quarta-feira, 23 de março de 2016

TEORI ZAVASCKI PODE TER SALVO O JUDICIÁRIO


Qualquer que seja o desfecho da presente crise institucional brasileira, o Poder que deve sair mais enxovalhado será o Judiciário.
Afinal, ainda que se comprovasse, mesmo que indiretamente, alguma imprevisível participação da presidenta Dilma Rousseff nas bandalheiras identificadas na Petrobras e em outras estatais, ela não é o Poder. Restaria maculado o seu governo e este o foi, na medida em que perduraram as relações licenciosas que historicamente marcaram essas empresas e o mundo empresarial brasileiro. Há que se salientar que foi justamente no seu governo que se aprofundaram as medidas, iniciadas no governo do ex-presidente Lula, para superar tais absurdos e, além disso, até onde o Congresso contribuiu, investigá-los e puni-los adequadamente.
Afora isso, ninguém é capaz de negar que o principal fulcro da corrupção nos negócios das estatais está no presidencialismo de coalização imposto pela Constituição de 1988. Uma Carta mal alinhavada, concebida originalmente para um regime parlamentarista e com esse viés mantida após a opção popular pelo presidencialismo.
É por conta desse sistema esquizofrênico que partidos se sentem no direito de exigirem espaço nos ministérios e nessas empresas. Não necessariamente onde, em tese, estariam contribuindo para a execução de políticas públicas capazes de evidenciar a coerência do compromisso com o governo. Exigem cargos técnicos em órgãos em empresas de orçamentos avultados ou com o múnus da imposição de obrigações ao mundo privado, em que podem eventualmente ser lenientes, atendendo mais o interesse de empresários que o público. Ou que têm relações de negócios com o mundo empresarial, no que é inconcebível que estejam realmente defendendo os interesses da sociedade.
A essa cobiça por tais espaços cedeu o governo Dilma, como todos os anteriores. E é preciso deixar claro de onde vem essa ansiedade por poder. Os partidos são na verdade ajuntamento de mandatos, os quais são conquistados com o investimento de poderosos grupos empresariais. Assim, quando conquistam um espaço, defendem a presença ali do segmento empresarial que fez a campanha de certo número de parlamentares ou que se dispõe a financiar a futura reeleição deles.
Aqui, é preciso chamar a atenção para o esforço do governo Dilma para aprovar a regra do financiamento exclusivamente público para partidos e para eleições.
Quanto ao Parlamento, por mais triste que seja isso, não há como ser mais desqualificado do que já o é.
A população se vê pouco representada, ao perceber como os seus interesses são desconsiderados no dia a dia da Instituição. É claro que a mídia contribui significativamente para isso, ao cumprir um papel de desqualificação da própria atividade política, o que faz há décadas, com a complacência do próprio Congresso Nacional.
O fato é que o sistema eleitoral brasileiro distancia os políticos de suas bases. Como os partidos são extremamente frágeis, não reconhecidos pelos eleitores na escolha de seus candidatos, e a composição da Câmara dos Deputados é proporcional aos votos deles, é bastante disseminada a compreensão de que o voto é dado ao candidato. Assim, os eleitos (com os votos dos demais) não são vistos como representativos de quem votou nos candidatos das mesmas legendas. Resultado: a composição da Casa raramente tem uma representatividade sequer próxima de 30% dos eleitores.
Para completar, saltam aos olhos as relações incestuosas dos parlamentares com os interesses de grupos econômicos, por vezes caracterizadas como corrupção pura e simples.
Nas últimas sondagens de opinião pública, isso é sobejamente comprovado. O Datafolha (18.03.2015) identifica que, entre dez instituições brasileiras, as duas de menor prestígio são o Congresso Nacional (19%) e os partidos políticos (18%). O levantamento do índice de confiança pela Fundação Getúlio Vargas é igualmente contundente. O Congresso Nacional obteve 22% e os partidos políticos não passaram de 5%.
Vale lembrar que as duas sondagens são anteriores ao conhecimento das peripécias do deputado Eduardo Cunha, hoje réu da Operação Lava-Jato e submetido a questionamento de seu mandato na própria Câmara, o qual faz questão de emperrar e, não tomando conhecimento dele, sentindo-se à vontade para liderar processo de “impeachment” da Presidenta da República. O que toda a sociedade tem claro é que, mesmo pilhado em desvios milionários de recursos, Cunha controla a Câmara dos Deputados, simplesmente por dispor de muitas dezenas de fieis deputados, eleitos com o patrocínio desses recursos.
E O JUDICIÁRIO?
