sexta-feira, 19 de junho de 2015

ACADEMIA DE LETRAS DA BAHIA CELEBRA 100 ANOS DE OLDEGAR VIEIRA



A Academia de Letras da Bahia promoveu ontem à noite uma sessão solene para homenagem o intelectual Oldegar Vieira (meu pai), pela passagem de seu centenário, em abril passado.
Além de bela participação da acadêmica Yeda Pessoa (foto abaixo) e me minha manifestação em nome da família, houve pronunciamentos do acadêmico Edivaldo Boaventura; do poeta Cunha Lima, presidente da Academia de Letras do Rio Grande do Norte; da presidente da Academia de Letras e Artes de Lauro de Freiras, Janeide Borges; e da própria presidente da Academia de Letras da Bahia, Evelina Hoisel.
“Fizemos uma coisa diferente”, comemorou a acadêmica Yeda Pessoa, referindo-se ao conteúdo lúdico do evento, que teve recitação da minha nora Gil (inclusive haicais de Oldegar), da atriz Tina Tude e da poeta Miliane Tahira, minha filha (na foto abaixo), além da interpretação de uma música composta por meu filho Iuri Vieira para homenagear meu pai, cantada por ele próprio, por minha nora Gil e por meus netos  Inana, Mel e Letícia.
* No meio do texto seguinte, inserção de fotos com meu irmão, Paulo; com meu filho Iuri (junto com Mel); e cercado de netos.

Meu pronunciamento:

Professora Evelina Hoisel, presidente da Academia de Letras da Bahia
Senhores acadêmicos,
Peço a todos, mas especialmente às senhoras e aos senhores acadêmicos, compreensão para a forte carga emocional deste momento. Emoção que levou meu irmão, Paulo, a pedir para não ser o responsável por fazer essa mensagem. A mim, levou a que preferisse redigir previamente a comunicação e a ler, agora, para vocês.
É que, até por costume profissional, nunca escrevo para que eu mesmo leia. A atividade de jornalismo, profissão que adquiri já em Brasília, me fez criar o hábito de escrever sempre para outros lerem. Quando chamado a falar, minimizo o vulto da tarefa e costumo fazê-lo de improviso. Hoje, o receio de não conseguir chegar, com êxito, ao fim da locução convenceu-me a ler um texto previamente escrito. A estranha experiência de fazer uma conversa por escrito.
Ao falar em nome da família do acadêmico Oldegar Franco Vieira, meu primeiro exercício é uma oração.
Trata-se de um agradecimento. Deus cuidou muito bem de nós, nos atribuiu um verdadeiro privilégio, ao nos fazer nascer nesse ninho.
Não estou falando do escritor ou, ao menos, não exclusivamente. Sobre isso, não me sobraria espaço diante do brilhantismo de professora Yeda Pessoa. Seria inaceitável pretensão me deter sobre isso diante deste notável sodalício.
O que posso – e muito me agrada – é falar do homem, da pessoa incapaz de reter a doçura do seu coração. A pessoa em que testemunhamos fé, compromisso e caráter.
Acho que, neste ponto, estamos falando em nome de Tadeu, de Gabriel, de Zambreu, de Constantino e de tantas pessoas com ou sem nome conhecidos de todos, mas citáveis aqui, tivessem ou não ligações de sangue, fossem conhecidos, cruzassem o seu caminho ou ele apenas se deparasse com os seus problemas e os seus destinos.
Estou lembrando em primeiro lugar do Oldegar amante. Tanto assim que era impedido por minha mãe, de tratar nossas feridas. Não conseguiria fazê-lo. Oldegar preferia cuidar delas, acariciá-las quase. E isso não podia ser visto como terapêutica pela eficiente e responsável enfermeira Edith, a Didi, nossa zelosa mãe.
Oldegar amava o mundo, o mundo inteiro, amava sua Pátria e as pátrias de outros, como o Japão. O tão geograficamente distante Japão, pelo qual se apaixonou, quis conhecer a língua e a cultura, adotou o haicai, conquistando o respeito dos próprios nipônicos.
Amava as pessoas e isso lhe fez um amante também da Justiça. Amava perdidamente a natureza e a lealdade de propósitos. Também por isso, entendeu como indispensável nos fazer escoteiros.
Fico imaginando a dor de Oldegar se tivesse tido o infortúnio de testemunhar fato quase recente, uma autoridade judicial usar a ferramenta Facebook com o despropósito de recomendar a policiais que pusessem o peso da sua violência sobre um grupo de jovens rebeldes, a ponto de assegurar que garantiria a impunidade mesmo que isso resultasse em morte.
O que lembro em Oldegar, pois não são poucos a recordar, é o surpreendente professor, capaz de enfrentar a autoridade policial para não permitir que fosse agredido um ex-aluno que poderia ter sido irreverente com quem, naquele momento, detinha o poder da repressão. Digo surpreendente porque ninguém via nele solidariedade com as bandeiras do movimento estudantil.
