terça-feira, 4 de novembro de 2014

"SE É PRA MIM, SOU A FAVOR"



Cresci em um tempo em que os liberais confrontavam a esquerda alegando que o ideal não seria que a sociedade desse a todos a mesma condição de vida, mas igualdade de oportunidades.
Não sendo um liberal, até que achava uma máxima interessante.
Pois bem.  Nasci em uma família de classe média baiana. Se não absolutamente branca (seria pedir muito em Salvador), mas tida como tal. Até porque meu pai se casara com uma catarinense, a minha mãe. Ao galgar a condição de pequeno comerciante, meu avô impôs-se a meta de formar os filhos. De modo que meu pai, bacharel em Direito, tornou-se promotor público e professor universitário. Minha mãe, enfermeira, graduou-se também em Nutrição e foi imediatamente aproveitada como professora desse curso. Adiante, faria um pós-graduação no México e se aposentaria como diretora da Escola.
Éramos de classe média. Se ter filhos com formação superior já era um sonho para meu avô, imagine para os meus pais, ambos professores da Universidade Federal da Bahia.
Consegui passar no exame de admissão para o Colégio de Aplicação. Equivalia mais ou menos ao quinto ano do primeiro grau, de modo que ali faria mais quatro de curso ginasial e o segundo grau. Colégio público, vinculado à Faculdade de Filosofia da Universidade Federal da Bahia, era seguramente um dos três melhores de Salvador. Tão bom que, sendo público, eu era de família situada na média de renda dos estudantes, talvez um pouco abaixo disso. As vagas eram disputadas por crianças e adolescentes vindos de classes abastadas. De modo que não precisei de preparação para o vestibular. Pra falar a verdade, ainda tentei um reforço em matemática, já que vinha de curso clássico, onde a disciplina era restrita ao primeiro ano e com nível de exigência inferior. Para completar o valor do cursinho, acrescentei inglês.
Uma sala comprida, em que os vestibulandos se espremiam, mal tendo como escutar o professor. Eu chegava atrasado e, claro, só conseguia lugar no fundão. Ao meu lado, um rapaz gritava; “Pode repetir, professor”. De longe, repetia o que representava no quadro negro: "Ângulo alfa e ângulo beta”. Lá do fundo, mais um reclamava: “Não deu pra escutar”. Já irritado, mas preocupado em repassar toda a disciplina, vem a resposta: "Alfa e beta; estou falando grego?" Levantei-me e saí. Concluí que, com sorte, até podia aprender matemática, mas desaprenderia o resto. E larguei as duas disciplinas. A aprovação no vestibular de Administração, na mesma Universidade Federal da Bahia, foi garantida pelo básico do Colégio de Aplicação. Em uma das primeiras colocações, vale lembrar, como se esperava de seus ex-alunos.
Passados quatro anos, terminei o curso e logo fui aproveitado como profissional. Era um dos primeiros cursos de Administração do Brasil, de modo que não havia problema de colocação no mercado. Mais quatro anos e fui convidado para trabalhar no MEC, em Brasília.
Foi nessa época que decidi cursar Jornalismo. Não me sentia acomodado trabalhando no governo em pleno período da ditadura. Não precisei um novo vestibular para ingressar no curso, pois já tinha uma graduação.
A longa remissão biográfica serve apenas para conduzir à reflexão: onde está a tal “igualdade de oportunidades”?
Não estou renunciando aos meus méritos pessoais. Mas, tenho que reconhecer, as condições me foram amplamente favoráveis.
De classe média e filho de profissionais de nível superior, ambos depois professores universitários, já nasci em situação que me dava boas condições comparativas, além de me encaminhar para uma formação acima do conjunto da sociedade. 
É importante, aqui, lembrar um esforço localizado, em Salvador, para reparar essa desvantagem dos filhos de classes econômicos inferiores.
