terça-feira, 1 de janeiro de 2013

O BENEFÍCIO QUE O SUPREMO NEGOU AO BRASIL





Vale sempre repetir que, em política, ou se faz pedagogia ou demagogia. Se o objetivo não é promover o desenvolvimento político das pessoas, a política é intrinsecamente alienante. Reproduz tabus, reforça preconceitos ou análises condicionadas pelas estruturas dominantes.

Essa postura é uma tentação para os candidatos, a de se aproveitar do baixo nível de consciência do eleitor e seduzi-lo com explicações tão fáceis quanto falsas para os fenômenos políticos. É quase uma senha para ganhar votos e, claro, vantagens de grupos ou de classe.

Ao contrário, a pedagogia nasce do compromisso de aprofundar as questões, ir às causas dos fenômenos e buscar a destruição de mitos. Os resultados são duradouros, pois confere um método racional para a interpretação da política, mas é um processo lento, não revertendo em vantagens imediatas para os candidatos. Se é compromisso e não automaticamente eficaz, a pedagogia não é comum no processo eleitoral, quando partidos e seus membros querem mesmo é rápida arregimentação de apoios e votos.

Como ninguém desconhece que o julgamento da Ação Penal 470 foi um ato secundariamente jurídico e eminentemente político, aquela máxima pode servir perfeitamente no seu figurino. E a escolha, com certeza, não foi a pedagogia.

Dos dois ângulos possíveis para a denúncia, o procurador Gurgel escolheu o mais fácil, já adotado e repisado pela grande mídia brasileira. O proposto por Roberto Jefferson nas denúncias originais, ao desviar o foco do esquema de arrecadação montado na máquina estatal para algo editorialmente mais apetitoso: o governo Lula manteria um sistema de compra de apoio parlamentar a partir de um grande caixa que remuneraria mensalmente deputados de partidos da base aliada. Seria tão grande que ele apelidou de “mensalão”.

 A garantia de apoio político com o pagamento de mesadas é lamentavelmente comum em nossa política. Meses antes, fora identificada em Rondônia, onde o governo as distribuía e sabe-se que grandes empresas mantêm assim a fidelidade de bancadas.

Parlamentar polêmico, com quase nenhuma expressão política e menor credibilidade, Jefferson levara o PTB para o palanque de Lula em 2002. Mas a avidez por cargos (e benefícios resultantes) tumultuava a sua relação com o chamado núcleo duro do governo, dirigido pelo então ministro José Dirceu , da Casa Civil. O petebista se vingou do que considerava maus-tratos. Dirceu seria o chefe do “mensalão”.

Provas, pra quê, se até admitia que seu próprio partido se beneficiava do esquema? E mostrava que havia um canal de drenagem de recursos administrados pelo publicitário mineiro Marcos Valério e, mais, passando por escalões da direção nacional do PT.

O PT era o partido que mais crescia no Brasil, elegera para a Presidência um político extremamente carismático e identificado com o povo simples além de ameaçar um novo grande salto nas próximas eleições municipais. Partido visto como pautado pela ética, a denúncia prometia uma implosão. A repercussão foi avassaladora, revoltando milhares de militantes. Os que não saíram ou foram tomados pelo desânimo viriam a enfrentar enorme dificuldade no embate eleitoral seguinte.

Mesmo com algum crescimento do PT no pleito municipal, os conservadores animavam-se com a possível paralisação política do governo Lula e decerto a inviabilização de sua reeleição. A oposição chegou a se assanhar com a ideia de impeachment, só frustrada diante da promessa do próprio Lula de ir às ruas.

A paralisia não ocorreu, veio a reeleição de Lula e uma nova trajetória de crescimento do PT. Contra os prognósticos de marqueteiros e analistas políticos, Lula concluiu o segundo mandato com popularidade nunca vista no Brasil. A ponto de eleger Dilma Rousseff na sua sucessão, embora ela jamais tivesse disputado uma eleição. Para agravar o quadro do lado conservador, a nova presidenta alcançou também enorme popularidade, inclusive entre eleitores não tradicionalmente petistas e todos os seus nomes disponíveis como alternativas presidenciais se mostram frágeis. 

