromisso é o motivo da eufórica comemoração dos brasileiros.
É verdade que os governos de Lula e o primeiro de Dilma promoveram a retomada do desenvolvimento nacional e uma forte mudança de viés, em que o crescimento deixou de ser principalmente um instrumento de intensificação da concentração, para ser justamente o contrário, um processo intensivo de superação da miséria e de inclusão social.
Mas não foi só. Sabemos bem a dificuldade que tiveram para fazer um Brasil mais republicano, no sentido de que o Estado deixe de ser um patrimônio a serviço dos poderosos e se torne efetivamente um ente público. Imaginemos os grandes obstáculos de Lula e Dilma. E não estamos falando do país quebrado que foi entregue por Fernando Henrique. Importante é analisar os óbices institucionais implantados em uma Constituinte que se debatia entre o poder econômico, o patrimonialismo das velhas forças políticas e a participação de lobistas corporativos muito bem organizados. O contraponto, que conseguiu assegurar um legado benéfico, foi a participação popular. Tímida, mas efetiva.
A resultante dessa equação foi uma Constituição com forte acento parlamentarista, que buscaria confirmar a intenção em um plebiscito marcado para abril de 1993. O mínimo admissível era que, diante da vigorosa opção presidencialista dos brasileiros, o texto constitucional fosse revisto. Qual nada! Ficamos com um regime híbrido: presidencialista, para o Executivo; parlamentarista, na visão do Congresso. A mais recente agudização dessa esquizofrenia foi a criação das emendas impositivas, saída tipicamente corporativa dos parlamentares. Ao invés de extinguirem as emendas parlamentares, veículos de inúmeros casos de corrupção, ou instituídas emendas coletivas, impuseram mais um quesito de obediência para o Poder Executivo. 
É esse fortalecimento corporativo do Congresso Nacional que força a ocupação de espaços administrativos. Cargos almejados para transformarem-se em instrumentos de reprodução das bancadas em futuras eleições Pela manipulação de políticas públicas em favor de partidos e parlamentares. Mas prestando-se para a formação de caixas de campanhas eleitorais.
Nunca é demais lembrar que, passados 12 anos de liderança petista no Poder Executivo, ainda não há uma só indicação para o Tribunal de Contas da União em que se possa identificar as digitais do PT ou preferências políticas de Lula ou de Dilma. O mais próximo disso foi a indicação da mãe de Eduardo Campos, então governador de Pernambuco. Filha de Miguel Arraes, ela e a família tornaram-se amigos de Lula. A última eleição distanciou PSB e PT, o que reduziu a zero a presença de ministros com um mínimo de proximidade com o governo. Até a recente aposentadoria de Valmir Campello, ele Aroldo Cedraz, José Múcio e José Jorge, todos egressos do PFL (atual DEM), formavam praticamente uma “bancada”, quase a metade da composição da Casa.
ENFIM, UMA VERDADEIRA REPÚBLICA?
A verdade é que, apesar de tudo isso, os governos liderados pelo PT já vinham realizando pouco a pouco a promessa da candidata Dilma Rousseff de apurar todo e qualquer caso de corrupção, “doa a quem doer”, enfaticamente seguindo-se a previsão: “Não sobrará pedra sobre pedra”.
Tudo com que o brasileiro comum sonhava, acostumado a ver o Estado como algo “deles” (os poderosos) e a serviço deles.
A verdade é que a sociedade já não suportava constatar que, no Brasil, prisão (ou mesmo punição) é coisa, como se costuma dizer, para os três P: preto, pobre e puta. Com as condenações da Ação Penas 470, surgiu o quarto P: petista.
Onde estará Fernando Cavendish, da Delta Engenharia? E Carlinhos Cachoeira? E o ex-moralista Demóstenes Torres? Luís Estêvão está passando uns dias preso, depois que seu parceiro, o juiz Nicolau dos Santos Neto, até já deixou o presídio. No que deram os casos Capemi, Delfim, o escândalo da Mandioca, o da Coroa-Brastel, só pra citar alguns dos ocorridos durante a ditadura, quando pouco se podia saber de maracutaias e outras trampolinagens? Deu alguma coisa para Mário Garnero, do grupo Brasilinvest? E os escândalos mais recentes? A compra de votos por FHC, o escândalo do Banestado, o caso Sivam? O empresário Daniel Dantas conquistou dois habeas corpus sucessivos e ninguém mais falou nisso. Por que é que não caminha a ação do Mensalão do PSDB mineiro? Alguém pagou pelo escândalo da Caixa de Pandora, do DF? E o Trensalão, envolvendo sucessivos governos tucanos de São Paulo e estendendo ao de José Roberto Arruda no DF? Parecem ter voado pelos ares os casos recentíssimos do helicóptero carregado de pasta base de cocaína, do aeroporto construído pelo então governador Aécio Neves em terras de seu tio e do avião “sem dono” em que morreram Eduardo Campos e seis acompanhantes. Há centenas de histórias perdidas na memória de cada cidadão brasileiro, enquanto os presídios não suportam a superlotação de pessoas humildes, de nomes desconhecidos, não raro sequer submetidos a um processo legal aceitável.