Testemunhei a implantação de preparativos para que 30 ou 40 crianças comprovadamente pobres tivessem melhor condição para concorrer no exame de admissão do nosso Colégio. Foi uma iniciativa da notável professora Maria Angélica Matos, então diretora. Metade da turma foi aprovada e foi acompanhada durante a 1ª. Série, saindo-se muito bem.
Angélica, com quem tenho a felicidade de manter relação pessoal ainda hoje, explica que “o objetivo era mostrar que o pobre tem vez se lhe derem oportunidade.” Modesta, faz um reparo à qualificação de notável. “Basta ter sensibilidade e formação política”, avalia. E conclui: “Hoje, sinto-me feliz ao ver a realização de um sonho ‘muito sonhado’ na década de 1960.”
A verdade é que o exame de admissão foi a minha primeira confirmação do diferencial de classe. O detalhe é que, a partir daí, meu desenvolvimento futuro estava mais ou menos assegurado e o custo desse desenvolvimento seria integralmente bancado pela sociedade: cursos ginasial e colegial, assim como o superior, em instituições gratuitas, da Universidade Federal da Bahia.
Certa vez, um amigo lembrou um fato ocorrido quando voltou à casa dos pais, que viviam em um bairro popular, após graduar-se em Administração e passar alguns anos fora da Bahia. Ao entrar em um bar próximo para comprar refrigerantes, foi cumprimentado por amigos de infância, os mesmos que não tomavam conhecimento de que fosse o dono da bola e escalavam o time, deixando-o sentado no meio-fio para entrar quando alguém cansasse ou, quando muito, determinando que ficasse no gol. Esses mesmos amigos dirigiram-se a ele com reverência, chamando-o de “Doutor” e não pelo apelido ou, ao menos, o nome. Já haviam "aprendido" a estabelecer uma nítida sujeição social.
Importa, agora, é esta reflexão. Enquanto eu me tornava o que sou hoje, um profissional com dupla graduação superior e três cursos de especialização, a sociedade investia em mim. E a sociedade não é uma coisa abstrata. A sociedade é aquela turma que trabalha e produz, quase sempre com salários escassos e muitas vezes não recebendo suficiente compensação do Estado.
Ainda na universidade e já com modesta remuneração de estagiários, reuníamos anualmente os colegas para preenchermos os complicadíssimos formulários de Declaração de Rendimentos. Participou conosco o marido de uma professora que queria uma ajuda. Tinha alguma terras, praticamente improdutivas, já que não tinha capital suficiente para explorá-las. Mas era agrônomo do Estado. Ao final, foi o único sem nada pra pagar. Era beneficiado pela chamada Cédula G, utilizada pelos proprietários rurais. Ali, o imposto sumia.
Trabalhei como auxiliar de contabilidade durante o tempo de faculdade, prestando serviço para várias empresas. Fiquei impressionado porque eram todas absorvidas como sendo da empresa as despesas pessoais dos sócios: aquisição e manutenção dos carros da família, custeio de viagens, despesas de saúde e por aí vai. Os filhos não recebiam mesadas, mas eram registrados na folha de pagamento. A retirada era próxima do salário mínimo. Resultado, nada de imposto de renda para os sócios e imposto muito menor para as empresas.
Impossível não comparar com a nossa situação do tempo de estagiários!
O que me pergunto hoje é que direito eu tenho de negar o mínimo de compensação aos filhos de muitos que produziram para eu chegar à minha atual condição pelas condições desvantajosas que lhes foram oferecidas para ascender na vida .
Pois são políticas voltadas para atingir esses resultados que são combatidas atualmente pelos neoliberais, filhos e netos de muitos daqueles que, outrora, enfrentavam a esquerda com o discurso da igualdade de oportunidades.
São esses os que, raivosos, não aceitam um resultado eleitoral que vai representar a confirmação e aprofundamento desses programas de compensação social.
Fernando Tolentino

