quinta-feira, 28 de abril de 2016

A MARGARIDA DESAPARECEU



Quem acompanhou futebol no final da década de 80, viu surgir no Rio de Janeiro um árbitro de estilo diferente. Praticamente bailava sobre o gramado. Ao correr, saltitava, às vezes deslocando-se em corridas velozes para trás. Seu gestual era exuberante. O auge, quando levantava um cartão para advertir ou expulsar um atleta. Punha-se nas pontas dos pés e vergava o corpo a ponto de derrubar a cabeça para trás, como se fitasse o céu, para onde, aliás, dirigia a mão. A posição era repetida no apito final de cada partida, também com o braço esticado para o alto.
Pronto, terminou o espetáculo. Entrevistado por Marília Gabriela, em dezembro de 2011, o juiz reconheceu: “O campo de futebol não deixa de ser um palco pra mim.” Jorge José Emiliano dos Santos trouxe do tempo em que apitava peladas na praia, onde o seu jeito exótico já divertia atletas e banhistas, o apelido de Margarida. Naquela entrevista, admitiu ganhar mais como Margarida do que como árbitro oficial da CBF. A qualidade da sua arbitragem era consensualmente reconhecida e chamava a atenção por peitar os atletas metidos a "machões". Mas fez questão de dizer à jornalista: “Eu tenho que ser autoridade (em campo) e não autoritário.”
Margarida foi destaque durante alguns anos, até por transformar cada partida em um duplo espetáculo. Mas não chegou a se tornar uma referência, como fora o seu ídolo Armando Marques. Certamente por conta do reparo que faziam muitos de seus críticos, alegando que o bom juiz é aquele que sequer tem a presença notada em campo. Isto é, faz o jogo fluir e sua autoridade está tão assimilada pelos jogadores que não é preciso ressaltá-la a cada momento.
Sem dúvida, não seria nada ruim se as reflexões de Margarida (ou Jorge José Emiliano dos Santos) servissem de lição para certos personagens da magistratura brasileira atual.
Confesso que, sufocado pela presença ostensiva do juiz paranaense Sérgio Moro, sofri a mesma síndrome que, subitamente, vi se espalhar pelas redes sociais. “Cadê o Moro?”
De fato, orquestrando a ação de um numeroso grupo de procuradores e policiais federais, Moro parecia não se conformar se fosse ignorado nas principais manchetes de jornais e nas chamadas mais sensacionais de rádio e TV. Nem sempre com ações lícitas, pois propiciando ou pelo menos permitindo o vazamento de informações sigilosas, determinando detenções e conduções coercitivas tão afoitas que teve de retroagir ao identificar, quando o prejuízo já era irreparável para suas vítimas, não se tratar de quem pretendia deter. Chegando, no momento mais crítico, a sofrer reprimendas do STF, o que forçou a que pedisse desculpas publicamente. É forçoso assinalar que, em boa parte da operação que conduz, as ações mais espetaculosas ao menos pareceram sincronizadas com movimentações políticas ou das ruas. Como se estivesse disputando a evidência nos meios de comunicação ou, conforme acreditam muitos, querendo nelas influir.  
Ao invés de se reservar a uma posição discreta, já recomendável para qualquer juiz, mais ainda para quem feria interesses de portentosos empresários e políticos de significativa grandeza, fazia insistente e nada cuidadosa exposição pessoal.  Como ao dirigir recados a manifestantes ou aceitar a participação em eventos de personagens que se sabe candidatos daqui a alguns meses, como o comunicador e política João Dória, por sinal acusado de atos ilícitos até por companheiros de legenda.
Como fez alarde de que pretendia ver a opinião pública contaminada pela Operação Lava Jato, criando o clima social e político que entendi indispensável para o seu sucesso, é de se pensar sobre as ilações de alguns críticos, para os quais toda a sua postura fosse um elemento de marketing voltado para atingir o seu objetivo.