Ao assumir, o então presidente Lula deu uma efetiva estruturação à Controladoria Geral da União, inclusive atribuindo-lhe nível ministerial. Os resultados são significativos. Foram 269 servidores demitidos por corrupção no primeiro ano de mandato. De 2003 a outubro de 2013, contou-se 4.481 demissões, mas de uma por dia. No governo de Dilma Rousseff, as demissões chegaram a quase dois mil.
Em 2006, era criado o Portal da Transparência, onde qualquer brasileiro pode inteirar-se de qualquer despesa pública. Tal acesso nem sempre tem uso adequado. Quando a grande mídia quis desgastar o governo Lula a partir do uso de cartões corporativos, O Globo noticiou que a Imprensa Nacional o teria usado para comprar moletons e bordados. Não adiantou esclarecer que a bandeira do Órgão não é encontrada em lojas do ramo e que qualquer gráfico do próprio jornal diria que chama de moleton a luva com que se cobre rolos das impressoras. A informação não foi corrigida e não contamos mais, para responsabilizar-se pelo cartão, o servidor que viu seu nome no jornal.
A Polícia Federal, antes afastada do combate à corrupção, passou a apurar as denúncias com inteira liberdade e os titulares da Procuradoria Geral da República foram escolhidos entre os primeiros integrantes das listas encaminhadas ao governo. Isso representou autonomia absoluta nas investigações, sendo notório o caso específico das denúncias que resultaram na AP 470, envolvendo alguns dos nomes mais importantes do próprio PT.
O aperfeiçoamento dos mecanismos de controle do Estado e combate à corrupção seguiu ao longo dos três governos liderados pelo PT. Em novembro de 2011, já com Dilma na Presidência, foi aprovada a Lei de Acesso à Informação (Lei nº 12.527), uma das mais modernas no mundo. 
Quase dois anos depois, veio a Lei Anticorrupção (Lei nº 12.846), que mudaria o conceito, até então existente, de que os corruptores eram poupados e apenas os corrompidos eram levados a julgamento e eventualmente pagavam por isso. É com base nela que se encontram indiciados e presos 36 dirigentes das maiores empreiteiras do Brasil, que agiam impunemente há décadas e são agora alcançados na chamada Operação Lava-Jato. O jornalista Jânio de Freitas (Folha de São Paulo) questionou neste domingo que não estão entre esses os cabeças dessas grandes empresas, mas apenas executivos de alta patente e grandiosa remuneração, contratados justamente para fazer esse tipo de serviço e livrar a cara de quem realmente decide. Certo é que a porta está aberta, escancarada.
E a opinião pública se deleita ao ver a inédita prisão e o indiciamento de nomes que só apareciam em jornais quando cercados de elogios ou ao frequentarem eventos sociais.
O esforço de setores hegemônicos da mídia para representar a situação de forma inversa impede que boa parte da sociedade identifique a marca dos governos de Lula e Dilma nesses resultados. Como se fossem iniciativas isoladas de um juiz íntimo dos círculos tucanos do Paraná, e de delegados da Polícia Federal, vários deles flagrados na recente campanha de Aécio Neves, inclusive com ataques desrespeitosos a Dilma. Um e outros fazem vazamentos seletivos na delação premiada, sempre com vistas a manter ilesos políticos do PSDB e responsabilizar petistas e políticos de partidos da base aliada. O afã de atingi-los chegou ao cúmulo de envolver criminosamente José Mário Cosenza, diretor da Petrobras sequer citado nos depoimentos. Mas, o fato é que a Polícia Federal atua no caso com a desenvoltura que jamais teve e o processo poderá ser exitoso em virtude dos instrumentos atualmente disponíveis.
