segunda-feira, 28 de abril de 2014

O AUMENTO DOS VOTOS BRANCOS, NULOS E ABSTENÇÕES NAS ELEIÇÕES, NO BRASIL E NO MUNDO.



Assis Ribeiro
O artigo do professor Werneck, “Está esquisito”, publicado aqui no blog (Luis Nassif Online) com o Título “A descrença generalizada nas pessoas e nas instituições" demonstra a preocupação com os altos índices de declaração de votos brancos e nulos obtidos nas últimas pesquisas eleitorais. No entanto, o professor não avança em quadros comparativos o que prejudica a sua análise e conclusões. É histórico, e vem de muitos anos, a tendência de números altos dos votos brancos, nulos e dos que não comparecem às urnas, fator que ocorre em todo o mundo.
No Brasil, no período pós-redemocratização, o percentual médio de abstenção é de 18%, enquanto o percentual médio do voto branco e nulo é de 2% e 5% respectivamente, portanto dentro do quadro que as últimas pesquisas de intenção de voto apontam.
No primeiro turno das eleições presidenciais de 1998, a chamada “alienação eleitoral” atingiu um número superior aos votos do presidente eleito em primeiro turno Fernando Henrique Cardoso obteve 35.936.918 votos, o equivalente a 53,06% dos votos válidos, enquanto a soma das abstenções com os votos brancos e nulos alcançou 38.371.942.
Neste mesmo ano, em relação aos estados, no Pará observou-se a ausência 33,22% do eleitorado, no Acre 24,88%, em Alagoas 28,22%, no Amazonas 29,12%, na Bahia 31,84%, no Ceará 23,27%, no Espírito Santo 21,81%, no Maranhão 31,03%, no Mato Grosso 29%, na Paraíba 24,63%, em Pernambuco 25,58%, no Piauí 24,40%, Rondônia 29,99% e Roraima 21,63%.
Nas últimas eleições municipais, em São Paulo 19,99% dos eleitores não compareceram às urnas, o percentual de votos em brancos somaram 4,34% e os votos nulos 7,26%%. Em Belo Horizonte votos brancos 5,79%, nulos 9,15%, abstenções 18,88%. Em Recife a abstenção foi de 16,38%, votos em branco 4,57% e nulos 4,81%.
Pelo mundo:
(http://passapalavra.info/2009/03/1579)
“Nas eleições presidenciais (Estados Unidos) de 1996 menos de metade do eleitorado votou; nunca a abstenção fora tão elevada neste tipo de eleições. A situação não se modificou substancialmente nas eleições presidenciais seguintes, pois em 2000 a taxa de participação foi apenas de 51%. Todavia, nas eleições presidenciais de 2004 foi já 61% do eleitorado a votar, uma tendência que se tornou mais acentuada em Novembro de 2008, quando votou 63% do eleitorado, a menor taxa de abstenção desde 1960. Isto significa que numa das campanhas presidenciais mais polarizadas, quando o país atravessava uma situação interna e externa particularmente difícil, o facto de um pouco menos de 2/3 dos potenciais eleitores se terem dirigido às urnas foi considerado como um notável acontecimento. Entretanto, o interesse tem sido menor quando as votações não são simultâneas com a eleição presidencial e se destinam apenas à renovação parcial do Congresso. Nestas, entre 1958 e 1970 só participou uma média de 44% do eleitorado, taxa que desceu para 36% entre 1974 e 1986. Nas eleições de 1990 apenas 1/3 do eleitorado se deu ao trabalho de votar, subindo a proporção em 1994, quando votaram 38% dos eleitores potenciais. Esta taxa repetiu-se praticamente em 2002, com uma participação de 39% do eleitorado. Em resumo, a democracia representativa tem mobilizado apenas entre 1/3 e 2/3 dos eleitores norte-americanos.
Note-se que nos Estados Unidos as percentagens de participantes e de abstencionistas são calculadas em função da população em idade de votar, enquanto que na maior parte dos outros países o cálculo é feito em função do número de inscritos nos registos eleitorais. Se contabilizássemos aquelas pessoas que nem sequer se incomodam a levar o nome para os recenseamentos, a abstenção eleitoral dos norte-americanos não ultrapassaria muito a europeia, embora o aumento da abstenção caracterize também as democracias da Europa.