Os críticos mais ácidos chegam a insinuar que a forma de conduzir a Operação faz parte de um processo mais global voltado para fulminar o mandato legítimo da presidenta Dilma Rousseff.
De fato, a exploração das investigações pela mídia, inundada por versões maldosas, informações nem sempre confirmadas e, principalmente, seletividade nos vazamentos levaram a criar uma concepção equivocada em amplos setores sociais, em que se tem a presidenta como envolvida no processo, embora ela não seja alvo de qualquer acusação ou suspeita de corrupção. E até a crença de que o processo de impedimento da presidenta Dilma tem alguma coisa a ver com a Lava Jato.
Por tudo isso, causa espanto a tantos – e eu estou nesse meio – que os noticiários já não tratem de Lava Jato, que a Margarida repentinamente desapareceu. Estaria amargando o ostracismo ou, ao contrário, comemora o êxito de uma manobra meticulosamente urdida, em que a opinião pública é levada a crer que, afastada Dilma, acaba a corrupção no Brasil?
Pode não ter dado tão certo. O que saltou aos olhos na votação do dia 18 de abril, na Câmara, era que ali estavam os verdadeiros envolvidos nesse e em outros casos de corrupção, como por sinal viria a se comprovar na semana seguinte, em que se sucederam ações jurídicas e policiais contra vários participantes do julgamento.
Uma porrada! Mesmo vencendo a posição que defendiam, os torcedores do “impeachment” saíram envergonhados da votação. Do outro lado, os que faziam a luta contra o golpe saíram derrotados, mas orgulhosos.
O paradoxo é evidenciado pelo excelente artigo de Alex Solnik “Dilma foi derrubada pela Lava Jato” (http://www.brasil247.com/pt/blog/alex_solnik/228802/Dilma-foi-derrubada-pela-Lava-Jato.htm), em que ele compara com a hipótese de um país em que grande parte das pessoas consumisse maconha e surgisse uma presidenta que não a usasse. Sendo ilegal, ela permitiria que se investigasse e punisse os usuários, o que acabaria por levar a um grande acordo para afastá-la do poder. O jornalista troca maconha por corrupção e conclui que isso se deu com Dilma e foi a sua desgraça.
Aquela votação foi realmente exemplar. Enquanto o mundo se sobressaltava com as cenas lamentáveis daquela sessão, as informações foram aflorando, algumas ainda não comprovadas, como a de que votos pelo SIM chegaram a custar R$ 2 milhões, ou a de que o político goiano Sandro Mabel assegurou 172 cargos na administração federal para cada deputado do PR que aprovasse o afastamento de Dilma.
Só isso explica o chamado “efeito manada”, que fez parecer tão despropositada a expectativa otimista dos articuladores da base de apoio do governo. A partir dos votos de Minas Gerais, quando ficou claro que a deposição de Dilma estava se consolidando, muitos parlamentares debandaram e passaram a somar votos favoráveis.
Hoje, já não há quem possa negar. Caso Dilma seja afastada do cargo, grande parte do governo será composto por políticos envolvidos na Lava Jato e tantos outros inquéritos policiais e processos judiciais. Lembre-se que o partido com maior número de ministérios no governo de Dilma era o PMDB. Além dele, havia ministros e outras autoridades de várias siglas que se afastaram da base aliada às vésperas da votação e se integraram entre os apoiadores de Michel Temer, entre eles o PSD e o PP, que é o líder de envolvimento na Lava Jato e vértice do processo, já que foi o responsável pela indicação de Paulo Roberto Costa.