Diante dessa evolução promovida no ciclo Lula-Dilma, nunca é demais lembrar que o propalado escândalo da Petrobras decorreu em boa medida de uma iniciativa do ex-presidente Fernando Henrique Cardoso, ao propor que a empresa não fosse mais submetida à Lei de Licitações (Lei nº 8.666).  
Se esse não é o desejo dessa parte da mídia e dos políticos oposicionistas, surgem avaliações abalizadas, como a do empresário Ricardo Semler, por sinal filiado ao PSDB, no recente artigo “Nunca se roubou tão pouco” (publicado na Folha de São Paulo). E o mérito da luta pela instauração de um estado republicano e no combate à corrupção é percebido por grande parte da população. Recente pesquisa da Datafolha surpreendeu ao mostrar que credita à presidenta Dilma a responsabilidade pelo combate à corrupção. Vai além. Sua aprovação mantém-se em alta e, contra quase todas as conjecturas, cresce a simpatia pelo Partido dos Trabalhadores. Como se não bastasse, o governo de Lula é registrado em todos os segmentos como o melhor de todos os tempos. Por 64% dos entrevistados  mais jovens e 46% dos mais velhos. A avaliação se repete nas várias regiões  e níveis educacionais e de renda.
O tirocínio das massas demonstra que percebeu onde está o cerne da corrupção. Enxergam como responsáveis os financiadores de campanha, os que irrigam as contas de todos os partidos, criando as condições para terem os políticos na coleira. Revela-se que essa gente transforma em mero jogo de cena a política que aparece nas páginas dos jornais, no rádio e na TV. O dinheiro sujo da campanha influi nas decisões de executivos governamentais e de estatais, como no comportamento de atores do Legislativo das mais diferenciadas cores partidárias. Até os que denunciam tentativas de impedir as investigações e, ao fazê-lo, agora se sabe que estão manietados por empresários, deles recebendo polpudas gorjetas, como teria sido o caso do senador Sérgio Guerra, então presidente do PSDB, ao propor o encerramento da primeira CPI da Petrobras, alegando que os governistas estariam impedindo que fosse bem sucedida.
Um quadro que parece paradoxal começa a se desenhar claramente para a sociedade. O que é mesmo que a oposição denuncia? Empreiteiros injetam dinheiro em campanhas para, depois, se beneficiarem nas relações com empresas estatais. Em outras palavras, os políticos elegem-se com os votos populares, mas seu compromisso não é com os eleitores, mas com quem viabiliza suas campanhas, os grandes financiadores. Mas essa mesma oposição nega-se a aprovar regras que corrigiriam esse tráfico de interesses, como o impedimento ao financiamento das campanhas pelas empresas privadas.
Ou seja, falta completar o ciclo iniciado por Lula e que vem se desenvolvendo com Dilma. Os próximos passos, contra os quais se voltam raivosa e significativamente a oposição e a grande mídia, são a reforma política, com a instituição do financiamento público das campanhas, e a institucionalização dos mecanismos de participação popular.
Fernando Tolentino

segunda-feira, 24 de novembro de 2014

QUER MAIS CONSCIÊNCIA DO QUE TEM O NORDESTINO?

Ao driblar Napoleão Bonaparte e trazer a Corte de Portugal para o Brasil, em 1808, Dom João, cuidou de fazer escala em Salvador. Ali, além de abrir os portos “às nações amigas” (leia-se à Inglaterra) criou o curso de cirurgia, que veio a ser a primeira experiência de ensino brasileira em nível superior. Novas jogadas de craque do Príncipe Regente, de Portugal, que assim acalmou a elite baiana da época, ávida por recuperar a condição de capital.
Nos dois séculos seguintes, foi a última decisão política do governo central em que a Bahia foi colocada em situação de vanguarda com relação à educação.
Com uma área superior à da França e a população superada pela da Holanda em pouco mais de um milhão de habitantes, a Bahia contava apenas com a Universidade Federal da Bahia, fundada em abril de 1946.
Relativa compensação só se deu a partir de 2003, com a chegada de Lula à Presidência da República e sua determinação de resgatar a dignidade do Nordeste, política que teve continuidade com o governo de Dilma Rousseff.
Além da UFBA, a população baiana tem hoje à disposição a Universidade Federal do Sul da Bahia, a Universidade Federal do Recôncavo da Bahia, a Universidade Federal do Oeste da Bahia e compartilha com piauienses e pernambucanos a Universidade Federal do Vale do São Francisco. Vários campi levam essas instituições a diversos municípios do Estado, enquanto outros contam com Institutos Federais de Educação.