Mas o amor de Oldegar o mantinha irrefreavelmente comprometido com quem visse fragilizado. Ainda meninos, eu e meu irmão assistimos, onde Salvador nomeou significativamente como Largo dos Aflitos, ele descer do carro para esgrimir sua cédula de identidade e, assim, impedir que um homem usasse sua peixeira contra o seu desafeto, inteiramente desarmado.
Estamos homenageando um homem, como todos os homens e as mulheres daqui, especialmente apaixonado pelas letras. Leitor incontrolável, acostumamos a vê-lo agarrado à leituras nas madrugadas, quando voltávamos de nossos momentos de lazer juvenil. Cabeceira acesa, lá estava Oldegar dialogando com autores de diferentes disciplinas, fosse direito, política, sociologia, medicina, psicologia e todo o mais. Anotava nas margens dos livros seus comentários, discordâncias, avaliações, às vezes meras perplexidades. É impressionante como eu não conseguia ler um só dos livros já lidos por ele sem satisfazer a curiosidade de ler tais anotações. Às vezes, refletindo sobre aquilo, em outras discordando diametralmente, não raro simplesmente rindo.
Poucos talvez saibam que essa intensidade de dedicação à leitura, naquele momento buscando capacitar-se para a sua primeira experiência docente, no velho Colégio Estadual da Bahia, impôs um lapso de perda de visão em sua juventude, felizmente recuperado sem sequelas significativas.
Esse amor pelo mundo, pelas pessoas, pela Justiça, pela natureza e pelas letras só poderia fazer dele um escritor. E muito cedo. Seus primeiros haicais apareceriam na imprensa baiana em 1932. No ano seguinte, eram reproduzidos na revista da Academia Brasileira de Letras. Imaginem. Ele andava pela casa dos 18 anos e merecia, segundo ele, a generosidade de Afrânio Peixoto.
O seu “Folhas de Chá” surgiria em 1940, depois de concorrer a um prêmio na mesma Academia Brasileira e, por conter haicais, como lembrado pela Dra. Yeda, não escapar à troça de Cassiano Ricardo, que chegou a ser deselegante com Guilherme de Almeida, que também integrava a Comissão Julgadora e era adepto do gênero, então recém-introduzido no Brasil.
Intelectual irrequieto, Oldegar nunca se deteve na poesia. Produziu inúmeros ensaios, entre eles A CONSTITUIÇÃO DE UM ESTADO DE DIREITO E DE CULTURA, O DIREITO E O PODER, A PROBLEMÁTICA TERRITORIAL BRASILEIRA, O HAICAI e UMA NOTÍCIA – BREVE E CAUTELOSA – DA POESIA JAPONESA. A obra sobre a poesia japonesa foi premiada e o credenciou para receber, no Japão, a insígnia de comendador da Ordem do Tesouro Sagrado com Laço, outorgada pelo imperador Akihito.
Engana-se quem, vendo a sua produção literária, pudesse imaginá-lo como um homem contemplativo, contido em uma vida apenas de estudo e reflexões. Impunha-se intervir na realidade. Foi assim que se embrenhou na Amazônia, quando o professor Lourenço Filho, com quem trabalhava no INEP, o indicou para Diretor de Educação no então Território do Guaporé, hoje Rondônia. A pedido do governador, visitou a Escola Ana Nery, no Rio, e conseguiu levar jovens enfermeiras para implantar um serviço de saúde pública. Foi assim que conheceu a catarinense Edith, com quem viria a casar, assim nos possibilitando vida.
De volta à Bahia, foi recrutado pelo professor Edgar Santos, contribuindo com a estruturação inicial da Universidade Federal da Bahia. Coube-lhe parte substancial das providências para a organização da Escola de Administração, carreira que então era uma novidade no Brasil. Inclusive com a atração de nomes já acatados no mundo da cultura e de jovens talentos que concluíam pós-graduações em instituições de ensino dos Estados Unidos. Eu e meu irmão fizemos ali os exames vestibulares e tivemos o privilégio de desfrutar de um nível de docência diferenciado, considerado o estado da arte no Brasil.
Sei que Paulo tem suas caras lembranças de professores, no curso de Administração de Empresas. Eu não me canso de citar os meus, no de Administração Pública, sempre consciente de que estou omitindo nomes da maior importância. Perseu Abramo, João Ubaldo, Vital Duarte, Jorge Hage, João Eurico Matta, Edivaldo Boaventura. Tantos outros.
Oldegar criou também a Escola Superior de Estatistica, privada, onde lecionou durante muitos anos, noite adentro.
Semeava cada projeto com o mesmo entusiasmo com que ora erguia casas, ora reformava a nossa morada. Diaga-se, de passagem, colocando sua concepção muito pessoal em cada construção.
A mesma sofreguidão que o punha na estrada, buscando novos horizontes, ver como vivia cada povo. Essa curiosidade e esse encantamento levaram, na sua despedida, a que João Eurico apropriadamente o chamasse de “Vira-Mundo”.