Isso explica o comportamento constrangedor, para a Instituição e para o Brasil, de dezenas de votantes do SIM. Por um lado refastelavam-se em suas premiações, o que ganha enorme força em um ano de pleitos municipais, quando a eleição de prefeitos e vereadores será fundamental para a renovação de seus próprios mandatos daqui a dois anos. Por outro, muitos comemoravam a crença de que não mais correrão riscos em processos policiais e judiciais. Por último, aliviam-se do ônus de desagradar a grande mídia e, além disso, de continuar apoiando um governo ideologicamente adversário deles, comprometido com segmentos da sociedade muitas vezes antagônicos aos seus próprios interesses e, muito mais, aos de seus financiadores.
O que realmente houve naquela reação despudorada, irresponsável, uma esculhambação, comparada por jornais estrangeiros como típica de um carnaval, foi catarse. Foi ver-se livre de apoiar um governo popular e confiar que a reação favorável dos eleitores será garantida pela grande mídia. Embora não esteja sendo assim em vários estados nordestinos, o futuro vai mostrar se havia motivo para tanto entusiasmo. A ver.
Fernando Tolentino

sexta-feira, 22 de abril de 2016

AFINAL, QUEM É MESMO O PALHAÇO?




“Pela minha família”
Quem já teve uma boa ressaca sabe que ela precede uma boa luta.

- COMO VOTA O DEPUTADO FULANO DE TAL?
- Pelo fim de toda e qualquer indexação, inclusive a que garante reajuste do salário mínimo e do piso de benefícios previdenciários acima da taxa de inflação, eu voto SIM.
- COMO VOTA O DEPUTADO BELTRANO?
- Para que não se use mais excedentes do Fundo de Garantia para o Minha Casa, Minha Vida, eu voto SIM.
- COMO VOTA O DEPUTADO SICRANO?
- Para permitir que as convenções coletivas prevaleçam sobre as legais, representando o fim da CLT.
- COMO VOTA O DEPUTADO HERCULANO?
- Para restringir os programas sociais, inclusive o Bolsa Família, apenas aos mais miseráveis, os 10% mais pobres, que tenha rendimento abaixo de um dólar por dia, eu voto SIM.
- COMO VOTA O DEPUTADO?
- Para que todos os programas estatais, inclusive os programas sociais do governo, sejam avaliados anualmente por um comitê independente, que poderá sugerir a sua continuação ou o fim deles, de acordo com os seus custos e benefícios, eu voto SIM.
Você também tem amigos que criticam os políticos por mentirem aos seus eleitores, que os ridicularizam com um monte de piadas em que são taxados de mentirosos?
Mas pergunte a cada um se ficou comovido ao ouvir suas homenagens às famílias, aos filhos ou as invocações divinas para os seus votos.
Se esses amigos são muito desconfiados, devem ter imaginado aqueles políticos pensando somente em suas próprias famílias. Se um pouco mais incrédulos, podem até fazer como o sindicalista Emanuel Cancella, coordenador do Sindicato dos Petroleiros do Estado do Rio de Janeiro (Sindipetro-RJ) e da Federação Nacional dos Petroleiros (FNP). No seu blog, questiona aquela ridícula fiada de votos, dedicados à família, aos filhos, ao netos, à mãe de criação, à memória do falecido pai, monótono refrão que não escapou ao mais ingênuo dos telespectadores.  
Cancella lembra um deles, com o seu voto já concluído e correndo, até interrompendo outro deputado, para não deixar de citar um parente. Cita também a grotesca deputada Raquel Muniz (PSD), hoje famosa em todo o mundo por seus pulos e berros de “sim, sim, sim, sim”, estranhando fazer tal comédia em homenagem ao marido que seria preso por corrupção ao nascer do dia seguinte. O sindicalista traz à lembrança a informação do renomado economista José Carlos de Assis de reunião para compor um caixa para o financiamento da campanha do golpe, inclusive daquela cena. Ali, foi combinado o “racha”: Fiesp, R$ 300 milhões; R$ FIRJAN, R$ 100 milhões e Federação das Indústrias do Paraná e Rio Grande do Sul, de R$ 50 milhões cada.
