sábado, 21 de abril de 2012

BRASÍLIA: A CIDADE MUDA


Já ouvi tanto sobre ela. Muito, mas muito mesmo, dos que não a conhecem, ainda que com ela convivendo diariamente. A mim, não interessa o que esses dizem.

Ouvi muito dos que dela desconfiaram.

Cheguei a Brasília como a maior parte dos que a adotaram. Para trabalhar. E, como a maioria, imediatamente me deslumbrei. Já a tinha visto quando a cidade mal nascia, tinha implantadas algumas superquadras, parte da W3, quase toda a Esplanada e seus palácios. Ao chegar, a vi madura enquanto implantação de um projeto urbanístico e arquitetônico.

Mas era uma cidade muda. O primeiro evento “político” com que tive contato foi algo que, àquela época, só proporcionaria mesmo mobilização espontânea em Brasília. Seria votada a Emenda Nelson Carneiro, que criaria a possibilidade de divorciar-se. O plenário da Câmara encheu, de gente da cidade que tinha o maior índice de casamentos desfeitos do Brasil.

O segundo foi o aniversário de 15 anos do Iate Clube. Um almoço com tudo de frívolo, até que foi anunciada a carta enviada pelo cassado Juscelino Kubtischek desde Anápolis, para onde foi quando a sua aeronave foi impedida de pousar na cidade por ele criada e, assim, de comparecer à festa. A alta sociedade local, ali presente, levantou-se, protestou, revoltou-se, o microfone passou de mãos em mãos igualmente iradas e se chegou até a falar em eleições em Brasília, um tema proibido durante aqueles anos de ditadura.

Ainda eram atos em recintos fechados, não convenciam ninguém de que aquela cidade linda, mas fria, poderia pulsar. Quando o corpo de JK chegou à cidade e à Catedral, em 1961, o Brasil e a própria cidade se assustaram. Já não era um grupo de homens e mulheres separados a quererem autorização legal para reconstruir suas vidas ou a elite da cidade. Nem a manifestação se dava em recinto fechado ou com linguagem polida. Os operários, os candangos, com as suas próprias mãos, tornaram-se uma multidão à frente da Catedral e arrancaram o esquife de cima do caminhão do Corpo de Bombeiros, para enfrentar a resistência policial e levá-lo ao Campo da Esperança.

SILÊNCIO FORÇADO

Brasília era tida como uma cidade que não se movimentaria politicamente. Isso seria assegurado por seus amplos espaços, pela proposital separação entre a incipiente burguesia e as camadas médias da população, no Plano Piloto, e os setores populares nas distantes cidades satélites.

A abulia recebia grande contribuição da inexistência de representatividade política, sequer a permissão legal para funcionamento de partidos políticos. Ao lado disso, a mídia aceitava a tese de que em Brasília não acontecia nada. Até a criação do frustrado projeto do Correio do Planalto, praticamente não havia editorias locais nos seus órgãos de comunicação. A mídia quase restringia sua cobertura ao “aquário”, ao universo constituído pelos poderes federais constituídos, eleito como vitrine da cidade.

Daí a dificuldade de as direções nacionais dos próprios partidos políticos verem com tranquilidade a instituição de suas seções locais. Em alguns casos, a resistência teve que ser vencida com razoável enfrentamento interno, a que felizmente se associaram alguns políticos progressistas de outros estados brasileiros.

O marco da perspectiva de mudança na cidade viria a se dar 20 anos depois de os operários tomarem nas mãos o corpo de Juscelino, a quem aprenderam a ver como um amigo que visitava os canteiros de obra no tempo em que a cidade se implantava. Foi quando um ato político, num desenho incapaz àquela altura de se repetir em qualquer local do País, reuniu no mesmo palanque Ulisses Guimarães, Leonel Brizola, Lula e Tancredo Neves.

