terça-feira, 7 de maio de 2013

CARTA A UM AMIGO DISTANTE


Quem é você?
Você tem afinidades comigo? É baiano, homem, branco, alto? É um jovem, uma pessoa madura ou quase um idoso? Você é culto? Ao menos alfabetizado? Não sei. Nada sei. Um professor, um advogado, um trabalhador braçal. Talvez um policial, daqueles que já me fizeram temê-lo, ao passar com seu ar arrogante, ao afrontar-me ou a um amigo, ou daqueles que me deixaram grato por socorrer-me em uma situação difícil. Que pena que não sei quem você é ou no mínimo como você é.
Era uma pessoa abastada ou um pobre coitado, um miserável a depender da caridade de desconhecidos para assegurar a alimentação de cada dia. Passava o dia em um escritório, em um balcão, uma fábrica, no cabo de uma enxada ou distribuindo panfletos em um semáforo.
Gostaria de saber se era cristão, budista, evangélico, se seguia o espiritismo, kardecista ou alguma variante de crença que nos trouxeram os negros e se tornaram tão comuns em minha terra. Que bom se pudesse ter convivido com você. Terá sido você um bom homem, bom pai, bom filho, bom companheiro de sua mulher, amigo de seus amigos? Será que tratou as crianças com carinho, gostava de animais, de plantas, compunha poemas ou cantava bem?
É terrível que não saiba nada de você. Nem mesmo se era um negro, um homossexual...
Nada sei de você e, mesmo assim, devo-lhe a vida. Devo-lhe quase tudo que me resta, ainda que você tenha sido alguém que não mereceria minha aprovação para os seus atos. Talvez até, em um momento de ira, possa ter lhe desejado mal. Fico a imaginar se você teria cometido algum crime, talvez até com perversidade, a ponto de que eu desejasse lhe ver punido com as piores penas. Quem sabe até com a perda da vida!
Sei somente que – em um momento qualquer ou ao cabo de muita reflexão – você decidiu fazer o bem a alguém. É impressionante que, por algum motivo, que desconheço, você tenha decidido isso, a ponto de concluir que não fazia diferença quem mereceria a sua caridade. Para você, o importante foi que uma pessoa qualquer seria beneficiada definitivamente por você.
Foi um gesto extremo. Alguém – tão desconhecido para você quanto você é pra mim – seria presenteado com uma parte de você! Ou, não sei, até mais que isso, várias pessoas receberiam diferentes partes de você.
Quem quer que você tenha sido, como tenha sido você ou a sua vida, sei que foi um grande homem ou uma grande mulher.
Como aquele desconhecido que você decidiu premiar, declaro com todas as minhas forças que lhe devoto grande admiração. E grande gratidão. Você é um grande amigo e eu o amo.
Mais, entendi que é assim que devo olhar para os outros desconhecidos. Cada um deles merece o meu amor como uma homenagem a você.

*Doar um órgão não é apenas uma forma de manter uma parte de si viva após a nossa morte. 
É principalmente um gesto de amor extremado, pois de amor a alguém, quem quer que seja. Significa permitir que alguém alongue a sua vida e, assim, também propiciar maior felicidade para os seus familiares, as pessoas que a amam.
Esse órgão que é doado de nada servirá para quem perde a vida, mas significa a própria vida para quem o recebe. É isso que faz a força do amor ao próximo do doador.
Vi meu irmão, Paulo, ampliar a sua expectativa de vida e, mais que isso, com uma qualidade de vida que não teria antes do transplante de fígado. O mesmo privilégio que, anos atrás, teve a minha prima Mary Lou. Entendi que não só eles foram beneficiados por essa caridade alheia. Todos nós temos o resto de nossas vidas para comemorar esse gesto absolutamente espontâneo de pessoas que não conhecemos.
Se esse texto ajudar ao menos uma pessoa a se declarar doador, eu já me sentirei recompensado.

Fernando Tolentino