A conclusão de Cancella: a citação da família seria a senha para se habilitar à gorjeta?
Daí, conclama a ação dos órgãos investigatórios, a Justiça, o Ministério Público e a Polícia Federal.
- COMO VOTA O DEPUTADO?
- Pelo fim de todas as vinculações de receitas, como as que financiam a educação e a saúde públicas brasileiras, eu voto SIM.
- Pela intervenção no SUS, eu voto SIM
Um ou outro poderia ter sido o voto da espalhafatosa Raquel Muniz. Afinal, o marido foi preso justamente porque, como prefeito, beneficiou o hospital da família, em prejuízo dos ligados à Prefeitura.
- COMO VOTA O DEPUTADO?
- Para que o governo seja obrigado a liberar os recursos de todas as emendas parlamentares, eu voto SIM.
- COMO VOTA O DEPUTADO?
- Para ampliar a idade mínima de aposentadoria para 65 anos, nos casos de homens, e 60 anos para as mulheres, podendo a idade mínima aumentar, a depender dos dados demográficos, eu voto SIM.
O voto aparentemente ingênuo do deputado Francisco Everardo Oliveira Silva foi recebido mais como o “voto de Tiririca”. Coberto por gargalhadas do Plenário antes mesmo que pronunciasse as suas primeiras nove palavras na tribuna desde que assumiu o mandato: “Senhor presidente, pelo meu país, meu voto é sim.” E não conteve o riso.
Não foi só o respeito dos colegas de Câmara que não mereceu.
“Nós, palhaças e palhaços profissionais, brasileiros e estrangeiros engajados na defesa da democracia do Brasil, manifestamos nossa mais completa insatisfação e repúdio em relação à postura e ao voto de vossa excelência”, afirma a vigorosa reprimenda dos verdadeiros profissionais do espetáculo circense. Afinal, palhaço é um profissional respeitável, não significa que cumpra com irresponsabilidade o seu papel de cidadão.
- COMO VOTA O DEPUTADO?
- Por maiores tarifas para os concessionários privados de serviços públicos: energia elétrica, gás, telefonia, internet, pedágios, eu voto SIM.
- COMO VOTA O DEPUTADO?
- Pela limitação do Pronatec, eu voto SIM.
- Pela limitação dos empréstimos estudantis pelo FIES, eu voto SIM.
- Pena extensão do ProUni para o ensino de segundo grau, fortalecendo as instituições de ensino privado, eu voto SIM.
O QUE O BRASIL TEM A TEMER
Não seria melhor se aqueles deputados, que se dizem “representantes do povo” (e não de suas famílias), abrissem o jogo?
A maioria deles nunca teve a chance de aparecer na TV, talvez nem em programas locais, a não ser no horário eleitoral gratuito. Nunca tiveram oportunidade de esclarecer para os seus eleitores quais são efetivamente os seus compromissos políticos. Não seria melhor se tivessem aproveitado uma transmissão de TV para todo o País e deixassem clara a intenção dos seus votos?
Poderiam ter deixado claro o que defendem, quais os motivos para interromperem um mandato popular conquistado com votos tão legítimos quanto os seus. Ou soa ridículo terem dito que votam “em nome dos 65.322 votos que recebi”.
Tudo o que coloquei em lugar do voto “pela família” (ou por Deus ou pelos militares de 1964, entre eles o maior torturador de todos os tempos no Brasil) está explicitamente alinhado no programa de Temer (Uma Ponte para o Futuro), disponível em uma simplificada busca em portais de pesquisa. Tudo tão claro quanto exigem os financiadores de políticos, que naturalmente não são tão candidamente inocentes quanto os pobres eleitores empacotados com as camisetas da corrupta CBF.
Tudo aquilo e muito mais. Entre outras políticas:
- O compromisso com as privatizações: Executar uma política de desenvolvimento centrada na iniciativa privada, por meio de transferências de ativos que se fizerem necessárias, concessões amplas em todas as áreas de logística e infraestrutura.
