segunda-feira, 31 de março de 2014

QUE DIA DOÍDO!


Que dia doído!
Como é que os jovens de hoje acham que tomávamos conhecimento da morte de um amigo, um contemporâneo de faculdade, de um militante de esquerda ou uma liderança do movimento estudantil?
Não aparecia nos jornais ou na TV, é claro. Ali se noticiava os feitos do regime, os resultados econômicos espetaculares. Quando muito, na TV, interrompia-se a programação habitual para mostrar um grupo de “terroristas arrependidos”... As expressões nada convincentes, os olhos baixos, a própria imagem da miséria humana, balbuciavam palavras vãs, redigidas por algum escriba das masmorras.
A informação sobre as mortes nós obtínhamos em rodoviárias, agências dos correios e outras repartições públicas. Cartazes eram expostos com dezenas de pequenas fotos, seus nomes e apelidos. Eram os “procurados”. Era como tínhamos certeza de que “haviam caído”, ou seja, estavam nas mãos dos torturadores. Eu olhava em volta e me dava conta de que aquelas fotos não despertavam a atenção de ninguém.
Um dia, víamos uma cruz rabiscada a caneta sobre a foto de alguém. Afastávamo-nos, chorando sozinhos, com a certeza de que mais um não resistira. A maior parte das vezes era “mais um”, alguém que não conhecíamos, mas nos sentíamos atingidos assim mesmo. Como que recebendo uma punhalada funda. Sabíamos do sofrimento dos que amavam a vítima, do enfraquecimento de nossa luta e, principalmente, que poderia ter sido aquele amigo que estava nas mãos dos torturadores. E às vezes era...
Há outras cenas que nunca esqueço. A cara de medo das pessoas quando nos aproximávamos de alguma aglomeração – uma fila de ônibus, por exemplo – para distribuir a convocação para uma manifestação qualquer. Aos seus olhos, éramos os terroristas.
Por isso, a explosão de alegria, a euforia, quando passaram a surgir, vez ou outra, grupos de dezenas de militantes embarcando para a liberdade. Algum diplomata fora sequestrado por um ou outro grupo de esquerda e estava sendo cumprida a exigência de libertação de uma lista de prisioneiros. Para que se liberasse aquele diplomata, eram ainda publicados manifestos denunciando a existência de uma ditadura no País. A nossa sensação era de vitória, sentindo como nossa a liberdade de cada um deles.
Adiante, viríamos a saber que os militares vingavam-se daquela humilhação com o recrudescimento da tortura sobre os que permaneciam presos.
Eu era um adolescente quando eclodiu o golpe em 31 de março de 1964 e, embora já presidente do grêmio do Colégio de Aplicação (Universidade Federal da Bahia), não tinha exata noção do que sucedia, como também não tinha perfeitamente definida minha formação ideológica.
Em Salvador, cheguei a ver grupamentos militares posicionados em pontos diversos da cidade. Além disso, ouvíamos falar em detenções para interrogatórios nos IPMs (Inquéritos Policiais Militares). Surgiam alguns nomes, como o prefeito de Feira de Santana, Chico Pinto, e Mário Lima, presidente do fortíssimo Sindicato dos Petroleiros da Bahia, o Sindipetro. Vi meu pai, que tinha um passado de militância integralista na juventude, oferecendo apoio e tentando liberar o primo Geraldo Vieira, também dirigente do Sindipetro.
Antes do final do ano, viria a Lei Suplici (Lei no. 4.464/64), colocando na ilegalidade a UNE, que já fora invadida e incendiada logo após o golpe, e as Uniões Estaduais de Estudantes. Junto com elas, normatizava todas as entidades estudantis, das quais se retirava na prática o caráter representativo e impunha um perfil apenas social, cultural e esportivo.
Os anos que se seguiram foram duros. O movimento estudantil e os segmentos mais avançados da sociedade fizeram o enfrentamento com o regime na opinião pública e nas ruas, até que outra data se juntou ao 31 de março, para jamais ser esquecida pelos brasileiros: 13 de dezembro de 1968, dia de edição do AI-5, o ato que aprofundava a ditadura e eliminava os resquícios existentes de democracia.
Ao ler o editorial da Folha de São Paulo de ontem (as organizações Globo já haviam feito antes o seu mea culpa), não é possível deixar de refletir sobre o papel da mídia em todo esse período. De estímulo ao movimento golpista, antes de sua eclosão, e de aplauso entusiástico quando ele ocorreu, com pequenas exceções de órgãos como a Última Hora, fechada dias depois. Nos anos que se seguiram, a postura dominante foi de colaboração ou, quando muito, passividade.
“Isso não significa que todas as críticas à ditadura tenham fundamento. Realizações de cunho econômico e estrutural desmentem a noção de um período de estagnação ou retrocesso”, argumentou a Folha, talvez justificando a sua postura editorial na época. E continua, alegando o crescimento de três vezes e meia da economia em 20 anos, os avanços em infraestrutura de transportes e comunicações, o controle da inflação. Aponta ainda a queda da taxa de mortalidade infantil.
Embora lembre que “metade dos brasileiros vivia em cidades em 1964; duas décadas depois, eram mais de 70%”, não debate suficientemente as consequências em aspectos sociais como a criação de bolsões de miséria em nossas cidades e, naturalmente, os problemas de segurança decorrentes.
A verdade é que crescimento econômico é uma marca quase indissociável das ditaduras. Basta conferir o salazarismo português ou o franquismo espanhol. Ou, de forma mais espetacular, o que o nazismo fez na Alemanha: eliminou o desemprego entre 1930 e 1932 e ampliou o produto nacional em 102% entre 1932 e 1937. Claro que a custa de quê e de quem. Mas a mídia não costuma incorrer em tais relatividades quando analisa a passagem de Stalin pela União Soviética.
No Brasil, em que se dizia ao povo ser “preciso antes crescer o bolo para depois distribuir”, a ditadura mantinha o salário mínimo em US$ 41,69 durante os anos terríveis do general Garrastazu Médici ou em US$ 82,76 quando o presidente era o general João Figueiredo. Vamos anotar para não efetuar outras comparações: Lula deixou o salário mínimo em US$ 331,29 e Dilma já o elevou para US$ 364,25.
Prisões, perseguições, tortura, sequelas físicas e emocionais insuperáveis, mortes, famílias destruídas, órfãos, suicídios, perdas materiais, depreciação moral, carreiras abortadas.
Mas, ninguém se engane. O que a minha geração sofreu, a nossa luta, foi por liberdade, sim. Mas liberdade não é um conceito vazio. E as conquistas sociais que hoje testemunhamos evidenciam: crescimento econômico pode ser alcançado com ditadura ou democracia, mas a luta pela distribuição dos seus frutos carece de liberdade.
Fernando Tolentino

3 comentários:

  1. Excelente! Esse nefasto período só é elogiado por "masmorrentos" e outros que se locupletaram nos ninhos do arbítrio. Quem esteve do outro lado e viveu os "afagos" repudia a ideia de que a solução para os problemas do país esteja na volta ao estado de exceção.

    ResponderExcluir
  2. Seu artigo me transportou para uma época triste e vergonhosa da história do Brasil! Mas a coragem de lutar contra a prepotência e o abuso de poder transformaram em heróis os mártires desse tempo! Parabéns pelo relato!

    ResponderExcluir
  3. O texto é bem intimista. Uma testemunha dos acontecimentos. Mas, confesso que deprime um pouco, pois nos transporta para aquele período triste. Me faz lembrar do Paulinho da Viola, cantando o Chico: Olá, como vai, eu vou indo e você tudo bem...

    ResponderExcluir