Consideremos o caso da França, um dos países com tradição democrática mais arraigada e onde o voto mais cedo se universalizou. Na primeira volta das eleições presidenciais de 1995 a percentagem de participação desceu a um nível sem precedentes neste tipo de votação, 77%, ao mesmo tempo que a percentagem de votos nulos atingiu também um nível sem precedentes, 3%. A taxa de participação continuou a declinar, baixando para 72% na primeira volta das eleições presidenciais de 2002, enquanto na segunda volta subiu quase para 80%, mas é necessário recordar que nesta ocasião se tratava de uma escolha bastante polarizada, entre o candidato da extrema-direita e um candidato da direita conservadora apoiado por todos os centristas e pela esquerda. Quando os eleitores julgam tratar-se de uma opção significativa o interesse pela votação aumenta, como sucedeu também nas últimas eleições presidenciais, em 2007, quando a taxa de participação em ambas as voltas foi de 84%. Na escolha dos deputados, porém, a tendência tem sido para o aumento da abstenção. Na primeira volta das eleições legislativas de 1993 a taxa de abstenção foi de 31% e de 33% na segunda volta, e nas eleições legislativas de 1997 os números correspondentes foram 32% e 29%. Na primeira volta das eleições legislativas de 2002 a taxa de abstenção quase chegou aos 36%, maior do que em qualquer das voltas de todas as outras onze eleições legislativas da Quinta República. O desinteresse é mais pronunciado ainda nas eleições regionais, já que entre 1986 e 1998 a taxa de abstenção praticamente duplicou, passando para 42%.
Portugal (...). Nas eleições legislativas de 1987 a abstenção foi de 22% e subiu para 32% nas de 1991, chegando a 33% nas eleições legislativas de 1995 e a 38% nas de 1999 e de 2002. Nas eleições legislativas de 2005, porém, a taxa de abstenção baixou para 35%”.
Os dados acima devem principiar qualquer análise do que vem ocorrendo no Brasil e no mundo na questão da participação popular nas eleições. Como se pode observar a participação popular nas eleições vem decrescendo nas últimas décadas, como fenômeno mundial, o que pode caracterizar uma “cultura” formada a partir do modelo filosófico, ou paradigma, que vive o mundo.
O modelo que separa o todo em partes leva ao individualismo que em seu extremo favorece ao egoísmo, o ser narcísico preocupado apenas com o seu próprio umbigo. O modelo de consumo e sobrevivência termina por afastar o indivíduo de suas responsabilidades coletivas. Trata-se da redução do cidadão à mero consumidor e preocupado apenas com suas relações individuais e diretas.
Neste sentido, vários pensadores já abordaram esse afastamento dos indivíduos entre si e a transferência de suas responsabilidades para os destinos de suas próprias coletividades. Bauman fala no “fim da cidadania”; Sennett no “declínio do homem público”; Arendt na “dissolução do espaço público”; Habermas no “esgotamento das energias utópicas” ; Canclini na “mercadorização de todas as esferas da vida”; Milton Santos:
"Quando se confundem cidadão e consumidor, a educação, a moradia, a saúde, o lazer aparecem como conquistas pessoais e não como direitos sociais. Até mesmo a política passa a ser uma função do consumo. Essa segunda natureza vai tomando lugar sempre maior em cada indivíduo, o lugar do cidadão vai ficando menor, e até mesmo a vontade de se tornar cidadão por inteiro se reduz."
Esse é o caldo cultural que leva o indivíduo a se desinteressar do processo eleitoral e mesmo da política tradicional, e a intenção de se criar esse ser despolitizado foi intencionalmente concebida, uma vitória do pragmatismo.
Publicado originalmente no Luis Nassif Online, em 28/04/2014