- O fim do Regime de Partilha para o Pré-Sal e do controle da Petrobras sobre o Pré-Sal.
- A volta da política externa dos tempos neoliberais, com foco na aliança comercial com grandes potências (EUA  e Europa) em detrimento do Mercosul.
- A implementação de políticas e redução de tarifas que protegem o mercado e as indústrias brasileiras.
- Forte ajuste fiscal de longo prazo (justamente o que causou impopularidade no segundo período de Dilma Rousseff), com o estabelecimento de um limite para as despesas de custeio inferior ao crescimento do PIB e aumento do superávit primário.
QUE DECEPÇÃO! QUE VERGONHA! QUE ORGULHO!
Tudo isso explica porque, tendo saído arrasado da Esplanada dos Ministérios na noite de domingo, 17 de abril, amanheci com novo ânimo.
Não é fácil você enfrentar uma ditadura a partir dos 16 anos, dedicar a sua adolescência à luta para sua superação, passar pelo passei, ver o que vi, ouvir o que ouvi, saber do que eu soube. Depois, manter-se na luta política após a redemocratização, agora imaginando que poderia ver realizados alguns sonhos de mocidade. Ao menos o que diziam os opositores da proposta do socialismo: o importante seria a igualdade de oportunidades.
De repente, ver que justamente a tentativa de fazer desse discurso uma realidade levou à revolta de parcela substancial da sociedade, a ponto de atentar contra a democracia, de lutar para depor uma presidenta da República licitamente eleita por mais de 54 milhões de eleitores.
Aproveitei a insônia para confrontar a atitude irresponsável de deputados que alarmaram a imprensa de todo o mundo, a ponto de o jornal irlandês Irish Times comentar que “na mais importante sessão da legislatura nos últimos 25 anos, muitos de seus membros se comportaram com o decoro de torcedores bêbados em um estádio de futebol”.
O que me fez acordar com a força dos anos de luta da adolescência talvez esteja contido no que li, depois, no próprio periódico irlandês, que obviamente comparou também as atitudes dos diferentes deputados: “era difícil não simpatizar com os apoiadores da presidente quando eles denunciavam a ‘farsa’ em curso”.
Um grupo enfrentava a situação com toda a gravidade do momento, semelhante ao da morte de Getúlio Vargas, naquele 24 de agosto de 1954. Eu quase tropeçava e dizia “naquele distante 24 de agosto de 1954”... Afinal, a verdade é que o suicídio de Getúlio não tem nada de distante. Como não o tem a deposição de João Goulart, em 1º de abril de 1964.
Outro grupo participava de uma comemoração. E muito provavelmente mexiam-se na lama em que estão atolados sem perceber que se trata de areia movediça.
Não alardeando os verdadeiros compromissos, os deputados do “eu voto SIM” permitem que os eleitores, mesmo aqueles que marcharam pelo golpe, cientes ou não de que era um golpe (agora decepcionados com tudo o que viram, “ao vivo e em cores”), alimentem a crença na versão que circula amplamente por aí e se sustenta, por exemplo, nas cínicas propostas dos deputados Osmar Serraglio (PMDB) e Paulinho da Força (Solidariedade) de que Eduardo Cunha deve ser perdoado. Pacto que não nega, é claro, os compromissos firmados com os financiadores da manobra.
O golpe nasceu de um amplo pacto para isolar investigações de corrupção e punições ao âmbito do PT e, no máximo, a empresários que tiveram relações amistosas com os governos que liderou. O resto é melhor deixar como está para não “desorganizar” a política brasileira.
Fernando Tolentino

quinta-feira, 14 de abril de 2016

O AVESTRUZ TOGADO E A REPÚBLICA DOS INDICIADOS

Esses dias trazem à lembrança as crianças, nos seus primeiros anos, cobrindo inocentemente os olhos e imaginando que, por isso, não estão sendo vistas. É exatamente como o avestruz togado tão bem concebido pela artista plástica @nanamada, que o produziu e gentilmente cedeu para ilustrar este artigo.
