terça-feira, 10 de junho de 2014

À SOMBRA DOS CRIOULÕES EM FLOR



Antes da crônica que republico hoje, para que possamos refletir sobre o que o País está vivendo, reproduzo dois trechos de SOMOS BURROS, BURRÍSSIMOS, também de Nelson Rodrigues, publicada em O Globo, em 13 de julho de 1966, após a estreia do Brasil na Copa do Mundo da Inglaterra, quando seleção venceu a Bulgária por 2 a 0.

Amigos, ontem foi um dia santo. O escrete do Brasil fazia a sua primeira audição na Inglaterra. Eu vos direi que a rainha devia ter comparecido ontem, e não na véspera. Pois o divino Pelé jogou como se todos ali fossem rainhas. E se o diáfano espectro de Maria Stuart viu o crioulo, há de ter sussurrado: — “Vai jogar assim no raio que o parta!”.
Mas eu dizia que toda a cidade parou. As nossas madames Bovary, as nossas Anas Karêninas suspenderam seus amores e seus pecados, das três às seis. Os bandidos do Leblon não assaltaram senhoras nem crianças. E o caro Geraldo Mascarenhas, do Banco Mineiro da Produção, deixou de pensar nos títulos que eu já devia ter pago. Ontem, ninguém era credor, ninguém era devedor.
Éramos apenas brasileiros, da cabeça aos sapatos. No centro da cidade, durante o jogo e depois do jogo, toda a cidade se inundou de papel picado. Chovia tudo das sacadas. Quando Garrincha fez o segundo gol, até papel higiênico foi atirado das janelas altas. Era a vitória, ainda a primeira vitória e apenas a primeira vitória. Mas a nação inteira crispou-se de sonho.
Doce escrete do Brasil! Nós o malhamos, aqui, como se ele fosse um judas de sábado de Aleluia. O Maracanã, o Morumbi, o Pacaembu e o Mineirão vaiaram seus craques. E, assim humilhada e assim ofendida, partiu um dia a seleção nacional. Partiu para a gigantesca jornada do Tri. E aconteceu o milagre: a distância aproximou o escrete do povo. Sim, o exílio deu-nos a verdadeira imagem do time brasileiro.
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E onde estão os pessimistas? Dirá alguém que a equipe não esteve perfeita. Mas aí é que está: — não queremos a perfeição, queremos o tricampeonato. Toda obra de arte é imperfeita. E a nossa vitória de ontem foi, justamente, uma obra de arte total. Só espero que cada um de nós faça uma autocrítica exemplar. Precisamos chegar diante do espelho para confessar: — “Nós somos burros, muito burros, burríssimos!”.