sábado, 26 de abril de 2014

ESTE É O PAÍS QUE VAI FAZER A COPA




Ontem seria um dia para ser esquecido.
Pulei da cama às 3 da madrugada, em Santiago, perdi um tempo enorme procurando uma embalagem térmica perdida pelo hotel, saí sem café (claro), quase perdi o horário de apresentação no aeroporto (duas horas antes), fiz os procedimentos de embarque para Salvador e decidi desistir e voltar direto para Brasília. O solícito funcionário da TAM acertou, pelo rádio, minha retirada da mala que já seguia para o embarque e orientou como recebê-la. Daí, fui de balcão em balcão, carregando a pesada bagagem de mão, e sofri longas esperas até desistir, comprar a nova passagem e embarcar para Brasília, não sem antes fazer meia dúzia de comícios de protesto diante das filas de embarque da empresa. Enquanto aguardava o embarque, novos comícios para os passageiros em volta. Não poderia deixar de escutar, de uma senhora de meia idade: “E esse é o país que quer fazer a Copa!” É claro que reagi: “Isso não tem nada a ver com Copa, mas com irresponsabilidade. Essa empresa sequer é mais realmente nacional, mas vinculada à LAN, chilena, como a Avianca é colombiana e a Azul, estadunidense. Perdi a bagagem aqui, mas poderia ter sido em Santiago, onde perdi minha embalagem térmica, ora!” Não deixei de comparar aeroportos e hotéis brasileiros com os da Argentina, que fez a Copa em 78 e lembrar que o Brasil fez a de 50.
Não é brincadeira me acomodar (se é possível dizer isso) nos minguados espaços dos aviões. No de Santiago a São Paulo fui colocado naquela poltrona encostada no banheiro, com recosto que não reclina. Acharam pouco e puseram ao meu lado um rapaz com pernas maiores que as minhas. Foi tão complicado que as próprias comissárias resolveram me tirar dali, pois o que sobrava de minhas pernas e ombros atravancava o corredor. Fiquei em uma poltrona de meio, evidentemente apertada, mas estaria no lucro ainda assim se não fosse a decepção do alemão ao ver que perderia a poltrona livre ao seu lado. Sequer mereci resposta para o “bom dia”, mas nem posso me queixar, pois posso assegurar, por experiências antes vividas, que ontem foi o seu dia de banho.
No trecho de Guarulhos a Brasília, outro aperto, agora incomodado pelo corpulento jovem à minha frente. De tanto pular na cadeira, parecia fazer sexo sozinho durante o voo. Posso atestar a resistência da poltrona. Cheguei à noite. Literalmente esgotado. Insone, um dia de muita luta, cansaço, incertezas, aporrinhação.
Encontrei em Brasília um aeroporto diferente do deixado há duas semanas. Ainda carente de organização, mas lindo, espaçoso, inteiramente servido por esteiras. Centenas de pessoas disputavam os espaços, aparentemente também extasiadas. À frente dos amplos espaços, várias faziam fotos, que devem estar espalhadas por aí nos perfis de facebuque, no tuíter ou outras redes. Parecia que a reforma se dera nesses quinze dias. No balcão de reclamação da TAM, me foi mostrado no computador que a bagagem chegaria a Salvador uma hora depois. Fiz os registros da queixa e recebi a promessa de que a receberia hoje, em casa.
A manhã de hoje serviu para arrumar tudo em casa e rememorar a viagem de férias. Tenho grande apego por Santiago, aonde vou sempre que posso. Cerro San Cristobal, subida e descida em funiculares, Mansão La Chascona (Pablo Neruda), Cerro Santa Lucia, passada pelo zoológico, a galeria do Bela Vista, uma noite de música chilena, salmão, congrio e vinho nacionais, cervejas idem, inclusive as várias artesanais, caminhadas por ruas e avenidas largas, com prédios recuados (como nas grandes cidades brasileiras dos anos 60), arborizadas com plátanos, o chão coberto das folhas do outono.