Seria a própria imagem da mais alta Corte do País?
Estamos em um momento daqueles em que ninguém é capaz de prever o que viveremos daqui a poucos dias. Como na madrugada que antecede uma batalha final de uma guerra tradicional, as forças entrincheiradas diante do campo de luta, ambas sem conhecerem os recursos do inimigo. Coisa de filme da já distante adolescência.
Raras certezas, portanto, com relação ao futuro imediato.
É esse tipo de momento que mais excita os colegas jornalistas e outros analistas políticos. A tentativa de decifrar o que será o dia seguinte.
De um lado, o governo e os partidos que ora compõem a base aliada articulam-se com as lideranças das demais representações que o apoiavam semanas (ou dias) atrás, inclusive com presença na equipe governamental. A presidenta Dilma apresenta ao País uma proposta de um grande debate nacional para o dia seguinte à votação da tentativa de apeá-la do cargo. E, claro, a recomposição do governo com as forças políticas que estiverem efetivamente comprometidas com a continuidade do mandato.
Depois de uma longa letargia, a sociedade parece ter sentido os riscos e também se mexe. Uma intensíssima utilização das redes sociais fazem de blogues, Facebook, Twitter, Whatsapp, Instagram e outros canais de internet a alternativa à indisponibilidade de acesso à mídia tradicional, praticamente toda ela comprometida com o golpe. Centenas de manifestos expressam a condenação à manobra por grupos sociais de toda a ordem: intelectuais, religiosos, advogados, membros do Ministério Público, artistas, estudantes, pessoal de hip hop, de áudio visual, médicos e outros trabalhadores da área de saúde, sindicalistas e jornalistas, para citar só alguns casos. Em um ritmo de vários eventos diários, concentrações se sucedem em teatros, universidades e outras escolas, nas praças, em portas de fábricas, em shoppings, em inúmeros países. Busca-se tirar o tempo perdido e os artistas produzem músicas e clipes, além de reunir-se em pequenas apresentações ou grandes shows, como o da Lapa neste início de semana. Não faltam artistas fazendo representações nas ruas ou no interior de ônibus e metrô.
Do outro lado, foram marcantes as grandes concentrações. O característico é que, com raras exceções, sempre se realizaram aos domingos e contaram com cobertura intensiva da mídia, inclusive para a sua convocação. Além disso, foram apoiadas pelo deslocamento de horários de partidas de futebol e das grades de programação de televisões. E (pasmem!) houve vários casos de liberação de catracas de metrô, como se o transporte público tivesse preferência partidária.
O mais significativo foi a “coincidência” de atos pró e contra o golpe com a agenda da operação Lava Jato: vazamentos de delações, assim como de outras ações policiais, conduções coercitivas e prisões, “descobertas de indícios” ou suposições de atos delituosos etc. O detalhe alarmante é que nenhum dos pedidos de afastamento da presidenta da República sequer menciona as investigações da Lava-Jato, até porque não pesa contra Dilma Rousseff qualquer suspeita de envolvimento. Óbvio que boa parte da opinião pública chega à conclusão contrária, dada a ardilosa combinação das duas pautas.
Não fica nisso. Todas as armas estão sendo acionadas. O apoio de mídia serve para mobilizar os atos que deverão ocorrer até domingo. Nisso, tem lugar especial a guerra de números, passando a sensação de que a destituição de Dilma é fato consumado. Isso também é indispensável para convencer os deputados que querem a companhia do poder. Os deputados também são “convencidos” com outros argumentos. Até se fala em mala preta, o que ajuda especialmente em ano de eleição municipal, em que alguns deles são candidatos e os demais precisam ter vereadores gratos para ajudá-los na eleição de 2018. A crer nas denúncias de alguns deputados, não faltam também as ameaças. Tudo com a participação aberta da dupla Eduardo Cunha e Michel Temer.