À SOMBRA DOS CRIOULÕES EM FLOR

Nelson Rodrigues
Se vocês querem conhecer um povo, examinem o seu comportamento na vitória e na derrota. Há poucos dias, o Brasil derrotou a Inglaterra no Estádio Mário Filho. Conviria comparar os dois comportamentos: o do Brasil vencedor e o da Inglaterra vencida.
Comecemos por nós. Quinta-feira, o Estádio Mário Filho estava abarrotado. Com algum exagero, diria eu que havia gente pendurada até no lustre. Por conta do jogo, a cidade suspendeu todos os pecados. Ninguém matou, nem roubou, nem traiu. Que eu saiba, não houve um único e escasso assalto. Todas as classes, profissões, ideologias, raças e idades juntaram-se no ex-Maracanã.
Houve o jogo e vencemos. A Inglaterra é campeã do mundo e perdeu. Bastaram dois minutos do verdadeiro futebol brasileiro. Em 120 segundos, liquidamos o inimigo. Vejam vocês: — a Inglaterra fazia a pose de melhor futebol do mundo. Os nossos jornais ou afirmavam ou, na pior das hipóteses, imaginavam que o futebol inglês era, sim, o melhor do mundo. Por um funesto lapso, o brasileiro já não se lembrava de que somos os bicampeões.
No vídeo, não havia a menor coincidência entre o que o locutor dizia e o que a imagem mostrava. Por exemplo: — Tostão foi, durante a partida, um estilista da cabeça aos sapatos. Seus passes saíam límpidos, exatos, macios. Deu um banho de bola nos ingleses. E a maioria dos espíqueres exigia, aos brados, a sua substituição. O rádio e a TV não faziam outra coisa senão soluçar elogios aos ingleses. Os visitantes tinham todos os méritos e os brasileiros todos os defeitos.
E, então, comecei a perceber que profissionais, torcedores e simples curiosos estavam ali por diferentes motivos. Uns queriam ver a caveira de João Saldanha; outros, a caveira do Brasil; e ainda outros, as duas caveiras: — do Brasil e do Saldanha. Houve um momento em que me virei para o Marcello Soares de Moura e cochichei-lhe: — “Se o Brasil perder, vão enforcar o Saldanha como um ladrão de cavalos”. O leitor há de perguntar: — “O Brasil é tão impopular no Brasil?”. Realmente, o Brasil é muito impopular no Brasil.
Dirão vocês que, nas arquibancadas e gerais, o povo quis ajudar o escrete. O diabo é que o povo vaia sem querer, vaia automaticamente. Sim, o povo morreria de tédio e frustração se não pudesse vaiar qualquer coisa, inclusive o minuto de silêncio. E portanto o povo, a um só tempo bom e crudelíssimo, ora vaiava, ora aplaudia. Mas eu falo dos que, nas perpétuas, tribunas e cativas, torciam, com o mais límpido, translúcido despudor, pelo inimigo. Falei com vários e os sujeitos estrebuchavam de devoção: — “Como jogam! Como jogam!”. Meu Deus, é um futebolzinho bem aplicado e laborioso o dos ingleses, de uma disciplina tática feroz e uma base física medonha. Só.
Terminou o primeiro tempo com o marcador de 1 x 0 a favor da Inglaterra. O Brasil dera-se ao luxo de perder um pênalti. Na fila do café, um sujeito me agarra e diz: “No segundo tempo a Inglaterra vai melhorar e o Brasil vai abrir o bico”. Entendi o raciocínio do fulano: como há por aqui o Nordeste, o Amazonas, a mortalidade infantil,
teríamos mais dez minutos de fôlego, se tanto.
Mas aconteceu exatamente o inverso: a Inglaterra abriu o bico e o Brasil melhorou. Sim, no segundo tempo a Inglaterra não arriscou um mísero ataque. Agarrou-se a uma retranca ainda mais radical que a do primeiro tempo para salvar o 1 x 0. Dois ou três idiotas da objetividade começaram a achar que até a saúde de vaca premiada era um mito insustentável. Os nossos bons adversários não tinham pernas. E a maioria dos locutores, principalmente os paulistas, continuava a exigir a retirada de Tostão. E, no momento em que mais se exasperavam contra o maravilhoso jogador, Tostão é derrubado, deita-se na grama e faz o gol!
Foi um assombro. Em pé, Tostão já é pequeno, pequeno e cabeçudo como um anão de Velasquez. Imaginem agora deitado. Os ingleses ficaram indignados e explico: — um gol como o de Tostão desafia toda uma complexa e astuta experiência imperial. Um minuto depois, ou dois minutos depois, Tostão dá três ou quatro cortes luminosíssimos e entrega a Jairzinho. Este põe lá dentro. Naquele momento ruía toda a pose inglesa. Era a vitória e pergunto: — como reagimos diante da vitória? Claro que o homem da arquibancada subiu pelas paredes como uma lagartixa profissional.
