Há
oito anos, escrevi um livrete chamado “Jornalismo Investigativo”, como parte do
esforço da Editora Contexto em popularizar o conhecimento básico sobre a
atividade jornalística no Brasil. Digo “livrete” sem nenhum desmerecimento,
muito menos falsa modéstia, mas para reforçar sua aparência miúda e funcional,
um livro curto e conceitual onde plantei uma semente de discussão necessária ao
tema, apesar das naturais deficiências de linguagem acadêmica de quem jamais foi
além do bacharelado. Quis, ainda assim, formular uma conjuntura de ordem prática
para, de início, neutralizar a lengalenga de que todo jornalismo é
investigativo, um clichê baseado numa meia verdade que serve para esconder uma
mentira inteira. Primeiro, é preciso que se diga, nem todo jornalismo é
investigativo, embora seja fato que tanto a estrutura da entrevista jornalística
co mo a mais singela das apurações não deixam de ser, no fim das contas, um tipo
de investigação. Como é fato que, pelo prisma dessa lógica reducionista,
qualquer atividade ligada à produção de conhecimento também é
investigativa.
A
consideração a que quero chegar é fruto de minha observação profissional,
sobretudo ao longo da última década, período em que a imprensa tornou-se, no
Brasil, um bloco quase que monolítico de oposição não somente ao governo
federal, a partir da eleição de Luiz Inácio Lula da Silva, em 2002, mas a tudo e
a todos vinculados a agendas da esquerda progressista, aí incluídos,
principalmente, os movimentos sociais, os grupos de apoio a minorias e os
defensores de cotas raciais. Em todos esses casos, a velha mídia nacional age
com atuação estrutural de um partido, empenhada em fazer um discurso conservador
quase sempre descolado da realidade, escoltado por um discurso moralista
disperso em núcleos de noticiários solidificados, aqui e ali, em matérias,
reportagens e editoriais de indignação seletiva.
A
solidez – e a eficácia – desse modelo se retroalimenta da defesa permanente do
grande capital em detrimento das questões sociais, o que tanto tem garantido um
alto grau de financiamento desta estrutura midiática, como tem servido para
formar gerações de jornalistas francamente alinhados ao que se convencionou
chamar de “economia de mercado”, sem que para tal lhes tenha sido apresentado
nenhum mecanismo de crítica ou reflexão. Essa circunstância tem ditado, por
exemplo, o comportamento da imprensa em relação a marchas, atos públicos e
manifestações de rua, tratados, no todo, como questões relacionadas a trânsito e
segurança pública. Interditados, portanto, em seu fundamento social básico e
fundamental, sobre o qual o jornalismo comercial dos oligopólios de comunicação
do Brasil só se debruça para descer o pau.
O
resultado mais perverso dessa estrutura midiática rica e reacionária é a
perpetuação de uma política potencialmente criminosa de assassinato de
reputações e intimidação de agentes públicos e privados contrários às linhas
editoriais desses veículos. Ou, talvez pior ainda, a capacidade destes em atrair
esses mesmos agentes para seu ventre, sob a velha promessa de conciliação, para
depois, novamente, estrangulá-los sob a vista do público.
“Jornalismo
Investigativo”, porém, foi escrito anteriormente ao chamado “escândalo do
mensalão”, antes, portanto, de a mídia brasileira formar o bloco partidário ora
em progresso, tristemente conservador, que se anuncia diuturnamente como
guardião das liberdades de expressão e imprensa – conceitos que mistura de forma
deliberada para, justamente, esconder sua real indiferença, tanto por um quanto
pelo outro. Distante, por um breve instante de tempo, da guerra ideológica
deflagrada a partir do mensalão, me foi possível escrever um livro
essencialmente simples sobre o verdadeiro conceito de jornalismo investigativo,
ao qual reputo a condição de elemento de influência transversal, e não um gênero
capaz de ser enclausurado em editorias, como o são os jornalismos político,
econômico, esportivo, cultural, etc.