6 comentários:

  1. Como disse o presidente lula: “Nós não queremos falar de pobre a vida inteira. Queremos tirar o pobre da condição de pobreza." Parabéns. O teu texto é uma lição de vida!

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  2. Seu relato realista , Fernando Tolentino, reportou-me à minha própria condição, pois sendo filha de pais de formação universitária, pude ter acesso à excelentes escolas e adentrei a Faculdade de Medicina com apenas 16 anos de idade sem precisar fazer cursinHo prá vestibular.Da mesma forma tive acesso à cursos e possibilidades de trabalho pós universidade que me garantiram manter-me em condição confortável e até melhorar alguns aspectos de minha vida classe média.Ocorre-me aqui que , devo fazer parte de algum grupo de exceção á regra da classe a qual pertenço, pois ao invés de eu combater o acesso igualitário ás condiçções que me foram dadas por eu fazer parte de uma "elite", vivo de defender esse acesso, vivo de regogizar-me com notícias de bolsas do governo da área de educação , de moradia e de alimentação, que diminua as profundas desigualdades brasileiras.Enquanto isso vejo colegas médicos e mesmo familiares , que tiveram as mesmas oportunidades que eu, e que vivem revoltados, vivem combatendo os programas sociais do governo, como se com eles ficassem mais pobres ou fossem perder aquilo que conquistaram por terem tido por herança, maiores facilidades de acesso que a população menos favorecida.Essa é a famosa "elite" brasileira: individualista, meritocrática, fascista. São até religiosos , no sentido de frequentarem muitas vezes cultos ou missas e paradoxalmente e contrários ao que Cristo professou, vivem de defender as desigualdades e a manutenção da miséria , da fome e das desigualdades.

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  3. Um belo exemplo de trajetória de vida...
    Só tenho a elogiar a sua garra e persistência em tornar realidade todos os seus anseios, desejos e sonhos, vencendo obstáculos e dificuldades. PARABÉNS!!! Te admiro muiiiito!!!
    Sandra Regina

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  4. Parabéns pelo excelente exemplo de vida. Admirável!
    Vivian.

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  5. excelente, Fernando!
    alyda

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  6. Muito legal saber um pouco da sua história Tolentino! E o mais legal ainda, é você ter a empatia e entender que não existe ninguém melhor do que ninguém! O que existe são oportunidades diferentes. É quase impossível um menino que resida no Lago Sul com uma árvore genealógica completamente estruturada, tendo acesso a culturas, diferentes,a relações vantajosas, a viagens, aos melhores colégios particulares, disputar uma vaga com um menino que sobrevive em Águas Lindas, com uma família desestruturada, honesta, porém mal informada, tendo que se preocupar com o pão de cada dia, e esse mesmo menino ainda tendo que trabalhar, disputar uma vaga na UNB com a mesma condição de igualdade. Ai alguém fala: mas eu conheço um menino que é amigo da minha amiga que passou na UNB e que mora no Sol Nascente.Sim, é natural que no processo alguém se destaque, mas não vivemos de exceções! E sim de proporções! Por exemplo: Em determinado vestibular o colégio GALOIS preencheu 29 vagas de medicina, das 30 oferecidas pela UNB. Direitos iguais, oportunidades diferentes. O que mais me indigna em algumas pessoas é criticar programas como o bolsa família! que está ai pra ajudar essa parte da população desprivilegiada e que a única ajuda que tem é o bolsa família, o PROUNI! Não da pra entender porque pessoas são contra a programas sociais que vão ajudar na vida do seu próximo. Buscando uma sociedade mais igualitária. Eu sou a favor sim de Cotas, porque não da pra dizer que alguém branquinho tem a mesma oportunidade de vida que um "negro pobre", que sofre há mais de 350 anos com o racismo, opressão e humilhação nesse País. Eu me orgulho de apoiar o partido dos trabalhadores por isso! Por essa preocupação e atenção com os mais necessitados! Me orgulho do LULA porque ele mostrou que qualquer um do povo pode ser presidente da república! Elevando a auto estima do povo brasileiro. Um presidente do povo, falando a linguagem do povo. Vamos ajudar o próximo invés de tirar a única coisa que ele tem.
    Parabéns pelo texto Tolentino e eu não sabia que a faculdade nutrição tinha tanto tempo assim, pra mim era uma profissão emergente de uns 25 anos pra cá.

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