A “fala de posse” de Temer (o áudio “vazado”) serviu para esse convencimento aos deputados de que tem cacife para fazer promessas em nome do futuro cargo e para dar uma garantia ao grande empresariado de que tudo será como o combinado. O problema foi ter soado como exagerada empáfia para quem conhece os meandros do Congresso e sabe que as favas não estão contadas. E disseminar desconfiança com alguns dos compromissos de seu “governo de União Nacional”, por sinal, título também utilizado pelo ditador português Antonio de Oliveira Salazar.
Mas o grande desastre, do ponto de vista da opinião pública, foi justamente o que Cunha trabalhou com tanto capricho: a composição da comissão que aprovou a admissibilidade. Seria até o caso de perguntar o que estavam aqueles três deputados fazendo na companhia de tantos indiciados por corrupção, já que 35 dos 38 votos têm contas a prestar à Justiça.
Ficou muito na cara! Livrá-los de complicações judiciais e policiais seria uma das moedas para a obtenção dos votos? Apareceu como uma bomba a evidência de estarem indiciados mais de 90% dos eleitores a favor do “impeachment”, enquanto apenas dois integram o grupo dos 27 votos contrários. Imediatamente, viriam outros indícios alarmantes. A declaração do senador Delcídio Amaral, outro seriamente envolvido na Lava-Jato, de que votará pelo afastamento de Dilma se ele chegar ao Senado. O afastamento do deputado Fausto Pinatto da relatoria do processo de cassação do mandato do próprio Cunha, após ter dado parecer favorável e denunciar que recebera ameaças pessoais para que não o fizesse. A garantia de que continuará como deputado e na Presidência da Casa é fundamental para alimentar nos demais o medo de perseguições, ainda mais diante da explícita utilização do cargo em proveito de seus interesses pessoais.
Não bastasse isso, o juiz Sérgio Moro, espetaculoso condutor da Lava-Jato, permitiu circular discreta informação de que “sonha com o fim do processo em dezembro”, o que soa como música para aqueles deputados e senadores temerosos de consequências funestas com o prosseguimento das investigações.
REPÚBLICA DOS INDICIADOS
Desfez-se a ilusão de quem via com certo otimismo cívico o processo que pode resultar no afastamento da presidenta Dilma, até imaginando respeito à Constituição, o que lhe tiraria o caráter de golpe puro e simples. Além do caráter golpista da manobra, já não há como negar interesses escusos de grupos econômicos poderosos, que teriam a representá-los, caso afastada a presidenta Dilma (vale sempre repetir que imaculada com relação a qualquer suspeita de corrupção) e substituída pelo vice Michel Temer, ele mesmo envolvido na operação Lava-Jato.
O processo vem sendo e tende a ser conduzido por ninguém menos que Eduardo Cunha, contra o qual o STF não move uma palha. Se não o faz agora, quanto o mais se ele atingir o objetivo de derrubar a presidenta da República e implantar no seu lugar o parceiro Michel Temer, conquistando a condição de virtual vice-presidente.
O que surgiria com Temer, Cunha (que seria o seu substituto na Presidência e teria inequívoca voz de comando em seu eventual governo) mais todos os parlamentares que teriam trocado votos por benefícios em processos criminais? Com a falsa alegação de combate à corrupção, estaria constituída uma autêntica República dos Indiciados. Ou ex-indiciados.
Há três semanas, cheguei a imaginar uma reviravolta no Judiciário ao menos no Supremo (http://blogdetolentino.blogspot.com.br/2016/03/teori-zavascki-pode-ter-salvo-o.html), diante da coragem e altivez do ministro Teori Zavascki, que parecia se associar ao rigor jurídico de Marco Aurélio de Mello e Roberto Barroso. Imaginei que aquilo pudesse contaminar a Corte, ainda mais que vinha sendo seguidamente afrontada por Eduardo Cunha, o que até poderia criar um espírito de corpo.