O rumo escolhido 


Foi nesse quadro que o procurador Gurgel, mesmo sem elementos de efetiva convicção, fez sua opção pela tese da compra de apoio parlamentar. Entre os réus, havia vários petistas, que não precisariam evidentemente de propinas para favorecer o governo de Lula. Ainda mais que a maioria dos petistas nada recebeu. Alguém acredita que os demais achariam normal cederem graciosamente seus votos ao governo e só alguns serem gratificados por isso? Não se conseguiu também traçar o menor paralelo entre as liberações de valores e os votos deles e de outros beneficiados em matérias de interesse governamental.

Nada disso importou. Fosse outro o viés, seria demolida a tese que justificaria uma ação penal contra escalões superiores do PT e o ex-ministro José Dirceu como uma quadrilha de corruptores (a eles se juntando empresários que teriam alimentado o esquema) e, de outro lado, por corrupção passiva, vários deputados e funcionários de partidos.

No processo, pontuaram-se várias manobras no mínimo estranhas. A primeira, eloquente, foi a de preterir processos mais antigos, como o do chamado “mensalão mineiro”. Envolvendo políticos do PSDB, esse teria sido o embrião do “mensalão do PT”, tendo ocorrido quatro anos antes e tido o mesmo personagem como operador.

Além de entrar em pauta antes, foram enfáticos os esforços para que o julgamento do processo do PT não só coincidisse com a campanha municipal deste ano, mas forçando a condenação nas vésperas da eleição.

Outros aspectos do julgamento chamaram ainda a atenção, como juntar-se dezenas de réus, inviabilizando-se o duplo grau de jurisdição e o ineditismo do julgamento fatiado, tudo para permitir que o ministro Cesar Peluso desse o seu voto (que já se sabia pela condenação) antes de sua aposentadoria compulsória. Como explicar que um voto pessoal tivesse valor tão avultado? Se isso é realmente significativo, como ficam os demais processos de corrupção política, sem sua presença na Corte, se é que vão chegar a julgamento?  

Como também entender que teria havia apropriação de dinheiro público, o que é negado pelo Banco do Brasil, que não aporta recursos ao Fundo Visanet, o fato tenha sido descaracterizado por auditoria interna e pelo Tribunal de Contas da União?

Por fim, a surpreendente e inédita adoção da teoria do “domínio do fato”, para permitir que Dirceu fosse condenado, não por haver evidências de que participara do esquema, mas por não se crer razoável que, estando na Chefia da Casa Civil, não soubesse do que se passava e, por consequência, chefiasse “a quadrilha”.

Meses antes do julgamento, o ministro Ricardo Lewandowiski tentou dar um grito de independência do Supremo, advertindo de que a Corte não julgaria "com a faca no pescoço". Não fazia a menor ideia de como erraria na sua aposta.

Tudo isso aponta para a hipótese da perseguição de um resultado previamente definido, afastando-se o ângulo politicamente inconveniente para poderosos grupos interessados no desfecho da AP 470. Embora pudesse caracterizar crime eleitoral, não teria o condão de levar os envolvidos para a cadeia. E o que essa gente queria era cadeia, a imagem forte das algemas. Um misto de vingança pelo insucesso reiterado nas urnas e de esperança. A de que, diante dessa imagem assustadora, parte substancial do eleitorado mude o rumo e, na falta de perspectiva, caia em seus braços. 

A raiz do prejuízo


E por que dizer que o STF fez demagogia (e não pedagogia) ao enveredar pelo viés da explicação de Roberto Jefferson – um sistema de mesadas para comprar apoios de deputados – e desdenhar da hipótese de Caixa 2?

Qualquer pessoa minimamente envolvida em política sabe que o viés omitido é justamente o que explica o sucedido. Foi justamente o que ocorreu: crime eleitoral.

A lógica do sistema eleitoral brasileiro passa pelo financiamento privado de campanhas. Seja na Prefeitura do pequeno município ou nas grandes refregas de âmbito nacional. E, desde o minúsculo município, o que anima o financiador é a proximidade do poder. Ali, pequenos empresários têm o candidato do peito (geralmente, o de vitória mais provável) e nele aposta as suas fichas. Mas deixa uma parte de seu orçamento de financiamento para candidatos menos viáveis.