Não se trata de um privilégio da Bahia ou uma discriminação com os estados que não integram o Nordeste. Para dar outros exemplos, Minas Gerais tinha cinco universidades no início do governo de Lula e atualmente conta com 11; o Rio de Janeiro tem quatro, dobrando o número existente em 2003; São Paulo, que não tinha universidades federais, hoje tem três.
O que pretendo deixar claro com o exemplo baiano é que o Nordeste não precisa mais padecer de complexo de inferioridade.
A mudança na política que excluía a região dos frutos do desenvolvimento brasileiro não se resume à questão da educação superior.
No período de 2002 a 2010, a participação do Nordeste no Produto Interno Bruto do Brasil teve um crescimento de 0,5%, alcançando 13,5% do total. Esse crescimento só foi superado pelo Norte, que passou a ter 0,6% da Renda Nacional. O Produto Bruto do Nordeste saltou de R$ 191,5 bilhões para R$ 507,5 bilhões. Não é pouco. Isso significa que a sua taxa média anual de crescimento do PIB per capita foi de 3,12% nesse período. A do Brasil alcançou 2,22%, enquanto o Sudeste ficou em 1,81%.
Durante a campanha, tive contato com inúmeros brasilienses que vieram de lá ou vão ao Nordeste, especialmente para visitar familiares. Os depoimentos são bastante significativos.
De vários, ouço que a família não tinha acesso a energia elétrica ou água em casa. De alguns, já colho testemunhos do atendimento à saúde agora disponível nas pequenas e médias cidades do interior. Fico sabendo que o jegue deixou de ser um meio de transporte e de tração ao ser substituído por motocicletas ou carros, não faltando quem se queixe de que os animais, sem serventia, tornaram-se perigosos às margens das rodovias.
Há quem relate importantes sinais de mudança na economia do interior nordestino. A Bolsa Família deu um novo impulso ao comércio das pequenas cidades, surgindo inclusive algo que era raro em milhares de municípios: o emprego com carteira assinada. As economias das cidades médias foram beneficiadas com os novos estabelecimentos de educação, inclusive de nível superior. Ouvi relatos de que a presença de professores universitários impôs novos padrões de consumo e níveis de serviço.
Uma colega de trabalho conta que tirou férias e foi descansar com a mãe no interior do Ceará. Aproveitou o dinheiro extra e comprou um celular mais sofisticado, repassando o seu para a filha. “Pois o meu era o pior celular da cidade e muitos tinham mais de um aparelho”, garantiu.
Achei ainda mais revelador o relato de outro colega. Ele e amigos que vieram de sua cidade no sul do Piauí a frequentam sistematicamente, na festa da Divina Pastora (padroeira da cidade), nas férias e até para votar. O grupo reunia sempre as roupas usadas e levavam para os parentes. Há alguns anos, ouviram a reclamação: “Nós podemos comprar roupas!” Passaram a deixar as roupas na Igreja, que as vende em bazares que organiza regularmente. O depoimento mostra o brio do povo da Região e desmente quem alega, por exemplo, que os nordestinos fazem da Bolsa Família um meio de vida.
É SÓ VISITAR A REGIÃO
Fechadas as urnas, saí de férias e resolvi fazer o que chamei de giro comemorativo. Estimulei amigos (alguns virtuais) a nos encontrarmos quando passassem por suas cidades e comemorarmos, juntos, a vitória de Dilma.

Confesso que não consegui sucesso com os amigos virtuais de Goiânia, que alegaram compromissos diferentes no fim de semana em que passei por lá, alguns inclusive fora da cidade. Fui a Uberlândia (MG), onde confraternizei com Denise Silva Arantes. Passeamos pela Feira da Gente, onde almoçamos, e papeamos como se aquilo representasse meses e não nos conhecêssemos até então apenas pelo facebook. Depois, ela me apresentou a familiares e peguei a estrada para Jataí, em Goiás.
Jantei em Jataí com velhos amigos do tempo em que viviam em Brasília: Lena, Thainá Helena e Thaís Helena, Hildene, Henrique e Giovani. Participaram também vários amigos deles, que ali agitaram a campanha de Dilma. Por nos vermos e por poder comemorar aquela vitória, o clima foi de enorme euforia, do que não escaparam sequer as crianças.
De volta a Brasília, segui para Salvador, onde mora uma banda de minha família. Curti rever filhos, a mãe deles, netos, genro, meu irmão e minha cunhada, minha tia Janinha e amigos. Fiz questão de agradecer enfaticamente o resultado de Dilma na Bahia e a vitória de Rui Costa (PT) para dar continuidade ao trabalho de Jacques Wagner. É claro que houve quem não votasse nos candidatos do PT, mas isso é outra história.
