Qualquer que seja o desfecho da presente crise institucional brasileira, o Poder que deve sair mais enxovalhado será o Judiciário.
Afinal, ainda que se comprovasse, mesmo que
indiretamente, alguma imprevisível participação da presidenta Dilma Rousseff
nas bandalheiras identificadas na Petrobras e em outras estatais, ela não é o
Poder. Restaria maculado o seu governo e este o foi, na medida em que
perduraram as relações licenciosas que historicamente marcaram essas empresas e
o mundo empresarial brasileiro. Há que se salientar que foi justamente no seu
governo que se aprofundaram as medidas, iniciadas no governo do ex-presidente
Lula, para superar tais absurdos e, além disso, até onde o Congresso
contribuiu, investigá-los e puni-los adequadamente.
Afora isso, ninguém é capaz de negar que o principal
fulcro da corrupção nos negócios das estatais está no presidencialismo de
coalização imposto pela Constituição de 1988. Uma Carta mal alinhavada,
concebida originalmente para um regime parlamentarista e com esse viés mantida
após a opção popular pelo presidencialismo.
É por conta desse sistema esquizofrênico que
partidos se sentem no direito de exigirem espaço nos ministérios e nessas
empresas. Não necessariamente onde, em tese, estariam contribuindo para a
execução de políticas públicas capazes de evidenciar a coerência do compromisso
com o governo. Exigem cargos técnicos em órgãos em empresas de orçamentos
avultados ou com o múnus da imposição de obrigações ao mundo privado, em que
podem eventualmente ser lenientes, atendendo mais o interesse de empresários
que o público. Ou que têm relações de negócios com o mundo empresarial, no que
é inconcebível que estejam realmente defendendo os interesses da sociedade.
A essa cobiça por tais espaços cedeu o governo
Dilma, como todos os anteriores. E é preciso deixar claro de onde vem essa
ansiedade por poder. Os partidos são na verdade ajuntamento de mandatos, os
quais são conquistados com o investimento de poderosos grupos empresariais.
Assim, quando conquistam um espaço, defendem a presença ali do segmento
empresarial que fez a campanha de certo número de parlamentares ou que se
dispõe a financiar a futura reeleição deles.
Aqui, é preciso chamar a atenção para o esforço do
governo Dilma para aprovar a regra do financiamento exclusivamente público para
partidos e para eleições.
Quanto ao Parlamento, por mais triste que seja isso,
não há como ser mais desqualificado do que já o é.
A população se vê pouco representada, ao perceber
como os seus interesses são desconsiderados no dia a dia da Instituição. É
claro que a mídia contribui significativamente para isso, ao cumprir um papel
de desqualificação da própria atividade política, o que faz há décadas, com a
complacência do próprio Congresso Nacional.
O fato é que o sistema eleitoral brasileiro
distancia os políticos de suas bases. Como os partidos são extremamente
frágeis, não reconhecidos pelos eleitores na escolha de seus candidatos, e a
composição da Câmara dos Deputados é proporcional aos votos deles, é bastante
disseminada a compreensão de que o voto é dado ao candidato. Assim, os eleitos
(com os votos dos demais) não são vistos como representativos de quem votou nos
candidatos das mesmas legendas. Resultado: a composição da Casa raramente tem
uma representatividade sequer próxima de 30% dos eleitores.
Para completar, saltam aos olhos as relações
incestuosas dos parlamentares com os interesses de grupos econômicos, por vezes
caracterizadas como corrupção pura e simples.
Nas últimas sondagens de opinião pública, isso é
sobejamente comprovado. O Datafolha (18.03.2015) identifica que, entre dez
instituições brasileiras, as duas de menor prestígio são o Congresso Nacional
(19%) e os partidos políticos (18%). O levantamento do índice de confiança pela
Fundação Getúlio Vargas é igualmente contundente. O Congresso Nacional obteve
22% e os partidos políticos não passaram de 5%.
Vale lembrar que as duas sondagens são anteriores ao
conhecimento das peripécias do deputado Eduardo Cunha, hoje réu da Operação
Lava-Jato e submetido a questionamento de seu mandato na própria Câmara, o qual
faz questão de emperrar e, não tomando conhecimento dele, sentindo-se à vontade
para liderar processo de “impeachment” da Presidenta da República. O que toda a
sociedade tem claro é que, mesmo pilhado em desvios milionários de recursos,
Cunha controla a Câmara dos Deputados, simplesmente por dispor de muitas
dezenas de fieis deputados, eleitos com o patrocínio desses recursos.
E O JUDICIÁRIO?