O paraíso? Não. O Chile tem seus problemas, como o Brasil. Não têm alguns dos nossos, mas têm outros. Podemos circular nas ruas com as câmeras penduradas no ombro sem risco de assalto. O povo é acolhedor, gosta de dar informações e as dá adequadamente, até falando devagar, pois percebem nossa nacionalidade antes que digamos uma só palavra. Sua geografia é extremamente peculiar: 4270 km de norte ao sul (nosso litoral tem 7.408 km), mas a extensão entre leste e oeste não ultrapassa 177 km.  A mesma que separa Goiânia e Brasília por estrada: 173 km. Ou menos que a distância rodoviária entre Rio de Janeiro e Juiz de Fora, que é de 180 km. Por isso, é difícil generalizar os problemas nacionais, como no Brasil. Punta Arena fica no extremo sul, à margem do Estreito de Magalhães, diante da Terra do Fogo, disputando a condição de cidade mais próxima do Polo Sul e a 2.197 km de Santiago em linha reta. Saímos de lá às 8 horas da manhã com 5 graus de temperatura e encontramos 26 graus em Santiago no final da tarde.


Estivemos em Santiago, Valparaíso (na época do incêndio), Viña del Mar, Puerto Montt, Puerto Varas, Frutillar, Punta Arenas, Puerto Natales. Subimos ao Vulcão Osorno e lá pegamos no máximo 2 graus em meio à neve ou no trajeto de teleférico. Flagramos animais incomuns no Brasil, como guanacos e condores, vimos fazendas de salmões, cenários maravilhosos de pré-cordilheira nevada e geleiras, diante de espelhos d’água absolutamente plácidos. Mas – se quiserem podem denunciar que quero estragar o prazer – não dá pra deixar de lembrar que é impossível um banho de mar. Água com temperatura negativa ou muito próxima de zero, ainda que sob o sol, e o piso pedregoso só me remetiam ao mar cálido da Bahia e suas areias brancas sob coqueiros, além de uma temperatura média de 26 a 28 graus ao sair da água. Andamos em rodovias bem cuidadas, mas vimos várias com obras de recuperação conturbando o tráfego e outras ainda sendo implantadas. Gasolina a cerca de R$ 3,45 em Santiago e R$ 3,60 no sul. O aeroporto de Santiago está em obras, como os nossos.  

 A alimentação é extremamente diferente, no padrão europeu, com entrada, salada e prato principal separados. Prato principal sem acompanhamento. Nada de feijão, farinha nem pensar, eventualmente arroz, pedido separadamente, e batata. Raramente suco de frutas natural. Quase sempre “frutilla”. No Brasil eu não tomo esse suco, pois inventaram tanto remédio com gosto de morango que passei a achar a fruta com gosto de remédio. Saudade de guaraná! Muito vinho, cerveja e às vezes água tônica.
Se a capital tem baixo índice de umidade (como Brasília), o índice pluviométrico de Puerto Montt sequer se mede em milímetros, como no Brasil, mas em metros, tanta é a chuva que cai sobre a cidade. Pegamos sol todos os dias e o guia sugeriu que jogasse na megasena ao voltar. Em Santiago, praticamente é impossível ver a Cordilheira dos Andes, pois a poluição não é imaginável sequer para um paulistano. Os chilenos convivem bem com os cachorros na rua. Chamam a atenção por serem muitos, andarem aos bandos e não poucos demonstrarem alguma pureza racial. Mas é preciso dizer que embora seja comum os chilenos os abandonarem quando crescem, eles são alimentados por populares e não há qualquer sinal de agressividade mútua. Os cães só não se conformam com a presença de motos, que perseguem. Triste é ver, especialmente à noite, os pobres animais padecendo de frio. Abandono de cachorros não é um problema específico do Chile. Em Paris, ocorre de serem abandonados quando as famílias saem de férias. Segundo me disseram os chilenos, são tímidos os programas públicos para animais de ruas, como a castração para evitar a reprodução excessiva. Não há também programas de acolhimento ou recolhimento. Os da foto são de Puerto Montt, mas os fotografei em Santiago e Punta Arenas.