Fiz o retorno de carro e vivi a oportunidade de confirmar o que me contam euforicamente os nordestinos de Brasília.

Vim sem pressa, cuidando da segurança e saboreando cada quilômetro. Dormi a primeira noite em Lençóis, com direito a uma cerveja na praça, para relaxar, e uma breve caminhada pela manhã. Como chegara tarde e não os encontrei acordados, visitei um primo e sua mulher, que têm, na cidade, a Pousada Raio de Sol (olhe o comercial aí, gente!). O suficiente para notar, no passeio, a presença do campus avançado da Universidade Estadual de Feira de Santana e ouvir de meu primo a influência desse tipo de estrutura na economia local, evitando que as famílias tenham de sustentar os filhos enquanto estudam em outras cidades.
A partir daí, foi uma sucessão de sinais da presença do governo, no geral ações articuladas do Estado e federal.
Na estrada entre Lençóis e Ibotirama – passando por Seabra e Oliveira dos Brejinhos – pude ver diversos ônibus escolares, dos que já me falavam os nordestinos de Brasília, explicando que não é apenas para garantir o Bolsa Família que as crianças permanecem estudando, mas principalmente por não ter mais de enfrentar uma caminhada de não raro mais de uma légua entre a casa e a escola.

O mais enfático estaria por vir, especialmente na estrada estadual que liga Ibotirama e Bom Jesus da Lapa. A região é visivelmente seca e as casas, que não são mais de taipa (de sopapo, como se diz na Bahia), mas de alvenaria, tinham ao lado grandes reservatórios ligados às calhas, para captação de água de chuva.  A uniformidade deles despertou minha curiosidade. Parei para me informar e tomei conhecimento de que se trata de um programa da Codevasf – Companhia de Desenvolvimento do Vale do São Francisco.

Pouco adiante, já no município de Paratinga, vi que as casas eram também rigorosamente iguais, a maior parte em fase de construção, e com distância regular entre elas. Entrei em uma dessas pequenas propriedades e interrompi o plantio de milho do Senhor Bento para entrevistá-lo. Trata-se do Assentamento Jovita Rosa. O nome é uma homenagem à líder daqueles sem-terra, finalmente assentados, após quase vinte anos de luta. Alguns quilômetros adiante, encontro o Assentamento Santo Antônio, mais antigo, já produzindo e com algum gado. Ali, a Codevasf mantém um programa de abastecimento e distribuição de água.
Não foi preciso esperar muito para ser surpreendido por uma nova placa, indicativa de uma pequena obra: a reforma da Unidade de Saúde da Família de Lagoa Dantas. São obras de pequeno porte, mas representando a prestação de serviços a uma população certamente acostumada a viver desassistida de qualquer serviço público. Se já se podia ver que a USF de Lagoa Dantas estava praticamente concluída, encontro pouco depois uma obra em fase intermediária: é a construção da Unidade Básica de Saúde do Entroncamento do Porto Novo.
Antes de chegar a Bom Jesus da Lapa, ainda passaria pelas instalações locais da Codevasf, onde a pluralidade de placas dá uma perfeita ideia da quantidade de ações desenvolvidas na área.

À saída de Bom Jesus da Lapa, nova surpresa. É a presença do vistoso campus do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia contrastando com a paisagem seca da região. Significa oportunidade de formação em nível superior para jovens que, como disse meu primo em Lençóis, já não precisam procurá-la na capital ou em cidades maiores do interior baiano.
Era como se a presença estatal desfilasse à minha frente enquanto eu percorria centenas de quilômetros pelo sertão baiano.
NORDESTINO VALORIZA O QUE NÃO TINHA
Compreendi: para quem mora em uma grande cidade, essas e outras realizações certamente também estão bem ali, mas não são vistas, cobertas pela multiplicidade de informações que nos atraem a atenção simultaneamente. Além do que, em alguns casos, não representa grande novidade, pois os seus moradores estão acostumados a dispor de alguma atenção pública.  
Passada a eleição, vimos uma enxurrada de mensagens preconceituosas, voltadas contra os brasileiros do Norte e do Nordeste, que decidiram garantir a continuidade dessa política de inclusão social e desconcentração regional dos frutos do desenvolvimento. Para isso, juntaram-se à maioria dos cariocas, fluminenses e mineiros que tiveram a mesma convicção, assim como milhões de eleitores do Sul, do Sudeste e Centro-Oeste.