A Operação Lava-Jato poderia ser a responsável por
conferir enorme confiabilidade ao Poder Judiciário. Afinal, tem sido incansável
o esforço da grande mídia para construir a imagem de um processo em que,
finalmente, a Justiça deixa de existir apenas para pretos, pobres e putas, como
entranhado na consciência popular. Esgrimindo legislação ainda quente do forno,
foram alcançados não só os corrompidos, mas também os corruptores. Mais: não se
trata apenas de pequenos empresários, como o proprietário de um posto de
gasolina de Brasília que teria despertado a atenção das autoridades, mas dos
proprietários das maiores empreiteiras brasileiras, um banqueiro e outros
poderosos homens de negócios. Não só. E aí vem o encantamento da mídia. Mesmo
que a maior parte dos políticos envolvidos seja de outros partidos da base
governista (e até de oposicionistas, como o tão citado senador Aécio Neves), o
trato do noticiário dá asas à tenaz campanha para a destruição do PT e a
destituição da presidenta da República, além da demolição do maior líder
político brasileiro pelo menos das últimas décadas: Luís Inácio Lula da Silva.
Tudo caminharia dentro do figurino se o condutor do
processo, Sérgio Moro, um juiz de primeira instância, não passasse a tropeçar
sistematicamente no exercício de seus poderes, talvez embevecido com as luzes
dos holofotes e as manchetes dos jornais. Não só uma vez, o magistrado
sublinhou que precisaria da opinião pública para levar à frente o processo e
que, para isso, seria fundamental o apoio da mídia. Esse apoio não lhe faltou
em um único instante. Mas parece ter soado aos seus ouvidos como uma blindagem.
Ou seja, poderia tudo, pois estava inapelavelmente guarnecido por essa
proteção.
Não foram poucas as barbeiragens, todas colocadas em
plano secundário por jornais, revista e televisão. Como as equivocadas prisões de
uma cunhada de João
Vaccari Neto, ex-tesoureiro do PT, e de um lanterneiro, confundido com um
homônimo.
Questões
mais relevantes, como o sucessivo vazamento de informações definidas como
confidenciais jamais foram cobradas pela mídia. Nem mesmo o fato de que os
vazamentos tinham cor partidária e objetivos inquestionáveis de interferir na
política.
A
asneira que começou a desequilibrar a sua credibilidade viria com o que o juiz
deve ter avaliado como a sua maior tacada: a condução coercitiva de Lula na
madrugada de 4 de março. O fato foi tão escandaloso que não poucos duvidaram
que ele estava sendo levado realmente para um interrogatório no Aeroporto de
Congonhas.
Vozes
credenciadas do mundo jurídico se levantaram, entre elas a do insuspeito
ministro Marco Aurélio de Mello, um dos três integrantes do Supremo anteriores
ao ciclo petista de governos. Além deles e de uma notável reação no Exterior,
inclusive de grande número de chefes de Estado, as ruas foram invadidas em
poucas horas, com milhares de manifestantes inconformados e com um nível de
emoção controlado com enorme dificuldade.
O
momento seguinte foi o vazamento para a IstoÉ do que viria a ser o conteúdo da
delação premiada do senador Delcídio Amaral. Tudo milimetricamente concatenado,
de tal sorte que a revista antecipou o lançamento da sua edição (mesmo
procedimento da divulgação, pela Veja, às vésperas da eleição de 2014, da falsa
informação de que Lula e Dilma tinham conhecimento da rede de corrupção
implantada na Petrobras), permitindo a repercussão em tempo de criar um clima
de comoção popular que viesse a influir na mobilização para os atos marcados
para 13 de março.
E
veio a escandalosa liberação de gravações telefônicas de inúmeras conversas de
Lula, cirurgicamente liberadas para a mídia no momento em que ele aceitara o
convite para assumir a Casa Civil do governo de Dilma e quando Eduardo Cunha
finalizava as suas providências para a instalação de um processo de impedimento
da presidenta.
Desta
vez, o juiz resvalou para o terreno da ilegalidade, divulgando conversas com
autoridades que possuem foro privilegiado, entre elas a própria presidenta Dilma.
Os fatos demonstraram que o magistrado foi ainda mais longe. Uma das conversas,
justamente entre Lula e Dilma, foi gravada depois da sua determinação de que
elas não fossem mais captadas e, ao invés de desconsideradas, foram incorporadas
ao processo e, além disso, colocadas à disposição da imprensa. Questionado
sobre a atitude, a resposta pareceu a de um desinformado vestibulando de
Direito: a conversa seria de “interesse público”. Um interesse que via, por
certo, acima da Constituição.
Enfim,
a construção de um símbolo do Judiciário comprometido com a perseguição ao
crime sem que nada lhe impusesse restrições mostrou-se um castelo de cartas.
Tirava-se o véu que cobria os objetivos da Lava-Jato e esses objetivos não
estavam no processo, mas no mundo da política.
