sábado, 6 de outubro de 2012

A RAPARIGA E A FREIRINHA



Fernando Tolentino
O Brasil está sobressaltado. Há poucos dias, milhões de brasileiros, perplexos, ainda se negavam a crer no que viam e ouviam. Mas confissões, indícios e algumas provas encarregaram-se de sepultar, uma a uma, versões e desculpas colocadas nas primeiras horas.
A onda começou quando o deputado Roberto Jefferson foi pilhado, com provas irrespondíveis, como piloto de um processo de sucção de recursos públicos. Incapaz de escapar da condição de réu, o famigerado presidente do PTB, adotou uma tática esperta. “Sou corrupto, mas quem não é?” Espargindo denúncias em várias direções, disse o que seria definitivo para retirá-lo do alvo. Incluiu o PT no esquema de movimentação irregular de recursos e, para coroar de êxito a sua manobra, cunhou um termo que tornaria mais charmosas as manchetes dos jornais: “mensalão”.
- O PT?! Jefferson declarou inicialmente que doações eram feitas a deputados do PL e do PP. Foi enfático em que os parlamentares do PT não se beneficiaram com os recursos. As investigações já indicaram que, nos últimos sete anos, saques, repasses e financiamentos operados pelo “publicitário” Marcus Valério favoreceram políticos de oito partidos: PT, PTB, PP, PL, PMDB, PPS, PSDB e PFL. Até 2002, o grosso da movimentação parece ter servido para o financiamento das campanhas eleitorais tucanas de Minas Grais, em 1998 e 2002. Daí para cá, a maior parte dos recursos foi destinada a políticos do PL, do PTB e do PP. Mas há também saques destinados ao PT. Até hoje, salvo a indecorosa apropriação privada de recursos e mordomias por um punhado de dirigentes (não parlamentares), tudo indica que a participação dos petistas se deu realmente com o pagamento de dívidas de campanhas majoritárias.
Isso não importa! Quando alguém lhe diz que sua jovem vizinha está fazendo a alegria da rapaziada, é possível que isso sequer lhe chame a atenção. Mas você ficará no mínimo atônito ao ouvir que a freirinha acompanhou, com um mero olhar, a passagem de um rapaz bonitão.
A verdade é que financiamento não declarado de campanhas eleitorais não é novidade no Brasil. Apontada por Jefferson na sua tática diversionista, a distorção foi confirmada por vários dos beneficiários do esquema.
Praticamente desconhecidas da opinião pública no restante do País, as empresas de Marcus Valério têm, em Minas Gerais, tradição de operação de recursos ilegais em campanhas eleitorais. É, além disso, sabidamente próxima do PSDB mineiro. Contra a SMP&B, por exemplo, corre, no STF, processo por recebimento irregular de R$ 3 milhões do governo mineiro quando o governador era Eduardo Azeredo, hoje, presidente nacional do PSDB.
Tudo começou com a denúncia, em 1999, do deputado estadual Durval Ângelo (PT). Ele mostrou que Azeredo repassou R$1,5 milhão à Companhia Mineradora de Minas Gerais, que foram parar na SMP&B de Valério. A destinação dos recursos era a campanha publicitária do Enduro Internacional da Independência. O problema é que a Rede Globo de Televisão cobrou apenas R$160 mil pela produção e veiculação dos anúncios. O mesmo se deu na Companhia de Saneamento de Minas Gerais: a agência recebeu outros R$1,5 milhão para uma publicidade também estimada em R$160 mil. Não é grave? Pois, então, fique sabendo que não houve qualquer veiculação publicitária da Comig e da Compasa como patrocinadoras do evento. O Ministério Público acatou a denúncia, assim como o Supremo Tribunal Federal.
O detalhe nada desprezível é que a empresa pertencia a sócios de Clésio Soares de Andrade, então candidato a vice na chapa da reeleição de Azeredo e hoje vice-governador do também tucano Aécio Neves.
Outra informação interessante foi levada à CPMI dos Correios pelo deputado federal Henrique Fontana (PT-RS). Lembram de Ricardo Sérgio de Oliveira, diretor do Banco do Brasil no governo de Fernando Henrique e coordenador financeiro de várias campanhas tucanas, inclusive a de José Serra? Pois bem, o prédio hoje ocupado pela SMP&B em Belo Horizonte pertence a uma empresa de sua propriedade, a Planefin - Serviços, Assessoria, Planejamento, Administração e Participações S/C Ltda. Quem lhe vendeu o edifício foi a Petrus - fundo de pensão dos funcionários da Petrobras. Custou R$ 11 milhões, em 1999, em pleno governo de Fernando Henrique.
A súbita evidência do esquema Valério, transformado em fenômeno nacional, decorre, portanto, do cruzamento de dois fatos: a sua utilização pela cúpula petista e a denúncia de Roberto Jefferson. Trazido o PT à cena do crime, a mídia fez a festa.
De repente, o mal-afamado deputado Roberto Jefferson, um certo Marcos Valério, figura absolutamente desconhecida há não mais que três meses, e a secretária Fernanda Somaggio são transformados em astros da televisão brasileira e, em certa medida, editores dos grandes jornais do País. Os holofotes são dirigidos para quem quer que tenha uma denúncia contra o Partido dos Trabalhadores, o governo ou o presidente Lula. Anteontem, foi o até então obscuro Rodrigo Maia; ontem, o sempre desacreditado ex-deputado Valdemar Costa Neto; entre um e outro, a esposa dele, o governador de Goiás, a deputada que ele fez secretária, os próprios envolvidos: Janene, Mabel e ponha etcétera nisso.
Lançada uma denúncia, ninguém as põe em dúvida. Ao contrário, os verbos jornalísticos são mais que significativos. Para as acusações: “revela”, “aponta”, “demonstra”, “explica”... Para os petistas: “insiste”, “tenta negar”, “esquiva-se”...