Os sinais de pobreza são semelhantes aos nossos, com vendedores, malabaristas e músicos nos semáforos e alguns pedintes pelas ruas. O vandalismo, também. Sejam pichações ou depredação de sinais de rua, muitos sendo cobertos por propagandas. Flagrei vários desses na Avenida Pio Nono, que dá acesso ao Cerro San Cristobal. 

O trânsito, com ruas espaçosas e menos carros (não há indústria chilena de automóveis), tem períodos curtos de engarrafamentos. Para isso contribuem as alternativas de transporte de massa. Para se ter uma ideia, Santiago tem 103 de metrô para 5,4 milhões de habitantes na região metropolitana, enquanto os 20 milhões de paulistanos (Grande São Paulo) têm 75 km.
Os chilenos estão ligados na Copa. Muita publicidade em torno dela, vinculando-as a vários programas. Às vezes parece engraçado como o Brasil é mais querido por outros povos da América Latina que pelos brasileiros. Eles, por exemplo, estão animados porque a Copa é perto do Chile. Torcem para o campeão ser algum país da América Latina.Como eu. Cada um preferindo o seu, claro. Eles têm uma ressalva: "Menos os argentinos." Quando estive em Cuba, o Brasil havia acabado de conquistar a realização de Olimpíadas em seu próprio território e os cubanos vibravam com isso como se fosse ocorrer lá. Alguns me cumprimentavam por isso e comemoravam uma Olimpíada no hemisfério sul e na América Latina. Só no Brasil se identifica esse baixo astral com pessoas lamentando-se por sediar a Copa e as Olimpíadas!
Fiquei todo o sábado retido em casa por culpa da TAM. A funcionária me ligou na primeira hora da manhã e disse que a mala já estava em Brasília e seria entregue “no horário comercial”. Como eu alegasse que precisaria sair, fazer a feira do sábado, almoçar e tomar várias outras providências, perguntou minha hora preferida e garantiu que a entrega se daria ainda pela manhã. Não saí pela manhã, não pude sair para almoçar, passei toda a tarde preso em casa, até que perdi a paciência e me mandei para o aeroporto. Já entrava lá, mais de 20 horas, quando me ligou o funcionário escalado para a entrega. Estava na porta de minha casa. Voltei e peguei a mala. Realmente intacta. Disse-me que só lhe foi passada para ser entregue às 16 horas! Nossa sensação é esquisita: ao ver a mala de volta, quase esquecemos o aborrecimento da espera...
Dia inteiro em casa, não faltou tempo para lembrar da mulher do comentário sobre o Brasil e a Copa. Que vontade de encontrá-la para pedir desculpas. Lembrei das expressões de quem estava em volta. Duas senhoras, amigas dela, demonstravam com os olhos que me davam razão e balançavam as cabeças em sinal de aprovação. Outros também se interessaram e saí do bate-boca convencido de que realmente não podia ficar calado. E acho que não podia mesmo. Mas a verdade é que a mulher não precisa da descompostura. Entendi que é apenas alguém que desperdiça sábados e domingos diante da TV, ouvindo coisas como esta (“Imagina na Copa!). As pessoas que a cercam certamente não têm coragem de romper o hábito de uma novela atrás da outra, noites e noites seguidas, até não lhes restar um pingo de capacidade de compreender o mundo. De pelo menos entenderem que o Brasil é um país como os outros.