Os quatro líderes foram levados por seus correligionários brasilienses ao que seria um “debate”, no auditório da Associação Comercial. O debate era parte da mobilização para a votação de duas emendas (do senador Itamar Franco e do deputado Epitácio Cafeteira) que restituiriam representatividade aos moradores da capital brasileira.

O auditório regurgitou a quantidade de gente que tentava participar e os organizadores transferiram o ato para o estacionamento diante do prédio, os oradores utilizando um balcão improvisado como palanque. A polícia não aceitou isso e interveio, encerrando a manifestação com a utilização de grande aparato. O ato ganhou repercussão nacional.

CIDADE MUDA?

Mas a cidade era mesmo muda? Sim, mas é claro que a cidade muda. E Brasília mostrou a força com que mudou.

Mudou com os diversos comícios da campanha pelo direito a eleições, que juntaram a população em todas as suas cidades satélites e no Plano Piloto. Passou a ter atos políticos de movimentos contra aumentos de passagens de ônibus, mobilizações de universitários, de diferentes grupos culturais e de contingentes sociais que se sentiam marginalizados, entre eles mulheres e negros. Além de manifestações marcadamente políticas, que chegaram aos bares, como o Beirute, e deram origem ao Pacotão, bloco carnavalesco criado principalmente por jornalistas e que, com a sua tradicional irreverência, pautou os carnavais com denúncias e críticas políticas.

Como tornaram-se comuns também manifestações de trabalhadores dos poucos sindicatos então já estruturados e efetivamente controlados pelas categorias representadas. Ou por interesses do conjunto desses trabalhadores, como as realizadas contra os decretos-leis de arrocho salarial, em 1983. O crescimento delas acabou desencadeando as primeiras medidas de emergência, um reconhecimento evidente do regime de que os brasilienses, junto aos brasileiros que viessem à capital, poderiam promover pressão popular sobre o Congresso, levando-o a rejeitar os decretos-leis.

No caudal dessa efervescência, veio a campanha das DIRETAS JÁ, em 1984, que ganhou definitivamente as ruas. À véspera da votação da Emenda Dante de Oliveira, novas medidas de emergência e, de novo, as ações tresloucadas do general Newton Cruz que, desesperado com o buzinaço com que a população local respondeu à repressão, chegou a agredir automóveis com cassetetadas.

Brasília não se calou mais. Ocupou definitivamente as ruas, entre outras manifestações para exigir o impeachment de Fernando Collor, a derrubada de José Roberto Arruda e a punição dos deputados pilhados com ele na Operação Caixa de Pandora.

CIDADE DIFERENTE

Quem se criou em Brasília aprende cedo que aqui o pôr do sol é mais belo, a sua altitude permite que o horizonte seja mais amplo e o céu mais próximo. Acostuma-se a uma cidade mais organizada, capaz de impor-se e resistir até aos sucessivos desgovernos de Roriz.

Uma amiga me contou que, ao chegar em cidades tradicionais, tinha a impressão de vê-las cobertas de teias de aranha! Só depois de algum tempo descobriu que eram os fios que ligavam os postes, diferentes dos que estão nas tubulações enterradas de Brasília.

Mas, o que verdadeiramente marca a cidade quando chega aos 52 anos é a história produzida por seu povo. A história política, claro. Mas também a forma de se apropriar da cidade, dos seus espaços, de fazer a sua cultura.

Nessas pouco mais de cinco décadas, a cidade produziu e revelou tanto que me sinto à vontade pra listar nomes, com a certeza de esquecer muitos outros, entre os quais vários amigos. Pra não alongar demais, cito apenas nomes da música e do cinema: Renato Russo, Legião Urbana, Capital Inicial, Plebe Rude, Paralamas, Ney Matogrosso, Patrícia Pillar, Liga Tripa, Cássia Eller, Zélia Duncan, Clodo, Climério e Clésio, Teodoro do Bumba meu Boi (saudade), Oswaldo Montenegro, Vladimir Carvalho, Geraldo Moraes, Renato Mattos, Pedro Jorge, Natiruts, Raimundos.

Fernando Tolentino

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