De um lado, minimiza-se a participação de políticos de outros partidos no esquema Valério ou outros episódios de corrupção. Bastaria lembrar o caso Roberto Brant. Pilhado na lista de recebedores de Valério, simplesmente confirmou e, reconhecendo que se tratava de financiamento não declarado de campanha (ou seja, Caixa 2), desafiou que atirasse a primeira pedra quem não se valeu do mesmo expediente! Mereceu imediatamente o indulto do PFL, na voz do seu presidente, o senador Jorge Bonhaursen. E, embora desse a mesma explicação dos demais envolvidos, foi anistiado também pela imprensa, naturalmente! Desapareceram, como por encanto, do noticiário as referências a ele e mais dois ex-ministros de Fernando Henrique: Pimenta da Veiga e Cícero Lucena (acusado de fraudar licitações no governo da Paraíba, onde agora integrava o secretariado). Sumiram igualmente da mídia as já comprovadas histórias de corrupção envolvendo o governador tucano de Rondônia Ivo Cassol.
Ao mesmo tempo, vão sendo construídas reputações onde (sabe-se ou é possível supor) o discurso em nada corresponde à prática. Bornhausen, ACM Neto, Álvaro Dias, Artur Virgílio disputam, aos olhos da imprensa, o troféu de quem seria a vestal mais imaculada, embora compusessem a linha de frente do governo Collor ou formassem a barreira intransponível para a realização de CPIs ao longo do governo de Fernando Henrique. A eles se juntam, sem qualquer constrangimento, personagens que, por oportunismo ou ressentimento pessoal, deliciam-se com o sangue do PT: Heloísa Helena (que, depois da sub-militância no PFL e no PSDB, jamais voltará a ser de esquerda), Denise Frossard (que, por seus pré-julgamentos, é melhor continuar como deputada, pois jamais poderá voltar a ser juíza) ou o outro Jefferson (o senador Jefferson Peres, Hoje falecido), aquele que já declarava o impeachment de Lula irreversível, há mais de dois meses, quando o seu xará mal ensaiara as primeiras acusações.
É interessante, mas o comportamento da imprensa parece com o nosso, da esmagadora maioria da militância do PT. Para nós, petistas, nada mais natural do que o envolvimento de políticos de outros partidos com corrupção. Crescemos vendo isso. Entendemos, desde cedo, que a prática da corrupção é quase que da própria essência daqueles políticos.
O que não entra em nossa cabeça é a corrupção ser praticada por algum companheiro. E, neste sentido, engana-se redondamente quem imagina que a crise política atual é absolutamente negativa para o Partido dos Trabalhadores. Deixe explicar: não há como aceitar petistas terem relações espúrias com grupos empresariais, obterem financiamento irregular para as suas campanhas, facilitarem a drenagem ilícita de recursos públicos para empresas privadas, comprarem apoio parlamentar para projetos governamentais (ainda mais tratando-se de projetos que não condizem com a linha partidária) e, até, fazerem apropriação pessoal de recursos obtidos imoralmente.
O problema é que tudo isso aconteceu ou muito disso pode ter acontecido. E, aí, há três aspectos a ressaltar. O primeiro é que as denúncias nos deixam mais realistas. Passamos a entender que o PT está no mundo, integra a mesma sociedade que os demais partidos e, por isso, sofre dos mesmos males, não há como ser uma ilha de idoneidade. A diferença – que desejamos, perseguimos e exigimos – é que o PT não contemporize com práticas de corrupção. Identificada, deve ser investigada e os responsáveis têm que ser afastados do nosso convívio.
O segundo aspecto é uma decorrência desse. Foi provado que alguns dirigentes envolveram-se naquelas práticas nefastas sem que estivessem autorizados pelo PT. Isso significa que o Partido vinha sendo substituído por um grupo de pessoas que sentiam-se à vontade para decidir em nosso nome sem consultar o Diretório Nacional, a Executiva e, em alguns casos, nem mesmo a tendência que controla esses organismos, o campo majoritário. E essa descoberta se dá às vésperas da escolha das novas direções partidárias. Quer dizer, temos a oportunidade histórica de repor o Partido nos trilhos.
Por último, a própria guerra da imprensa e dos políticos conservadores para desmoralizar o PT evidencia quem são os petistas desencaminhados. Ganhamos a oportunidade de promover uma autêntica faxina. O Partido diminuirá, perderá milhões de votos, algumas eleições que se afiguravam vitoriosas. Mas, feito o expurgo, ficará de um tamanho e com uma composição capazes de promover a reconquista da confiança popular.
Parece que, de repente, os adversários mais renitentes do PT descobriram isso. Passado o processo, o PT terá afastado os corruptos, estará inquestionavelmente higienizado e em condições de fascinar os seus eleitores tradicionais. Mesmo porque os demais partidos continuarão do mesmo jeito que sempre foram. Por isso, já se nota entre alguns desses mais ferrenhos adversários (na imprensa ou nos demais partidos) a determinação de matar o PT. Se possível jogar sal no seu rastro para que não volte a ressurgir. Senão...
Olham para o PT e lembram daquela velha e grosseira história da agressão do bêbado à mulher horrorosa: "– Você é feia, heim?". Ao ouvir a reação ("– Bêbado!"), este se vinga: "– É, mas amanhã eu estou bom."
Fernando Tolentino, 15 de agosto de 2005 (circulação original na internet)

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