Os problemas estão por aí. As soluções dependem de entendermos que podemos adotá-las. Fazemos parte de um mundo em crise e essa crise bate à nossa porta. Porque não é tão grave quanto na Europa? Naqueles países que sempre aprendemos a ver como superiores? O que não faltou foi enfrentamento. Nunca se investiu tanto em educação, em saúde, jamais houve um programa que levasse médicos à periferia e pequenas cidades do país, as universidades deixaram de ser instituições ilhadas nas capitais, as vagas em programas de bolsas para estudantes carentes se multiplicaram exponencialmente, nos de formação de mão de obra também, programas sociais ajudaram a tirar 40 milhões de brasileiros da miséria, o salário (em dólares) multiplicou-se  mais de quatro vezes, ressurgiu a indústria naval, várias refinarias são construídas, a água é levada ao sertão nordestino, investe-se em hidrelétricas como não ocorria há anos, há formidáveis investimentos em mobilidade urbana, foi paga integralmente a dívida externa... Mas o crescimento do PIB é tímido. A questão é que, se tímido, está entre os que mais crescem no mundo em crise, como as taxas de desemprego são também as menores.
Para que tudo isso ocorresse, nosso povo não deu muito mais do que o voto. O voto e a esperança. E alguém duvida, hoje, que ao menos uma parte dessa capacidade brasileira de resistir à crise mundial vem de uma sucessão de megaeventos conquistados nos últimos anos? Copa das Confederações, Festival da Juventude, Olimpíadas Militares, Copa do Mundo, Paraolimpíadas, Olimpíadas. Ufa! Não há um ano em que o Brasil não esteja no centro das atenções do mundo, atraindo estrangeiros para cá e criando um lastro para que essa corrente se mantenha. A verdade é que esse intenso calendário e a Copa do Mundo em particular são poderosos propulsores de atividade econômica e têm permitido que nossa economia se imponha e nossos programas sociais mantenham o mesmo vigor de antes da crise mundial.
É com essa capacidade de resistir que não se conformam os propagadores do Imagine na Copa!, do É este o País que quer fazer a Copa?, do Não vai ter Copa.
Espero que a pobre mulher tenha conseguido romper com a visão deprimida da parte mais passiva de nossa população, a que não consegue desviar os olhos da telinha e espiar pela janela. E, percebendo que somos os grandes beneficiários dessa agenda, que tenha condições de dizer, com convicção e alegria, como acreditam os chilenos e os povos de vários outros países da América Latina: ESTE É O PAÍS QUE VAI FAZER A COPA.