A Operação Lava-Jato poderia ser a responsável por conferir enorme confiabilidade ao Poder Judiciário. Afinal, tem sido incansável o esforço da grande mídia para construir a imagem de um processo em que, finalmente, a Justiça deixa de existir apenas para pretos, pobres e putas, como entranhado na consciência popular. Esgrimindo legislação ainda quente do forno, foram alcançados não só os corrompidos, mas também os corruptores. Mais: não se trata apenas de pequenos empresários, como o proprietário de um posto de gasolina de Brasília que teria despertado a atenção das autoridades, mas dos proprietários das maiores empreiteiras brasileiras, um banqueiro e outros poderosos homens de negócios. Não só. E aí vem o encantamento da mídia. Mesmo que a maior parte dos políticos envolvidos seja de outros partidos da base governista (e até de oposicionistas, como o tão citado senador Aécio Neves), o trato do noticiário dá asas à tenaz campanha para a destruição do PT e a destituição da presidenta da República, além da demolição do maior líder político brasileiro pelo menos das últimas décadas: Luís Inácio Lula da Silva.
Tudo caminharia dentro do figurino se o condutor do processo, Sérgio Moro, um juiz de primeira instância, não passasse a tropeçar sistematicamente no exercício de seus poderes, talvez embevecido com as luzes dos holofotes e as manchetes dos jornais. Não só uma vez, o magistrado sublinhou que precisaria da opinião pública para levar à frente o processo e que, para isso, seria fundamental o apoio da mídia. Esse apoio não lhe faltou em um único instante. Mas parece ter soado aos seus ouvidos como uma blindagem. Ou seja, poderia tudo, pois estava inapelavelmente guarnecido por essa proteção.
Não foram poucas as barbeiragens, todas colocadas em plano secundário por jornais, revista e televisão. Como as equivocadas prisões de uma cunhada de João Vaccari Neto, ex-tesoureiro do PT, e de um lanterneiro, confundido com um homônimo.
Questões mais relevantes, como o sucessivo vazamento de informações definidas como confidenciais jamais foram cobradas pela mídia. Nem mesmo o fato de que os vazamentos tinham cor partidária e objetivos inquestionáveis de interferir na política.
A asneira que começou a desequilibrar a sua credibilidade viria com o que o juiz deve ter avaliado como a sua maior tacada: a condução coercitiva de Lula na madrugada de 4 de março. O fato foi tão escandaloso que não poucos duvidaram que ele estava sendo levado realmente para um interrogatório no Aeroporto de Congonhas.
Vozes credenciadas do mundo jurídico se levantaram, entre elas a do insuspeito ministro Marco Aurélio de Mello, um dos três integrantes do Supremo anteriores ao ciclo petista de governos. Além deles e de uma notável reação no Exterior, inclusive de grande número de chefes de Estado, as ruas foram invadidas em poucas horas, com milhares de manifestantes inconformados e com um nível de emoção controlado com enorme dificuldade.
O momento seguinte foi o vazamento para a IstoÉ do que viria a ser o conteúdo da delação premiada do senador Delcídio Amaral. Tudo milimetricamente concatenado, de tal sorte que a revista antecipou o lançamento da sua edição (mesmo procedimento da divulgação, pela Veja, às vésperas da eleição de 2014, da falsa informação de que Lula e Dilma tinham conhecimento da rede de corrupção implantada na Petrobras), permitindo a repercussão em tempo de criar um clima de comoção popular que viesse a influir na mobilização para os atos marcados para 13 de março.
E veio a escandalosa liberação de gravações telefônicas de inúmeras conversas de Lula, cirurgicamente liberadas para a mídia no momento em que ele aceitara o convite para assumir a Casa Civil do governo de Dilma e quando Eduardo Cunha finalizava as suas providências para a instalação de um processo de impedimento da presidenta.
Desta vez, o juiz resvalou para o terreno da ilegalidade, divulgando conversas com autoridades que possuem foro privilegiado, entre elas a própria presidenta Dilma. Os fatos demonstraram que o magistrado foi ainda mais longe. Uma das conversas, justamente entre Lula e Dilma, foi gravada depois da sua determinação de que elas não fossem mais captadas e, ao invés de desconsideradas, foram incorporadas ao processo e, além disso, colocadas à disposição da imprensa. Questionado sobre a atitude, a resposta pareceu a de um desinformado vestibulando de Direito: a conversa seria de “interesse público”. Um interesse que via, por certo, acima da Constituição.
Enfim, a construção de um símbolo do Judiciário comprometido com a perseguição ao crime sem que nada lhe impusesse restrições mostrou-se um castelo de cartas. Tirava-se o véu que cobria os objetivos da Lava-Jato e esses objetivos não estavam no processo, mas no mundo da política.