Inconformados com o resultado das urnas, as mensagens taxavam os nordestinos de “burros”, inconscientes, incapazes de fazer uma escolha eleitoral adequada. Pude constatar que a ação do governo federal não é focada no Nordeste (ou no Norte), mas apenas estende a tais regiões benefícios que, antes, eram restritos a outros brasileiros. Tanto que vi a BR 116 sendo duplicada na saída de Feira de Santana, mais testemunhei as obras de duplicação já em fase final na BR 060, no trecho entre Jataí e Goiânia. Ou sendo implementadas na BR 050, entre Cristalina e Uberlândia. Mas, conhecendo razoavelmente bem o interior de vários estados do Nordeste e, particularmente, essa região, que já percorri diversas vezes, posso atestar que a presença do Estado é, aí, uma novidade. Basta lembrar, há não muitos anos, quantas vezes passei por longos trechos de estradas em que os motoristas jogavam moedas para pessoas que cobriam com terra os inúmeros buracos.  
Cheguei a Brasília me perguntando: serão mesmo tolos os nordestinos que votaram pela continuidade dessa nova política? E o que dizer de nordestinos que votaram para interrompê-la, devolvendo a região em que vivem a grupos políticos que a mantiveram segregada ao longo de séculos?
Fernando Tolentino

DICAS DE ESTRADAS NOS TRECHOS QUE PERCORRI DURANTE AS FÉRIAS
Fiz 3 mil quilômetros de estradas nas férias em um giro comemorativo.
Aproveito para repassar as dicas desse roteiro, que podem ser interessantes para muitos amigos e leitores do Blog de Tolentino que devem usar algumas dessas estradas nas próximas férias, daqui a não mais que uns dias.
O giro teve duas fases. A primeira compreendeu Brasília – Uberlândia (MG) – Jataí (GO) – Brasília. A segunda se deu no trecho Salvador – Brasília. Usei avião na ida para Salvador.
Brasília – Uberlândia (MG): BR 040 e BR 050
423 km – Tráfego extremamente intenso entre Brasília e Luziânia e ainda intenso até Cristalina, onde há troca de rodovia. Esse trecho tem uma alternativa (que não usei), a rodovia estadual GO 436 (Goiás Verde), em excelente estado de pavimentação e com pouco tráfego, o que compensa o excedente em distância, a que se pode ter acesso pela saída para Unaí próxima ao bairro Tororó (BR 251) ou pouco depois de Luziânia, pela rodovia GO 010. Há obras de duplicação entre Cristalina e Araguari. A viagem volta a ter maior intensidade de tráfego entre Araguari e Uberlândia. Mas a estrada está duplicada a partir da Ponte Estelita, junto a Araguari. A rodovia entre Cristalina e Uberlândia está em bom estado e tem boa sinalização.
Uberlândia – Jataí (GO): BR 365 e BR 060
426 km – Tráfego intenso na saída de Uberlândia e nas proximidades de Rio Verde. A rodovia tem bom estado e boa sinalização, salvo em pequenos trechos e na passagem pela BR 364 (em que há sinalização para Itaipava), quando o motorista pode ser induzido a erro e entrar na estrada errada.
Jataí – Brasília: BR 060
527 km – Rodovia em fase final de duplicação no trecho entre Rio Verde e Goiânia, o que acarreta trânsito pesado, que se torna muito ainda mais intenso nas proximidades de Goiânia. Esse tráfego se repete nas proximidades de Brasília. A maior parte da rodovia utilizada tem sinalização perfeita. Há poucos postos de abastecimento (ou locais para lanches e outras atenções pessoais) entre Jataí e Goiânia.
Salvador – Brasília:
Trecho Salvador – Feira de Santana: BR 324
105 km – Rodovia totalmente duplicada, com dois pedágios (R$ 1,30 para carros pequenos), piso e sinalização em bom estado e tráfego muito intenso em todo o percurso, mas fluxo em boa velocidade. Sofri longa parada por conta de um acidente à frente.
