Fernando Tolentino
O Brasil está sobressaltado. Há poucos dias, milhões
de brasileiros, perplexos, ainda se negavam a crer no que viam e ouviam. Mas
confissões, indícios e algumas provas encarregaram-se de sepultar, uma a uma,
versões e desculpas colocadas nas primeiras horas.
A onda começou quando o deputado Roberto Jefferson
foi pilhado, com provas irrespondíveis, como piloto de um processo de sucção de
recursos públicos. Incapaz de escapar da condição de réu, o famigerado
presidente do PTB, adotou uma tática esperta. “Sou corrupto, mas quem não é?”
Espargindo denúncias em várias direções, disse o que seria definitivo para
retirá-lo do alvo. Incluiu o PT no esquema de movimentação irregular de
recursos e, para coroar de êxito a sua manobra, cunhou um termo que tornaria
mais charmosas as manchetes dos jornais: “mensalão”.
- O PT?! Jefferson declarou inicialmente que doações
eram feitas a deputados do PL e do PP. Foi enfático em que os parlamentares do
PT não se beneficiaram com os recursos. As
investigações já indicaram que, nos últimos sete anos, saques, repasses e
financiamentos operados pelo “publicitário” Marcus Valério favoreceram
políticos de oito partidos: PT, PTB, PP, PL, PMDB, PPS, PSDB e PFL. Até 2002, o
grosso da movimentação parece ter servido para o financiamento das campanhas
eleitorais tucanas de Minas Grais, em 1998 e 2002. Daí para cá, a maior parte
dos recursos foi destinada a políticos do PL, do PTB e do PP. Mas há também
saques destinados ao PT. Até hoje, salvo a indecorosa apropriação privada de
recursos e mordomias por um punhado de dirigentes (não parlamentares), tudo
indica que a participação dos petistas se deu realmente com o pagamento de
dívidas de campanhas majoritárias.
Isso não importa! Quando alguém lhe diz que sua
jovem vizinha está fazendo a alegria da rapaziada, é possível que isso sequer
lhe chame a atenção. Mas você ficará no mínimo atônito ao ouvir que a freirinha
acompanhou, com um mero olhar, a passagem de um rapaz bonitão.
A verdade é que financiamento não declarado de
campanhas eleitorais não é novidade no Brasil. Apontada por Jefferson na sua
tática diversionista, a distorção foi confirmada por vários dos beneficiários
do esquema.
Praticamente
desconhecidas da opinião pública no restante do País, as empresas de Marcus
Valério têm, em Minas
Gerais, tradição de operação de recursos ilegais em campanhas
eleitorais. É, além disso, sabidamente próxima do PSDB mineiro. Contra a
SMP&B, por exemplo, corre, no STF, processo por recebimento irregular de R$
3 milhões do governo mineiro quando o governador era Eduardo Azeredo, hoje,
presidente nacional do PSDB.
Tudo
começou com a denúncia, em 1999, do deputado estadual Durval Ângelo (PT). Ele
mostrou que Azeredo repassou R$1,5 milhão à Companhia Mineradora de Minas
Gerais, que foram parar na SMP&B de Valério. A destinação dos recursos era
a campanha publicitária do Enduro Internacional da Independência. O
problema é que a Rede Globo de Televisão cobrou apenas R$160 mil pela produção
e veiculação dos anúncios. O mesmo se deu na Companhia de Saneamento de Minas
Gerais: a agência recebeu outros R$1,5 milhão para uma publicidade também
estimada em R$160 mil. Não é grave? Pois, então, fique sabendo que não houve
qualquer veiculação publicitária da Comig e da Compasa como patrocinadoras do
evento. O Ministério Público acatou
a denúncia, assim como o Supremo Tribunal Federal.
O
detalhe nada desprezível é que a empresa
pertencia a sócios de Clésio
Soares de Andrade, então candidato a vice na chapa da reeleição de Azeredo e
hoje vice-governador do também tucano Aécio Neves.
Outra informação interessante
foi levada à CPMI dos Correios pelo deputado federal Henrique Fontana (PT-RS). Lembram
de Ricardo Sérgio de Oliveira, diretor do Banco do Brasil no governo de Fernando
Henrique e coordenador financeiro de várias campanhas tucanas, inclusive a de
José Serra? Pois bem, o prédio hoje ocupado pela SMP&B em Belo Horizonte
pertence a uma empresa de sua propriedade, a Planefin - Serviços, Assessoria,
Planejamento, Administração e Participações S/C Ltda. Quem lhe vendeu o edifício
foi a Petrus - fundo de pensão dos funcionários da Petrobras. Custou R$ 11
milhões, em 1999, em pleno governo de Fernando Henrique.
A
súbita evidência do esquema Valério, transformado em fenômeno nacional,
decorre, portanto, do cruzamento de dois fatos: a sua utilização pela cúpula petista
e a denúncia de Roberto Jefferson. Trazido o PT à cena do crime, a mídia fez a festa.
De
repente, o mal-afamado deputado Roberto Jefferson, um certo Marcos Valério,
figura absolutamente desconhecida há não mais que três meses, e a secretária
Fernanda Somaggio são transformados em astros da televisão brasileira e, em
certa medida, editores dos grandes jornais do País. Os holofotes são dirigidos
para quem quer que tenha uma denúncia contra o Partido dos Trabalhadores, o
governo ou o presidente Lula. Anteontem, foi o até então obscuro Rodrigo Maia;
ontem, o sempre desacreditado ex-deputado Valdemar Costa Neto; entre um e
outro, a esposa dele, o governador de Goiás, a deputada que ele fez secretária,
os próprios envolvidos: Janene, Mabel e ponha etcétera nisso.