Quando já se aproximava dos 80 anos, éramos sucessivamente assaltados por incidentes diversos. Um dia, cercado em uma rua deserta por taxistas solidários com um colega que tivera o carro abalroado pelo dele; adiante, um desequilibrado quebrou o seu para-brisa com um extintor de incêndio, inconformado com uma disputa de trânsito. Mas ele relutava em abandonar a direção. Aquilo lhe dava asas. Um dia, ele e minha mãe se viram com o carro pendurado sobre um despenhadeiro depois que o sono roubou a atenção do motorista Oldegar.  Precisaria mesmo de asas! Conseguimos que recorresse aos serviços de um motorista. Mas éramos enganados. No caminho, tomava a direção do carro. Quando Paulo me ligou para dizer que seu carro fora roubado durante uma reunião desta Casa, ergui as mãos para agradecer a Deus.  
Há 30 anos, assustei ao ver o súbito envelhecimento de meu pai. Passos miúdos, voz sumida, gestos lentos, olhar baixo. Tinha acabado de ser laçado pela aposentadoria compulsória. Dez anos depois, nesta tribuna, ouvi explicar ter entendido então que “viver é como caminhar de bicicleta; quando não se pedala, cai”. Depois daquele momento difícil, ele encontrou novos compromissos e vi Oldegar se reerguer.
Ao introduzir o seu primeiro livro de poesias, Oldegar explicou que o seu gênero preferido era de amplo uso entre os nipônicos, escrevendo haicais desde o imperador até o homem mais simples. E lembrou Lewis Tsujimura, para quem cada leitor de haicai precisa ser um poeta em potencial.
Talvez por isso, Oldegar tenha lançado tantas sementes em torno de si.
Se já não produz novas obras, seus passos são seguidos por sua irmã caçula, minha tia, Joanna Angélica Vieira Ribeiro, Jane Ribeiro. De suas mãos, começaram a brotar livros, inclusive o primeiro de haicais e, agora, o segundo. Já é um nome respeitado na cultura baiana e nacional. Outros projetos a animam. É um novo motivo de orgulho.
Paulo já tem obra publicada na área a que se dedica, a preparação para o ocaso da vida. Sua companheira, Dora, é também uma escritora, já com espaço conquistado no mercado.
Oldegar não descansava. Orientou meu filho Iuri e sua mulher, Gil, a como produzir haicais. E os dois se divertiram muito com as suas próprias poesias. Minha filha Miliane, além de dançarina, é também uma poetisa e tem hoje como marido o jovem Tássio, produtor cultural e poeta. Até sua filha, minha neta Inana, já foi premiada por um poema de sua autoria.
É assim que volto à minha oração. Fomos privilegiados pelo berço que nos foi atribuído. Nascemos e crescemos em uma casa de cultura, de fé, de compromisso. Decerto não sou capaz de lembrar trechos daquela obra, mas ler, ainda adolescente, Shakespeare, Bandeira, Castro Alves, Camões, Ruy Barbosa, Drummond, Cassiano Ricardo, Viana Moog, Câmara Cascudo, Dias Tavares, Melo Neto, Machado, Alencar, Graciliano, Guerreiro Ramos e por aí vai. Lorca, Agatha Christie, Cortazar, Garrett, Garcia Marquez, Llosa. Marx, Althusser... Eita! Quanta coisa mais. Ter que ler coleções inteiras em nossos encontros de educação sexual.
Tudo isso nos atribuiu privilégios. O principal deles talvez tenha sido olhar o mundo da cultura baiana, brasileira e universal com a consciência (e a lamentação) de não se ter lido praticamente nada.
E quem, ao lado de privilégios, tem compromissos – como os tinha Oldegar – não pode esquecer de que temos de transformá-los em direitos. Por isso, tenho convicção de que ele se sentiria recompensado com a universalização da educação e, sempre zeloso com o seu povo, com medidas como o direito de cotas.
Ao escrever um artigo publicado pelo jornal A Tarde (quando tive atenção especial do professor Edivaldo Boaventura), na semana em que se comemorava o seu 100º aniversário, contei episódio do início de minha adolescência. Mostrei minhas poesias e pedi sua opinião. Ao cobrá-la, dias depois, ouvi: “Você precisa ler mais”.
É claro que nunca me dispus a publicar poesias, embora confesse que, secretamente, continuo pondo em forma o meu encantamento, as minhas descrenças, as minhas esperanças, as minhas reflexões.
Ontem, ao escrever esta mensagem, lembrei dos últimos dias de meu pai e saiu-me mais um haicai.
PRÊMIO?
Deslumbrou-lhe o mundo.
E Deus fechou-lhe os olhos
Para relembrar.
Ao redigir esta comunicação, entendi que ela deveria ter ao menos um haicai de meu pai. Pensei na iniciativa de seus pares de imortalidade, em nossa gratidão por isso, no importante discurso da professora Yeda Pessoa – belo na forma e brilhante no conteúdo – e vi que é o caso de recitar um de seu “Folhas de Chá”. E com a alegria de que estamos negando justamente o título dele:
O ÚLTIMO DESEJO
Nada mais desejo...
o silêncio, a grande paz
dos abandonados...
Fernando Tolentino
Salvador, 18 de junho de 2015