quinta-feira, 28 de abril de 2016

A MARGARIDA DESAPARECEU



Quem acompanhou futebol no final da década de 80, viu surgir no Rio de Janeiro um árbitro de estilo diferente. Praticamente bailava sobre o gramado. Ao correr, saltitava, às vezes deslocando-se em corridas velozes para trás. Seu gestual era exuberante. O auge, quando levantava um cartão para advertir ou expulsar um atleta. Punha-se nas pontas dos pés e vergava o corpo a ponto de derrubar a cabeça para trás, como se fitasse o céu, para onde, aliás, dirigia a mão. A posição era repetida no apito final de cada partida, também com o braço esticado para o alto.
Pronto, terminou o espetáculo. Entrevistado por Marília Gabriela, em dezembro de 2011, o juiz reconheceu: “O campo de futebol não deixa de ser um palco pra mim.” Jorge José Emiliano dos Santos trouxe do tempo em que apitava peladas na praia, onde o seu jeito exótico já divertia atletas e banhistas, o apelido de Margarida. Naquela entrevista, admitiu ganhar mais como Margarida do que como árbitro oficial da CBF. A qualidade da sua arbitragem era consensualmente reconhecida e chamava a atenção por peitar os atletas metidos a "machões". Mas fez questão de dizer à jornalista: “Eu tenho que ser autoridade (em campo) e não autoritário.”
Margarida foi destaque durante alguns anos, até por transformar cada partida em um duplo espetáculo. Mas não chegou a se tornar uma referência, como fora o seu ídolo Armando Marques. Certamente por conta do reparo que faziam muitos de seus críticos, alegando que o bom juiz é aquele que sequer tem a presença notada em campo. Isto é, faz o jogo fluir e sua autoridade está tão assimilada pelos jogadores que não é preciso ressaltá-la a cada momento.
Sem dúvida, não seria nada ruim se as reflexões de Margarida (ou Jorge José Emiliano dos Santos) servissem de lição para certos personagens da magistratura brasileira atual.
Confesso que, sufocado pela presença ostensiva do juiz paranaense Sérgio Moro, sofri a mesma síndrome que, subitamente, vi se espalhar pelas redes sociais. “Cadê o Moro?”
De fato, orquestrando a ação de um numeroso grupo de procuradores e policiais federais, Moro parecia não se conformar se fosse ignorado nas principais manchetes de jornais e nas chamadas mais sensacionais de rádio e TV. Nem sempre com ações lícitas, pois propiciando ou pelo menos permitindo o vazamento de informações sigilosas, determinando detenções e conduções coercitivas tão afoitas que teve de retroagir ao identificar, quando o prejuízo já era irreparável para suas vítimas, não se tratar de quem pretendia deter. Chegando, no momento mais crítico, a sofrer reprimendas do STF, o que forçou a que pedisse desculpas publicamente. É forçoso assinalar que, em boa parte da operação que conduz, as ações mais espetaculosas ao menos pareceram sincronizadas com movimentações políticas ou das ruas. Como se estivesse disputando a evidência nos meios de comunicação ou, conforme acreditam muitos, querendo nelas influir.  
Ao invés de se reservar a uma posição discreta, já recomendável para qualquer juiz, mais ainda para quem feria interesses de portentosos empresários e políticos de significativa grandeza, fazia insistente e nada cuidadosa exposição pessoal.  Como ao dirigir recados a manifestantes ou aceitar a participação em eventos de personagens que se sabe candidatos daqui a alguns meses, como o comunicador e política João Dória, por sinal acusado de atos ilícitos até por companheiros de legenda.
Como fez alarde de que pretendia ver a opinião pública contaminada pela Operação Lava Jato, criando o clima social e político que entendi indispensável para o seu sucesso, é de se pensar sobre as ilações de alguns críticos, para os quais toda a sua postura fosse um elemento de marketing voltado para atingir o seu objetivo.
Os críticos mais ácidos chegam a insinuar que a forma de conduzir a Operação faz parte de um processo mais global voltado para fulminar o mandato legítimo da presidenta Dilma Rousseff.
De fato, a exploração das investigações pela mídia, inundada por versões maldosas, informações nem sempre confirmadas e, principalmente, seletividade nos vazamentos levaram a criar uma concepção equivocada em amplos setores sociais, em que se tem a presidenta como envolvida no processo, embora ela não seja alvo de qualquer acusação ou suspeita de corrupção. E até a crença de que o processo de impedimento da presidenta Dilma tem alguma coisa a ver com a Lava Jato.