Fernando Tolentino

quarta-feira, 2 de abril de 2014

MULHER ALGUMA MERECE SER ESTUPRADA






Causou e continua causando justa e enorme indignação uma das respostas obtidas em pesquisa realizada pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) e divulgada no final de março na qual se analisa a visão do brasileiro sobre a mulher: nada menos de 65% dos entrevistados disseram concordar com a frase “mulheres que usam roupas que mostram o corpo merecem ser atacadas”.
São contraditórias as respostas aos questionamentos do levantamento do Sistema de Indicadores de Percepção Social (SIPS). É esmagadora (91%), por exemplo, a posição favorável a que sejam presos os maridos que batem em mulher, mas 63% dos 3.810 pesquisados concordam que “casos de violência dentro de casa devem ser discutidos somente entre membros da família”.
A indagação que mais contundente para a parcela conscientizada dos direitos da mulher, porém, foi a que a coloca em nítida condição de objeto passivo do desejo masculino ainda que em situação de violência.
Cresci em Salvador, cidade cosmopolita, mas plantada no Nordeste, e me acostumei a ver isso como dominante entre homens e mesmo mulheres, confirmando a máxima marxista de que “a ideologia dominante é a ideologia da classe dominante”. Piadas, troças, análises de casos ocorridos no dia a dia, tudo apontava para essa ideia de que não é dado à mulher o direito de decidir sobre o seu próprio corpo.
A começar pela imposição de que as mulheres só saíssem do domínio (masculino) do pai quando entregues ao casamento. Em outras palavras, ao domínio (masculino) do marido.
Nessa minha velha Bahia, admitia-se (até judicialmente) que os homens “lavassem a honra com sangue”, ou seja, eliminassem fisicamente as suas mulheres se essas cometessem adultério. Era um conceito, digamos assim, pacífico. A bem da verdade, palavra absolutamente inapropriada, convenhamos. Pacífico como sinônimo de universalmente aceito, pois nada menos pacífico para a pobre mulher que escolhia o caminho de uma aventura fora do casamento, como era comum entre os homens.
A distorção tinha força tão grande antes da chegada dos ecos da revolução sexual dos anos 60 que não restava alternativa a uma mulher com o casamento desfeito senão migrar para o Rio de Janeiro. Vivendo na Bahia, era senso comum que o assédio sexual fosse natural.
Imaginava-se soterrada essa visão retrógrada. A de que um casamento poderia ser desfeito se constatado que a mulher não fosse virgem. Ou chegar ao ponto, como em certos grotões, de o orgasmo da esposa não ser admitido pelo marido por poder significar que já conhecesse, antes, o prazer do sexo...
A surpresa explodiu como uma bomba, ainda mais ao se verificar que também mulheres contribuíram majoritariamente para esse entendimento de que o homem teria um certo direito a atacar mulheres que exponham suas formas.
Há três décadas, ainda era comum mulheres não se sentirem à vontade para denunciar agressões sexuais por serem responsabilizadas por esse assédio ao chegarem em delegacias de polícia. Não foi outra a razão para a criação de delegacias especializadas, em que elas tivessem a garantia do atendimento por policiais do sexo feminino e não precisassem se envergonhar da violência sofrida.
Diante do conhecimento dessa visão reacionária ainda forte na nossa sociedade e da grita, principalmente das mulheres mais conscientes, postei uma foto no meu perfil de Facebook em que fiz vigorosa defesa do direito da mulher com relação ao seu corpo e me surpreendi. Em menos de 30 minutos de um horário de pouco acesso, multiplicaram-se as curtidas, felizmente também de amigos homens, além de comentários e compartilhamentos.
“Respeite minha filha, minhas netas, minha namorada, minhas amigas, todas as mulheres que eu amo e as demais também. Cada uma delas é a senhora exclusiva do seu corpo e de suas vontades. Mulher alguma merece ser estuprada.
Mas quero dizer que observei posições também conservadoras no meio dos protestos de algumas amigas.
Ao reagirem contra aquela manifestação clara de submissão da mulher e seu corpo aos desejos masculinos, deu para identificar quem pretenda retirar da mulher a condição de um ser admirável e desejável. E de poder livremente exercer o prazer de expor atributos de que, afinal, foi dotada, seja pela graça de Deus ou da natureza. Como se possível imaginar mulheres sem corpo, admiráveis exclusivamente por seus valores espirituais.
Mais justo seria combinar que todas as mulheres – como os homens, ora! – têm algo de belo de que se orgulhar e se privilegiar nas suas relações sociais ou na sensualidade.
Como prefiro admirar mulheres e com elas me encantar, sou dos que encontram em todas o que despertar atenção e interesse. São as pernas, os olhos, o cabelo, as mãos? O busto, a bunda, os ombros? É o olhar? São os gestos ou é a voz? É o andar? Nada disso, é o conjunto?
Preste atenção e verá que mulher alguma deixará de merecer a atenção de alguém, atrair o desejo.
Melhor entender que a mulher é naturalmente formosa, especialmente aos olhos dos homens. E entender que as mulheres têm o mais legítimo direito de vestir-se, adornar-se, trabalharem gestos, olhares, movimentação do corpo, tudo, com a intenção de serem vistas como belas e sensuais. Ou pelo menos agradáveis.
Podem ter certeza de que os homens também tratam de si pensando em ser admirados e vistos como atraentes.
O que não dá a ninguém o direito de pôr mais que os olhos nos outros. Além disso, o que existe é o direito da mulher e do homem de fazerem (e combinarem) as suas escolhas.
Fernando Tolentino