Nada! O Supremo só chegou a se impor de fato diante do Executivo, impedindo que a presidenta da República efetivasse a nomeação de um de seus auxiliares, mesmo sendo alguém sem qualquer acusação formada, como é o caso do ex-presidente Lula.
A verdade é que os brasileiros não têm o Judiciário em alta conta. Há muita demanda, mas pouca expectativa de sucesso e quase nenhuma satisfação com o resultado, até pela lerdeza com que funciona. Ou não funciona. Juízes são vistos como uma nata de privilegiados, o que não está nada longe da realidade e alcança os procuradores e promotores de justiça. O privilégio mais conhecido é o auxílio-moradia de R$ 4.377,73 mensais, não incidindo qualquer desconto sobre esse valor. O montante nacional custa anualmente à administração pública R$ 863 milhões, não considerados os atrasados, já que receberam esse benefício por uma decisão judicial.
Não fica por aí. Veja o que levantou a revista Época em junho de 2015.
“Confirmou-se o que todos no Judiciário suspeitavam: o contracheque de juízes e promotores ultrapassa, e muito, o teto constitucional de R$ 33 mil. A média de rendimentos de juízes e desembargadores nos Estados é de R$ 41.802 mensais; a de promotores e procuradores de justiça, R$ 40.853. Os valores próximos mostram a equivalência quase perfeita das carreiras. Os presidentes dos Tribunais de Justiça apresentam média ainda maior: quase R$ 60 mil (R$ 59.992). Os procuradores-gerais de justiça, chefes dos MPs, recebem, também em média, R$ 53.971. Fura-se o teto em 50 dos 54 órgãos pesquisados.”
http://epoca.globo.com/tempo/noticia/2015/06/juizes-estaduais-e-promotores-eles-ganham-23-vezes-mais-do-que-voce.html
Enquanto isso, vemos interesses feridos, pessoas presas sem a oportunidade de um julgamento (quando não vítimas de decisões jurídicas equivocadas), processos simplesmente paralisados, julgamentos amplamente questionados, demandas simplesmente arquivadas por conta do poder econômico ou político dos reclamados. Processos que apontam para anos de tramitação levaram à criação de varas de pequenas causas e instâncias de negociação, nas quais é comum abrir-se mão de direitos para não se restar inteiramente lesado ou ver protelada a vã expectativa de atendimento para tempos inimagináveis.
Nem é bom falar em outras evidências de tratamento diferencial, como os longos recessos forenses e feriados ampliados de que outros trabalhadores e servidores não conseguem usufruir.
Os ministros do Supremo parecem não se importar com a disseminação dessa imagem negativa do Judiciário brasileiro. A condução do mais notório processo judicial brasileiro da atualidade (a Lava-Jato) desrespeita princípios basilares da ordem jurídica e, quando reclamou, a Corte resignou-se diante de vago pedido de desculpa (em um só dos casos, talvez o mais grave) do juiz Sérgio Moro. Como se isso reparasse erros processuais e lesões às partes.
O grave é a generalização da crença de que magistrados e juízes de futebol são quase a mesma coisa. Parte substancial da população até negligencia aqueles privilégios e se rejubila com o fato de que erros estão sendo cometidos, mas são contra adversários políticos, no caso, o PT e as pessoas que dele se aproximaram. Como ocorre com torcedores (de caráter bastante duvidoso) que repetem a convicção de que, contra o time adversário, “o melhor é vencer com um gol de mão, após cometer falta no goleiro e, de preferência, quando o juiz já deveria ter encerrado a partida”.
Fernando Tolentino
A ilustração da avestruz togada é da artista plástica @nanamada
(no perfil do Facebook: Nana Lopes Andrade)