Por tudo isso, causa espanto a tantos – e eu estou nesse meio – que os noticiários já não tratem de Lava Jato, que a Margarida repentinamente desapareceu. Estaria amargando o ostracismo ou, ao contrário, comemora o êxito de uma manobra meticulosamente urdida, em que a opinião pública é levada a crer que, afastada Dilma, acaba a corrupção no Brasil?
Pode não ter dado tão certo. O que saltou aos olhos na votação do dia 18 de abril, na Câmara, era que ali estavam os verdadeiros envolvidos nesse e em outros casos de corrupção, como por sinal viria a se comprovar na semana seguinte, em que se sucederam ações jurídicas e policiais contra vários participantes do julgamento.
Uma porrada! Mesmo vencendo a posição que defendiam, os torcedores do “impeachment” saíram envergonhados da votação. Do outro lado, os que faziam a luta contra o golpe saíram derrotados, mas orgulhosos.
O paradoxo é evidenciado pelo excelente artigo de Alex Solnik “Dilma foi derrubada pela Lava Jato” (http://www.brasil247.com/pt/blog/alex_solnik/228802/Dilma-foi-derrubada-pela-Lava-Jato.htm), em que ele compara com a hipótese de um país em que grande parte das pessoas consumisse maconha e surgisse uma presidenta que não a usasse. Sendo ilegal, ela permitiria que se investigasse e punisse os usuários, o que acabaria por levar a um grande acordo para afastá-la do poder. O jornalista troca maconha por corrupção e conclui que isso se deu com Dilma e foi a sua desgraça.
Aquela votação foi realmente exemplar. Enquanto o mundo se sobressaltava com as cenas lamentáveis daquela sessão, as informações foram aflorando, algumas ainda não comprovadas, como a de que votos pelo SIM chegaram a custar R$ 2 milhões, ou a de que o político goiano Sandro Mabel assegurou 172 cargos na administração federal para cada deputado do PR que aprovasse o afastamento de Dilma.
Só isso explica o chamado “efeito manada”, que fez parecer tão despropositada a expectativa otimista dos articuladores da base de apoio do governo. A partir dos votos de Minas Gerais, quando ficou claro que a deposição de Dilma estava se consolidando, muitos parlamentares debandaram e passaram a somar votos favoráveis.
Hoje, já não há quem possa negar. Caso Dilma seja afastada do cargo, grande parte do governo será composto por políticos envolvidos na Lava Jato e tantos outros inquéritos policiais e processos judiciais. Lembre-se que o partido com maior número de ministérios no governo de Dilma era o PMDB. Além dele, havia ministros e outras autoridades de várias siglas que se afastaram da base aliada às vésperas da votação e se integraram entre os apoiadores de Michel Temer, entre eles o PSD e o PP, que é o líder de envolvimento na Lava Jato e vértice do processo, já que foi o responsável pela indicação de Paulo Roberto Costa.
Isso explica o comportamento constrangedor, para a Instituição e para o Brasil, de dezenas de votantes do SIM. Por um lado refastelavam-se em suas premiações, o que ganha enorme força em um ano de pleitos municipais, quando a eleição de prefeitos e vereadores será fundamental para a renovação de seus próprios mandatos daqui a dois anos. Por outro, muitos comemoravam a crença de que não mais correrão riscos em processos policiais e judiciais. Por último, aliviam-se do ônus de desagradar a grande mídia e, além disso, de continuar apoiando um governo ideologicamente adversário deles, comprometido com segmentos da sociedade muitas vezes antagônicos aos seus próprios interesses e, muito mais, aos de seus financiadores.
O que realmente houve naquela reação despudorada, irresponsável, uma esculhambação, comparada por jornais estrangeiros como típica de um carnaval, foi catarse. Foi ver-se livre de apoiar um governo popular e confiar que a reação favorável dos eleitores será garantida pela grande mídia. Embora não esteja sendo assim em vários estados nordestinos, o futuro vai mostrar se havia motivo para tanto entusiasmo. A ver.
Fernando Tolentino

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