Trecho Feira de Santana – Ibotirama: BR 116 e BR 242
538 km – Obras de duplicação na BR 116, com construção de viadutos e retornos que tornam a saída de Feira de Santana extremamente tumultuada e demorada. O asfalto do trecho da BR 116 até a entrada para a BR 242 está em bom estado. Pessoas que utilizam frequentemente as estradas da região sugerem que se dê preferência à Estrada do Feijão (primeira saída da BR 116, com indicação para Irecê), utilizando-a até Ipirá, de onde se pode seguir para Lençóis e retomar a BR 242. Esta rodovia tem piso em bom estado, mas maior volume de tráfego (inclusive de caminhões), sinalização desgastada e alguns trechos com muitas curvas no início da Chapada Diamantina. Com o uso da alternativa, evita-se também quase todo o percurso que seria utilizado na BR 116 e os 15 km excedentes podem ser compensados. Poucas opções de postos de abastecimento ou paradas para lanches e atenções pessoais na BR 242.
Trecho Ibotirama – Bom Jesus da Lapa: BA 160
141 km – Rodovia estadual, um pouco mais estreita, mas com asfalto em bom estado e sinalização adequada. Poucas opções de postos de abastecimento ou paradas para lanches e atenções pessoais.
Trecho Bom Jesus da Lapa – Brasília: BR 324 e BR 020
670 km – Há desgaste de vários trechos, com eventuais buracos entre Bom Jesus da Lapa e o entroncamento das duas rodovias e alguns poucos trechos com o asfalto sofrendo desníveis daí até Formosa. Entre Formosa e Brasília (100 km), a rodovia é inteiramente duplicada, mas recebe obras de recapeamento até Planaltina, já no Distrito Federal.

terça-feira, 4 de novembro de 2014

"SE É PRA MIM, SOU A FAVOR"



Cresci em um tempo em que os liberais confrontavam a esquerda alegando que o ideal não seria que a sociedade desse a todos a mesma condição de vida, mas igualdade de oportunidades.
Não sendo um liberal, até que achava uma máxima interessante.
Pois bem.  Nasci em uma família de classe média baiana. Se não absolutamente branca (seria pedir muito em Salvador), mas tida como tal. Até porque meu pai se casara com uma catarinense, a minha mãe. Ao galgar a condição de pequeno comerciante, meu avô impôs-se a meta de formar os filhos. De modo que meu pai, bacharel em Direito, tornou-se promotor público e professor universitário. Minha mãe, enfermeira, graduou-se também em Nutrição e foi imediatamente aproveitada como professora desse curso. Adiante, faria um pós-graduação no México e se aposentaria como diretora da Escola.
Éramos de classe média. Se ter filhos com formação superior já era um sonho para meu avô, imagine para os meus pais, ambos professores da Universidade Federal da Bahia.
Consegui passar no exame de admissão para o Colégio de Aplicação. Equivalia mais ou menos ao quinto ano do primeiro grau, de modo que ali faria mais quatro de curso ginasial e o segundo grau. Colégio público, vinculado à Faculdade de Filosofia da Universidade Federal da Bahia, era seguramente um dos três melhores de Salvador. Tão bom que, sendo público, eu era de família situada na média de renda dos estudantes, talvez um pouco abaixo disso. As vagas eram disputadas por crianças e adolescentes vindos de classes abastadas. De modo que não precisei de preparação para o vestibular. Pra falar a verdade, ainda tentei um reforço em matemática, já que vinha de curso clássico, onde a disciplina era restrita ao primeiro ano e com nível de exigência inferior. Para completar o valor do cursinho, acrescentei inglês.
Uma sala comprida, em que os vestibulandos se espremiam, mal tendo como escutar o professor. Eu chegava atrasado e, claro, só conseguia lugar no fundão. Ao meu lado, um rapaz gritava; “Pode repetir, professor”. De longe, repetia o que representava no quadro negro: "Ângulo alfa e ângulo beta”. Lá do fundo, mais um reclamava: “Não deu pra escutar”. Já irritado, mas preocupado em repassar toda a disciplina, vem a resposta: "Alfa e beta; estou falando grego?" Levantei-me e saí. Concluí que, com sorte, até podia aprender matemática, mas desaprenderia o resto. E larguei as duas disciplinas. A aprovação no vestibular de Administração, na mesma Universidade Federal da Bahia, foi garantida pelo básico do Colégio de Aplicação. Em uma das primeiras colocações, vale lembrar, como se esperava de seus ex-alunos.
Passados quatro anos, terminei o curso e logo fui aproveitado como profissional. Era um dos primeiros cursos de Administração do Brasil, de modo que não havia problema de colocação no mercado. Mais quatro anos e fui convidado para trabalhar no MEC, em Brasília.
Foi nessa época que decidi cursar Jornalismo. Não me sentia acomodado trabalhando no governo em pleno período da ditadura. Não precisei um novo vestibular para ingressar no curso, pois já tinha uma graduação.