Vai que dá uma zebra! A empresa vai ficar longe do poder? Ao alcance da fiscalização e longe das compras da Prefeitura? O pequeno empresário quer ser lembrado com gratidão por qualquer que seja o ganhador, mas se apavora diante do risco de ser visto como infiel. “Separei essa ajuda pra sua campanha, mas não ponha o meu nome na prestação de contas por favor”, sussurra o financiador ao candidato.

Pronto, surgiu o tão falado Caixa 2, duramente combatido inclusive por que o financiador só pode alimentá-lo se fez arrecadações não declaradas e, portanto, sem recolhimento de impostos. Por isso ganha cada vez mais espaço o financiamento advindo de atividades ilegais, como os jogos e o tráfico, entre outras.

Mesmo derrotado em três eleições, Lula não podia ser definido como um azarão em 2002. Mas era visto como um possível derrotado. E candidato fadado a perder não comove apoios político ou financiadores de campanha. O que lhe transformou em uma aposta de segmentos conservadores desgarrados foi a capacidade do adversário de afugentá-los. José Serra é aquele político que só consegue companhia pela via da sujeição. Haja vista o episódio da família Sarney, que só desembarcou na campanha de Lula (de cuja companhia não se afastou, mesmo no governo de continuidade de Dilma Rousseff) para vingar-se do que identificou como uma manobra de Serra para bombardear a frustrada candidatura de Roseana, com a famosa fotografia do flagrante da montanha de dinheiro.

Qualquer reportagem da época do chamado Escândalo do Mensalão fala das tratativas de PTB e PL junto ao PT para obter recursos para as suas campanhas estaduais. Não surgindo durante a campanha, o compromisso virou dívida. Para cumprir essa promessa, dirigentes do PT teriam recorrido a um esquema já existente em Minas Gerais e que se mostrara eficiente, inclusive sem questionamento pela Justiça Eleitoral, na campanha para a reeleição a governador de Eduardo Azeredo, do PSDB. Foi esse esquema, operado pelo publicitário Marcos Valério que drenou recursos para os dois partidos. É claro que dirigentes de diretórios estaduais do PT também se aproveitariam para cobrir dívidas de suas campanhas.

O sistema era inteligente, especialmente porque não implicava em arrecadar junto a empresários geralmente ávidos por grandes compensações para esse tipo de generosidade. Os recursos viriam principalmente do Fundo Visanet e estariam cobertos por empréstimo bancário em nome do PT. Em suma, Caixa 2. Nem mais, nem menos.

E onde entra a pedagogia em contraposição à demagogia?

Se é fato que ocorreu um mero episódio de Caixa 2, ainda que de grandes proporções, o STF renegou a verdade e fez uma opção pela saída mais fácil, a já fixada no imaginário de leitores de jornais e público de rádio e TV.

Mais que isso, apontou para o nada. Ou alguém acha que sua decisão leva ao saneamento da prática política no País? Para começar, fica pelo menos a expectativa de que, findo o recesso do Judiciário, os preclaros ministros se lancem avidamente no julgamento de episódios como o “mensalão mineiro”, a “lista de Furnas”, a compra de votos para a aprovação da reeleição de Fernando Henrique, as denúncias do livro “A Privataria Tucana”, entre tantos outros. Seria o mínimo para alguém acreditar que, do ponto de vista judicial, a corrupção tenha se tornado uma prática perigosa.

Se, porém, a Corte encarasse os fatos e tivesse identificasse o episódio como Caixa 2, poria em xeque a prática mais nefasta da política brasileira, o financiamento privado de campanhas, que não ocorre sem a ligação umbilical com a expectativa de compensações. E, claro, compensações irregulares, pois não há hipótese aceitável de retribuição a favores empresariais com a drenagem de recursos públicos.

Em um julgamento que não seria eivado de desconfianças, os responsáveis por esse Caixa 2 estariam plenamente identificados e a caminho da punição. Mas, principalmente, o caminho estaria aberto, irrecorrivelmente, para a reforma política que o Congresso insiste em negar, onde o financiamento público de campanhas é o ponto central, aí sim, do saneamento da atividade política brasileira.

Fernando Tolentino