Jornalismo investigativo é a
sistematização de técnicas e conceitos de apuração para a produção de
reportagens de fôlego, não necessariamente medidas pelo tamanho, mas pela
profundidade de seus temas e, principalmente, pela relevância da notícia que
ela, obrigatoriamente, terá que encerrar. Este conceito, portanto, baseado na
investigação jornalística, existe para ser utilizado em todos os gêneros de
reportagem, em maior ou menor grau, por qualquer repórter. Daí minha implicância
com o termo “jornalista investigativo”, ostentado por muitos repórteres
brasileiros como uma espécie de distintivo de xerife, quando na verdade a
investigação jornalística é determinada pela pauta, não pela vaidade de quem a
toca. O mesmo vale para o título de “repórter especial”, normalmente uma maneira
de o jornalista contar ao mundo que g anha mais que seus colegas de redação, ou
que ficou velho demais para estar no mesmo posto de focas recém-formados.
Para
compor o livro editado pela Contexto, chamei alguns jornalistas para colaborar
com artigos de fundo, como se dizia antigamente, os quais foram publicados nas
últimas páginas do livro. Fui o mais plural possível, em muitos sentidos,
inclusive ideológico, embora essa ainda não fosse uma discussão relevante, ou
pelo menos estimulante, dentro da imprensa brasileira, à época. O mais
experiente deles, o jornalista Ricardo Noblat, hoje visceralmente identificado
ao bloco de oposição conservadora montado na mídia, havia também escrito um
livro para a Contexto sobre sua experiência como editor-chefe do Correio
Braziliense, principal diário de Brasília que, por um breve período de oito anos
(1994-2002), ele transformou de um pasquim provinciano e corrupto em um jornal
respeitado em todo o país. Curiosamente, coube a Noblat assinar um artigo
intitulado ”Todo jornalismo é investigativo” e, assim, reforçar a lengalenga que
o livro esforça-se, da primeira à última página, em desmistificar.
Tivesse
hoje que escrever o mesmo livro, eu teria aberto o leque desses artigos e
buscaria opiniões menos fechadas na grande imprensa. Em 2004, quando o livro foi
escrito (embora lançado no primeiro semestre de 2005), o fenômeno da blogosfera
progressista era ainda incipiente, nem tampouco estava em voga a sanha
reacionária dos blogs corporativos da velha mídia. No mais, minha intenção era a
de fazer um livro didático o bastante para servir de guia inicial para
estudantes de jornalismo. Nesse sentido, o livro teve relativo sucesso. Ao longo
desses anos, são raras as palestras e debates dos quais participo, Brasil afora,
em que não me apareça ao menos um estudante para comentar a obra ou para me
pedir que autografe um exemplar.
Faz-se
necessário, agora, voltar ao tema para trazer o mínimo equilíbrio ao
recrudescimento dessa discussão na mídia, agora às voltas com uma CPI, dita do
Cachoeira, mas que poderá lhe revolver as vísceras, finalmente. Contra a
comissão se levantaram os suspeitos de sempre, agora, mais do que nunca, prontos
a sacar da algibeira o argumento surrado e cafajeste dos atentados às liberdades
de imprensa e expressão. A alcova de onde brota essa confusão deliberada entre
dois conceitos distintos está prestes a tomar a função antes tão cara a certo
patriotismo: o de ser o último refúgio dos canalhas.
Veio da revista Veja,
semanal da Editora Abril, a reação mais exaltada da velha mídia, a se
autodenominar “imprensa livre” sob ataque de fantasmas do autoritarismo, em
previsível – e risível – ataque de pânico, às vésperas de um processo no qual
terá que explicar as ligações de um quadro orgânico da empresa, o jornalista
Policarpo Jr., com a quadrilha do bicheiro Carlinhos Cachoeira. Primeiro, com
novos estudos do Santo Sudário, depois, com revelações sobre a superioridade dos
seres altos sobre as baixas criaturas, a revista entrou numa espiral escapista
pela qual pretende convencer seus leitores de que a CPI que se avizinha é parte
de uma vingança do governo cuja consequência maligna será a de embaçar o
julgamento do “mensalão”. Pobres leitores da Veja.