CONFISSÃO DE COVARDIA OU CORAGEM INSTITUCIONAL
As gravações não pareciam reveladas sem intencionalidade. Tanto que uma delas melindrou fortemente o ministro Celso de Mello, do STF. Inconformado com o que via como a incapacidade de reação de deputados e senadores e a exagerada autonomia do juiz Moro, o ex-presidente falava do medo dos parlamentares de serem alcançados pelas investigações e usava uma expressão forte para o Supremo: “acovardado”.
Como disse o jornalista Luís Nassif, restavam ao Supremo duas alternativas: “desmentir os fatos ou brigar com a afirmação.” O ministro Celso de Mello escolheu o caminho mais cômodo. Desconheceu a ilegalidade dos grampos e voltou-se contra o personagem mais frágil naquela circunstância, Lula. Investigado pela Operação, quase condenado previamente pela mídia, embora não haja sequer acusações contra ele, odiado por amplos setores da classe média. Pareceu corajoso, pois enfrentava um grande líder popular, e conquistou a simpatia dos editores de grandes jornais e emissoras de TV.
E o que havia dito Lula? Ainda bem que (suponho) as minhas conversas não estão sendo gravadas. Dificilmente captariam uma impressão melhor do Judiciário. Arrisco dizer que as suas conversas iriam mais ou menos na mesma direção. Em conversas reservadas, “acovardado” soa como uma justificativa para a postura de magistrados que deveriam agir e preferem calar. Acho que coisa bem pior se fala por aí. É o que dizem as pesquisas de opinião pública, as feitas antes das traquinagens da Lava-Jato, em que os entrevistados não falavam do STF, mas da Justiça como um todo. A Datafolha (citada) mostra o Judiciário com 34% de prestígio, dos menores índices entre as instituições pesquisadas. A FGV ainda viu um índice de confiança de 42%, mas a nossa Justiça estaria mais perto de cair para a Série B que de se classificar para a Libertadores.
O que garante ao Judiciário a perspectiva de sair dessa crise institucional como um lugar lastimável na História do Brasil é a sua própria atitude.
Vejamos. Quantas vezes, questionado com relação a decisões de suas Mesas, nós vimos o STF eximir-se de manifestação, alegando serem questões internas do Legislativo?
E há questão mais interna do Poder Executivo que a nomeação de um ministro? A nomeação de um cidadão, que não é acusado, não é réu. Dezenas de interpelações foram levadas ao Judiciário. A primeira foi ridiculamente aceita por um juiz que não se deu por impedido, embora notoriamente um ativista contra o governo nas ruas e nas redes sociais. Pior, decidiu pelo impedimento da posse antes da ação chegar formalmente ao seu conhecimento! A decisão foi anulada, mas o ministro Gilmar Mendes, incansável crítico de Lula, do PT e do governo Dilma, não titubeou e vetou a posse. Longe de se dar por impedido, ainda que a matéria fosse proposta por advogada que é funcionária de entidade em que é sócio. Não fez como o ministro Edson Fachin em habeas corpus impetrado por advogados de Lula, alegando uma questão menor, ser padrinho de casamento de um dos subscritores da ação. Essa invasão de uma prerrogativa da presidenta da República, em si, já transforma a crise política em crise institucional.
Levantar que a nomeação se dá para blindar Lula, tirando-o do alcance de Moro, é uma grave ofensa ao Supremo Tribunal Federal. Se investigado na última instância, o processo seria mais célere e só uma maledicência muito grande para dizer que seria menos justo que o conduzido por Moro. A AP 470 foi conduzida pelo STF, vários réus tentaram ser transferidos para a primeira instância e foram justamente acusados de tentarem obter mais tempo no processo e, talvez, decisões mais favoráveis. Como o fez o ex-presidente do PSDB e ex-governador de Minas Gerais, renunciando ao mandato para descer à primeira instância. Essa suspeita pode, sim, pôr em risco a imagem da Corte.
Em face de atitudes como a do ministro Gilmar, não fica melindrada a Corte, mas a sociedade, o mundo jurídico e a História.
O que pode começar a salvar o Judiciário são atitudes como a do ministro Teori Zavascki. Que importa se as manchetes de jornais e TV venham a dizer que está constrangendo a Lava-Jato ou o juiz Moro? Ele está administrando justiça e este é o papel do magistrado, ainda mais no Supremo Tribunal Federal.
Diz o ministro Marco Aurélio de Mello: “Quando minha consciência indica o correto, posso ser mandado para o paredão ou cair o teto na minha casa, mas não recuo. Afinal, a Constituição me investiu de atribuições para que eu possa defendê-la”.
Foi exatamente isso que animou o ministro Teori. Não pode o Poder Judiciário cometer ilegalidades sob o olhar complacente de sua mais alta instância.
Ou o Supremo assinará a confissão de que está acovardado.
Fernando Tolentino

Nenhum comentário:

Postar um comentário