A longa remissão biográfica serve apenas para conduzir à reflexão: onde está a tal “igualdade de oportunidades”?
Não estou renunciando aos meus méritos pessoais. Mas, tenho que reconhecer, as condições me foram amplamente favoráveis.
De classe média e filho de profissionais de nível superior, ambos depois professores universitários, já nasci em situação que me dava boas condições comparativas, além de me encaminhar para uma formação acima do conjunto da sociedade. 
É importante, aqui, lembrar um esforço localizado, em Salvador, para reparar essa desvantagem dos filhos de classes econômicos inferiores.
Testemunhei a implantação de preparativos para que 30 ou 40 crianças comprovadamente pobres tivessem melhor condição para concorrer no exame de admissão do nosso Colégio. Foi uma iniciativa da notável professora Maria Angélica Matos, então diretora. Metade da turma foi aprovada e foi acompanhada durante a 1ª. Série, saindo-se muito bem.
Angélica, com quem tenho a felicidade de manter relação pessoal ainda hoje, explica que “o objetivo era mostrar que o pobre tem vez se lhe derem oportunidade.” Modesta, faz um reparo à qualificação de notável. “Basta ter sensibilidade e formação política”, avalia. E conclui: “Hoje, sinto-me feliz ao ver a realização de um sonho ‘muito sonhado’ na década de 1960.”
A verdade é que o exame de admissão foi a minha primeira confirmação do diferencial de classe. O detalhe é que, a partir daí, meu desenvolvimento futuro estava mais ou menos assegurado e o custo desse desenvolvimento seria integralmente bancado pela sociedade: cursos ginasial e colegial, assim como o superior, em instituições gratuitas, da Universidade Federal da Bahia.
Certa vez, um amigo lembrou um fato ocorrido quando voltou à casa dos pais, que viviam em um bairro popular, após graduar-se em Administração e passar alguns anos fora da Bahia. Ao entrar em um bar próximo para comprar refrigerantes, foi cumprimentado por amigos de infância, os mesmos que não tomavam conhecimento de que fosse o dono da bola e escalavam o time, deixando-o sentado no meio-fio para entrar quando alguém cansasse ou, quando muito, determinando que ficasse no gol. Esses mesmos amigos dirigiram-se a ele com reverência, chamando-o de “Doutor” e não pelo apelido ou, ao menos, o nome. Já haviam "aprendido" a estabelecer uma nítida sujeição social.
Importa, agora, é esta reflexão. Enquanto eu me tornava o que sou hoje, um profissional com dupla graduação superior e três cursos de especialização, a sociedade investia em mim. E a sociedade não é uma coisa abstrata. A sociedade é aquela turma que trabalha e produz, quase sempre com salários escassos e muitas vezes não recebendo suficiente compensação do Estado.
Ainda na universidade e já com modesta remuneração de estagiários, reuníamos anualmente os colegas para preenchermos os complicadíssimos formulários de Declaração de Rendimentos. Participou conosco o marido de uma professora que queria uma ajuda. Tinha alguma terras, praticamente improdutivas, já que não tinha capital suficiente para explorá-las. Mas era agrônomo do Estado. Ao final, foi o único sem nada pra pagar. Era beneficiado pela chamada Cédula G, utilizada pelos proprietários rurais. Ali, o imposto sumia.
Trabalhei como auxiliar de contabilidade durante o tempo de faculdade, prestando serviço para várias empresas. Fiquei impressionado porque eram todas absorvidas como sendo da empresa as despesas pessoais dos sócios: aquisição e manutenção dos carros da família, custeio de viagens, despesas de saúde e por aí vai. Os filhos não recebiam mesadas, mas eram registrados na folha de pagamento. A retirada era próxima do salário mínimo. Resultado, nada de imposto de renda para os sócios e imposto muito menor para as empresas.
Impossível não comparar com a nossa situação do tempo de estagiários!
O que me pergunto hoje é que direito eu tenho de negar o mínimo de compensação aos filhos de muitos que produziram para eu chegar à minha atual condição pelas condições desvantajosas que lhes foram oferecidas para ascender na vida .
Pois são políticas voltadas para atingir esses resultados que são combatidas atualmente pelos neoliberais, filhos e netos de muitos daqueles que, outrora, enfrentavam a esquerda com o discurso da igualdade de oportunidades.
São esses os que, raivosos, não aceitam um resultado eleitoral que vai representar a confirmação e aprofundamento desses programas de compensação social.
Fernando Tolentino