Mas pergunto: — e os outros? E os outros? A imprensa, o que fez a imprensa? E o rádio? E a TV? Deviam estar virando cambalhotas elásticas, acrobáticas. A Inglaterra pode não ter futebol, mas tem o título. É campeã do mundo. Portanto, vencemos o título. Os grandes jornais não concederam ao feito brasileiro uma manchete de primeira página. O mais dramático é que quase toda a imprensa, rádio e TV trataram de amesquinhar, humilhar, aviltar a vitória. Em São Paulo as Folhas acharam os ingleses “os melhores”. No Rio, a mesma coisa. No subdesenvolvido, a imparcialidade não é uma posição crítica, mas uma sofisticação insuportável. Fingindo-se de justa, quase toda a crônica falada e escrita falsificou o jogo, isto é, descreveu um jogo que não houve.
Vejam agora o comportamento dos ingleses. Ninguém faz um império sem um implacável cinismo. E os nossos adversários portaram-se com um admirável descaro. Vocês viram o que houve no Estádio Mário Filho. A Inglaterra foi um Bonsucesso. Dirão que estou fazendo um exagero caricatural. Mas, se o Bonsucesso tivesse assassinado a pauladas Maria Stuart, se jogasse à sombra de lord Nelson, lady Hamilton e Dunquerque, e se morasse no palácio de Buckingham — o Bonsucesso faria mais que os ingleses. Batidos em dois minutos, submetidos a um olé inédito e ignominioso, faltou aos nossos adversários a nobilíssima humildade da autocrítica. O técnico e os jogadores trataram a derrota como se vitória fosse; esvaziaram a humilhação de todo o dramatismo. Os brasileiros não são de nada. Tostão fez aquele gol espantoso. Deitado, enfiou a bola nas redes. Diante de tamanho feito, os ingleses deviam admitir, de vista baixa: — “Aprendemos mais esta”. Nada disso e pelo contrário: acharam absurdo, indesculpável, que um jogador deitado fizesse um gol. Com o cinismo de grande povo, o inglês inverte magicamente tudo em seu favor. Ao passo que o brasileiro, subdesenvolvido, inverte tudo em seu prejuízo.
Felizmente houve o olé. Foi talvez o momento mais alto do futebol brasileiro. A parte a crônica mais subdesenvolvida condenou o olé como antiesportivo e desrespeitoso. E outros pretendem que foi um recurso tático e, portanto, nada ofensivo: apenas queríamos ganhar tempo e nunca desfeitear o adversário. É inútil mentir. Vamos retirar do olé os bons sentimentos, que não existiram. Houve, sim, uma crueldade jucunda. Os ingleses, batidos e lisamente batidos, tratam de aviltar o nosso triunfo. Dizem que Pelé foi feito pela publicidade, como um refrigerante.
Eis o que eu queria observar: fez bem o escrete brasileiro em tirar sua bela vingança. Os ingleses é que, sem pernas, fisicamente gastos, teriam de fazer cera. Basta lembrar que, para coroamento do olé, quase saiu o terceiro gol, lindo, lindo, do crioulo. Se Pelé tivesse estourado as redes inglesas, havíamos de guardar seu gol numa caixinha de veludo. Nunca se viu, em tempo nenhum, em idioma nenhum, tão formidável explosão lírica e maligna. A seleção campeã do mundo foi posta na roda. Durante três, ou quatro, ou cinco minutos, o adversário correu em vão atrás da bola. E os craques brasileiros trocavam passes irretocáveis. Ninguém descreverá jamais a alegria popular. O berro colossal inundou a cidade: “Olé! Olé! Olé!”.
Saldanha mandava parar. Não queria que o inimigo crescesse na humilhação. Mas a loucura instalara-se no Estádio Mário Filho. Eram 80, 100 mil pessoas ébrias de olé. E, súbito, depois da crudelíssima exibição, Gérson estica uma bola comprida para Pelé. O crioulão dispara e quase, quase entra com bola e tudo. Depois do jogo, a multidão saiu em plena embriaguez. Muitos dias já se passaram. E ainda sentimos a ressaca triunfal do olé.
Publicado originalmente em O Globo, em 17/6/1969

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