Não
há, obviamente, nenhum risco à liberdade de imprensa ou de expressão, nem à
democracia e ao bem estar social por causa da CPI do Cachoeira. Há, isso sim, um
claro constrangimento de setores da mídia com a possibilidade de serem
investigados por autoridades às quais dedicou, na última década, tratamento
persecutório, preconceituoso e de desqualificação sumária. Sem falar, é claro,
nas 200 ligações do diretor da Veja em Brasília para Cachoeira, mentor confesso
de todos os furos jornalísticos da revista neste período. Em recente panfletagem
editorial, Veja tentou montar uma defesa prévia a partir de uma tese obtusa pela
qual jornalistas e promotores de Justiça obedecem à mesma prática ao visitar o
submundo do crime. Daí, a CPI da Cachoeira, ao investigar a associação delituosa
entre a Veja e o bicheiro goiano, estaria colocando sob suspeita não os
repórteres da semanal da Abril, mas o trabalho de todos os chamados “jornalistas
investigativos” do país.
A
tese é primária, mas há muita gente no topo da pirâmide social brasileira
disposta a acreditar em absurdos, de modo a poder continuar a acreditar nas
próprias convicções políticas conservadoras. Caso emblemático é o do atentado da
bolinha de papel sofrido pelo tucano José Serra, na campanha eleitoral de 2010.
Na época, coube ao Jornal Nacional da TV Globo montar um inesquecível teatro com
um perito particular, Ricardo Molina, a fim de dar ao eleitor de Serra um motivo
para entrar na fila da urna eleitoral sem a certeza de estar cometendo um ato de
desonestidade política. Para tal, fartou-se com a fantasia do rolo-fantasma de
fita crepe, gravíssimo pedregulho de plástico e cola a entorpecer as idéias do
candidato do PSDB.
Todos
nós, jornalistas, já nos deparamos, em menor ou maior escala, com fontes do
submundo. Esta é a verdade que a Veja usa para tentar se safar da CPI. Há,
contudo, uma diferença importante entre buscar informação e fazer uso de um
crime (no caso, o esquema de espionagem da quadrilha de Cachoeira) como elemento
de pauta – até porque, do ponto de vista da ética jornalística, o crime em si,
este sim, é que deve ser a pauta. A confissão do bicheiro, captada por um grampo
da PF, de que “todos os furos” recentes da Veja se originaram dos afazeres de
uma confraria de criminosos, nos deixa diante da complexidade desse terrível
zeitgeist, o espírito de um tempo determinado pelos espetáculos de vale tudo nas
redações brasileiras.
Foi
Cachoeira que deu à Veja, a Policarpo Jr., a fita na qual um ex-diretor dos
Correios recebe propina. O material foi produzido pela quadrilha de Cachoeira e
serviu para criar o escândalo do mensalão. Sob o comando de Policarpo, um jovem
repórter de apenas 24 anos, Gustavo Ribeiro, foi instado a invadir o apartamento
do ex-ministro José Dirceu, em um hotel de Brasília. Flagrado por uma camareira,
o jornalista acabou investigado pela Polícia Civil do Distrito Federal, mas
escapou ileso. Não se sabe, até hoje, o que ele pretendia fazer: plantar ou
roubar coisas. A matéria de Ribeiro, capa da Veja, era em cima de imagens
roubadas do sistema interno de segurança do hotel, onde apareciam políticos e
autoridades que freqüentavam o apartamento de Dirceu. A PF desconfia que o roubo
(atenção: entre jornalistas de verdade, o roubo seria a pauta) foi levado a cabo
pela turma de Cachoeira. A Veja, seria, portanto, receptadora do produto de um
crime. Isso se não tiver, ela mesmo, o encomendado.
Por
isso, além da podridão política que naturalmente irá vir à tona com a CPI do
Cachoeira, o Brasil terá a ótima e rara oportunidade de discutir a ética e os
limites do jornalismo a partir de casos concretos. Veremos como irão se
comportar, desta feita, os arautos da moralidade da velha mídia, os mesmos que
tinham no senador Demóstenes Torres o espelho de suas vontades.
Leandro Fortes. Publicado no blog Brasília, eu vi, em 23.04.2012
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