Lançada
uma denúncia, ninguém as põe em
dúvida. Ao contrário, os verbos jornalísticos são mais que
significativos. Para as acusações: “revela”, “aponta”, “demonstra”,
“explica”... Para os petistas: “insiste”, “tenta negar”, “esquiva-se”...
De um
lado, minimiza-se a participação de políticos de outros partidos no esquema
Valério ou outros episódios de corrupção. Bastaria lembrar o caso Roberto Brant. Pilhado na lista de recebedores de
Valério, simplesmente confirmou e, reconhecendo que se tratava de financiamento
não declarado de campanha (ou seja, Caixa 2), desafiou que atirasse a primeira
pedra quem não se valeu do mesmo expediente! Mereceu imediatamente o indulto do
PFL, na voz do seu presidente, o senador Jorge Bonhaursen. E, embora desse a
mesma explicação dos demais envolvidos, foi anistiado também pela imprensa,
naturalmente! Desapareceram, como por encanto, do noticiário as referências a
ele e mais dois ex-ministros de Fernando Henrique: Pimenta da Veiga e Cícero
Lucena (acusado de fraudar licitações no governo da Paraíba, onde agora
integrava o secretariado). Sumiram igualmente da mídia
as já comprovadas histórias de corrupção envolvendo o governador tucano de
Rondônia Ivo Cassol.
Ao
mesmo tempo, vão sendo construídas reputações onde (sabe-se ou é possível
supor) o discurso em nada corresponde à prática. Bornhausen, ACM Neto, Álvaro
Dias, Artur Virgílio disputam, aos olhos da imprensa, o troféu de quem seria a
vestal mais imaculada, embora compusessem a linha de frente do governo Collor
ou formassem a barreira intransponível para a realização de CPIs ao longo do
governo de Fernando Henrique. A eles se juntam, sem qualquer constrangimento,
personagens que, por oportunismo ou ressentimento pessoal, deliciam-se com o
sangue do PT: Heloísa Helena (que, depois da sub-militância no PFL e no PSDB,
jamais voltará a ser de esquerda), Denise Frossard (que, por seus
pré-julgamentos, é melhor continuar como deputada, pois jamais poderá voltar a
ser juíza) ou o outro Jefferson (o
senador Jefferson Peres, Hoje falecido), aquele que já declarava o impeachment de Lula irreversível, há
mais de dois meses, quando o seu xará mal ensaiara as primeiras acusações.
É
interessante, mas o comportamento da imprensa parece com o nosso, da esmagadora
maioria da militância do PT. Para nós, petistas, nada mais natural do que o
envolvimento de políticos de outros partidos com corrupção. Crescemos vendo
isso. Entendemos, desde cedo, que a prática da corrupção é quase que da própria
essência daqueles políticos.
O que não entra em nossa cabeça é a corrupção ser
praticada por algum companheiro. E, neste sentido, engana-se redondamente quem
imagina que a crise política atual é absolutamente negativa para o Partido dos
Trabalhadores. Deixe explicar: não há como aceitar petistas terem relações
espúrias com grupos empresariais, obterem financiamento irregular para as suas
campanhas, facilitarem a drenagem ilícita de recursos públicos para empresas
privadas, comprarem apoio parlamentar para projetos governamentais (ainda mais
tratando-se de projetos que não condizem com a linha partidária) e, até,
fazerem apropriação pessoal de recursos obtidos imoralmente.
O problema é que tudo isso aconteceu ou muito disso
pode ter acontecido. E, aí, há três aspectos a ressaltar. O primeiro é que as
denúncias nos deixam mais realistas. Passamos a entender que o PT está no
mundo, integra a mesma sociedade que os demais partidos e, por isso, sofre dos
mesmos males, não há como ser uma ilha de idoneidade. A diferença – que desejamos,
perseguimos e exigimos – é que o PT não contemporize com práticas de corrupção.
Identificada, deve ser investigada e os responsáveis têm que ser afastados do
nosso convívio.
O segundo aspecto é uma decorrência desse. Foi
provado que alguns dirigentes envolveram-se naquelas práticas nefastas sem que
estivessem autorizados pelo PT. Isso significa que o Partido vinha sendo
substituído por um grupo de pessoas que sentiam-se à vontade para decidir em
nosso nome sem consultar o Diretório Nacional, a Executiva e, em alguns casos,
nem mesmo a tendência que controla esses organismos, o campo majoritário. E
essa descoberta se dá às vésperas da escolha das novas direções partidárias.
Quer dizer, temos a oportunidade histórica de repor o Partido nos trilhos.
Por último, a própria guerra da imprensa e dos
políticos conservadores para desmoralizar o PT evidencia quem são os petistas
desencaminhados. Ganhamos a oportunidade de promover uma autêntica faxina. O
Partido diminuirá, perderá milhões de votos, algumas eleições que se afiguravam
vitoriosas. Mas, feito o expurgo, ficará de um tamanho e com uma composição
capazes de promover a reconquista da confiança popular.
Parece que, de repente, os adversários mais
renitentes do PT descobriram isso. Passado o processo, o PT terá afastado os
corruptos, estará inquestionavelmente higienizado e em condições de fascinar os
seus eleitores tradicionais. Mesmo porque os demais partidos continuarão do
mesmo jeito que sempre foram. Por isso, já se nota entre alguns desses mais
ferrenhos adversários (na imprensa ou nos demais partidos) a determinação de
matar o PT. Se possível jogar sal no seu rastro para que não volte a ressurgir.
Senão...
Olham para o PT e lembram daquela velha e grosseira
história da agressão do bêbado à mulher horrorosa: "– Você é feia,
heim?". Ao ouvir a reação ("– Bêbado!"), este se vinga: "–
É, mas amanhã eu estou bom."
Fernando Tolentino, 15 de
agosto de 2005 (circulação original na internet)
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