CONFISSÃO DE COVARDIA OU CORAGEM
INSTITUCIONAL
As
gravações não pareciam reveladas sem intencionalidade. Tanto que uma delas
melindrou fortemente o ministro Celso de Mello, do STF. Inconformado com o que
via como a incapacidade de reação de deputados e senadores e a exagerada
autonomia do juiz Moro, o ex-presidente falava do medo dos parlamentares de
serem alcançados pelas investigações e usava uma expressão forte para o
Supremo: “acovardado”.
Como disse o jornalista Luís Nassif, restavam ao
Supremo duas alternativas: “desmentir
os fatos ou brigar com a afirmação.” O
ministro Celso de Mello escolheu o caminho mais cômodo. Desconheceu a
ilegalidade dos grampos e voltou-se contra o personagem mais frágil naquela
circunstância, Lula. Investigado pela Operação, quase condenado previamente
pela mídia, embora não haja sequer acusações contra ele, odiado por amplos
setores da classe média. Pareceu corajoso, pois enfrentava um grande líder
popular, e conquistou a simpatia dos editores de grandes jornais e emissoras de
TV.
E o que havia dito Lula? Ainda bem que (suponho) as
minhas conversas não estão sendo gravadas. Dificilmente captariam uma impressão
melhor do Judiciário. Arrisco dizer que as suas conversas iriam mais ou menos
na mesma direção. Em conversas reservadas, “acovardado” soa como uma
justificativa para a postura de magistrados que deveriam agir e preferem calar.
Acho que coisa bem pior se fala por aí. É o que dizem as pesquisas de opinião
pública, as feitas antes das traquinagens da Lava-Jato, em que os entrevistados
não falavam do STF, mas da Justiça como um todo. A Datafolha (citada) mostra o
Judiciário com 34% de prestígio, dos menores índices entre as instituições
pesquisadas. A FGV ainda viu um índice de confiança de 42%, mas a nossa Justiça
estaria mais perto de cair para a Série B que de se classificar para a
Libertadores.
O que garante ao Judiciário a perspectiva de sair
dessa crise institucional como um lugar lastimável na História do Brasil é a
sua própria atitude.
Vejamos. Quantas vezes, questionado com relação a
decisões de suas Mesas, nós vimos o STF eximir-se de manifestação, alegando
serem questões internas do Legislativo?
E há questão mais interna do Poder Executivo que a
nomeação de um ministro? A nomeação de um cidadão, que não é acusado, não é réu. Dezenas de interpelações foram levadas ao Judiciário.
A primeira foi ridiculamente aceita por um juiz que não se deu por impedido,
embora notoriamente um ativista contra o governo nas ruas e nas redes sociais. Pior,
decidiu pelo impedimento da posse antes da ação chegar formalmente ao seu
conhecimento! A decisão foi anulada, mas o ministro Gilmar Mendes, incansável
crítico de Lula, do PT e do governo Dilma, não titubeou e vetou a posse. Longe
de se dar por impedido, ainda que a matéria fosse proposta por advogada que é
funcionária de entidade em que é sócio. Não fez como o ministro Edson Fachin em
habeas corpus impetrado por advogados
de Lula, alegando uma questão menor, ser padrinho de casamento de um dos
subscritores da ação. Essa invasão de uma prerrogativa da presidenta da República, em si, já transforma a crise política em crise institucional.
Levantar que a nomeação se dá para blindar Lula, tirando-o do alcance de Moro, é uma grave ofensa ao Supremo Tribunal Federal. Se investigado na última instância, o processo seria mais célere e só uma maledicência muito grande para dizer que seria menos justo que o conduzido por Moro. A AP 470 foi conduzida pelo STF, vários réus tentaram ser transferidos para a primeira instância e foram justamente acusados de tentarem obter mais tempo no processo e, talvez, decisões mais favoráveis. Como o fez o ex-presidente do PSDB e ex-governador de Minas Gerais, renunciando ao mandato para descer à primeira instância. Essa suspeita pode, sim, pôr em risco a imagem da Corte.
Em face de atitudes como a do ministro Gilmar, não fica
melindrada a Corte, mas a sociedade, o mundo jurídico e a História.
O que pode começar a salvar o Judiciário são
atitudes como a do ministro Teori Zavascki. Que importa se as manchetes de
jornais e TV venham a dizer que está constrangendo a Lava-Jato ou o juiz Moro?
Ele está administrando justiça e este é o papel do magistrado, ainda mais no
Supremo Tribunal Federal.
Diz o ministro
Marco Aurélio de Mello: “Quando minha consciência indica o correto, posso ser
mandado para o paredão ou cair o teto na minha casa, mas não recuo. Afinal, a
Constituição me investiu de atribuições para que eu possa defendê-la”.
Foi
exatamente isso que animou o ministro Teori. Não pode o Poder Judiciário
cometer ilegalidades sob o olhar complacente de sua mais alta instância.
Ou o
Supremo assinará a confissão de que está acovardado.
Fernando Tolentino
Nenhum comentário:
Postar um comentário