Nelson Rodrigues
Hoje, o
meu personagem da semana é uma das potências do futebol brasileiro. Refiro-me
ao torcedor. Parece um pobre-diabo, indefeso e desarmado. Ilusão. Na verdade, a
torcida pode salvar ou liquidar um time. É o craque que lida com a bola e a
chuta. Mas acreditem: — o torcedor está por trás, dispondo.
Escrevi
acima que o torcedor não é um desarmado e provo. De fato, ele possui uma arma
irresistível: — o palpite errado. Empunhando o palpite, dá cutiladas medonhas. Vejam
o primeiro jogo com os paraguaios. Vence os de cinco* e podia ter sido de dez.
Fizemos
do adversário gato e sapato. Ora, para uma primeira apresentação foi magnífico
ou, mesmo, sublime. Mas quando saí do Maracanã, após o jogo, vejo, por toda
parte, brasileiros amargos e deprimidos. Mais adiante, esbarro num amigo
lúgubre. Faço espanto: — “Mas que cara de enterro é essa?”. O amigo rosna: —
“Estou decepcionado com o escrete!”. Caio das nuvens, o que, segundo Machado de
Assis, é melhor do que cair de um terceiro andar. Instantaneamente, vi tudo: —
o meu amigo era ali, sem o saber, um símbolo pessoal e humano da torcida
brasileira. Símbolo exato e definitivo.
Em
qualquer outro país, uma vitória assim límpida e líquida do escrete nacional
teria provocado uma justa euforia. Aqui, não. Aqui, a primeira providência do
torcedor foi humilhar, desmoralizar o triunfo, retirar-lhe todo o dramatismo e
toda a importância. Atribuía-se a vitória não a um mérito nosso, mas a um
fracasso paraguaio. Os guaranis passavam a ser pernas-de-pau natos e
hereditários. Dir-se-ia que, por uma prodigiosa inversão de valores, sofremos
com a vitória e nos exaltamos com a derrota.
E, no
entanto, vejam vocês: — o escrete visitante, que nos parecia de vira-latas,
acabara de vencer e desclassificar a “Celeste” e bater a enfática Argentina.
Mas, para cuspir na vitória brasileira, o nosso torcedor fingiu ignorar a real
capacidade, a indiscutível classe do adversário. Veio o segundo jogo, no campo
careca e esburacadíssimo do Pacaembu. Houve um empate, que teve para o Brasil o
gosto de uma semiderrota. Desta vez, porém, nada de choro, nada de vela. Por
toda parte, só se viam caras incendiadas de satisfação. Com o olho rútilo e o
lábio trêmulo, o torcedor patrício lavava a alma: — “Eu não disse?”. Os
pernas-de-pau não eram mais os paraguaios, eram os brasileiros. E está-se vendo
esta vergonha: — um escrete, que começou vencendo, já é vítima de uma negação
frenética. Há gente torcendo para que ele apanhe de banho na Suécia.
Eis a
verdade, amigos: — tratam do craque, tratam da equipe e esquecem o torcedor,
que está justificando cuidados especiais. Que estímulo poderá ter um escrete
que é negado mesmo na vitória? A seleção não tem saída. Se vence de cinco, se
dá uma lavagem, o torcedor acha que o adversário não presta. Se empata, quem
não presta somos nós. Durma-se com um barulho desses!
Há uma
relação nítida e taxativa entre a torcida e a seleção. Um péssimo torcedor
corresponde a um péssimo jogador. De resto, convém notar o seguinte: — o
escrete brasileiro implica todos nós e cada um de nós. Afinal, ele traduz uma
projeção de nossos defeitos e de nossas qualidades. Em 50, houve mais que o
revés de onze sujeitos, houve o fracasso do homem brasileiro.
A
propósito, eu me lembro de um amigo que vivia, pelas esquinas e pelos cafés,
batendo no peito: — “Eu sou uma besta! Eu sou um cavalo!”. Outras vezes, ia
mais longe na sua autoconsagração; e bramava: — “Eu sou um quadrúpede de 28
patas!”. Não lhe bastavam as quatro regulamentares; precisava acrescentar-lhe
mais 24. Ora, o torcedor que nega o escrete está, como o meu amigo, xingando-se
a si mesmo. E por isso, porque é um Narciso às avessas, que cospe na própria
imagem, eu o promovo a meu personagem da semana.
* Brasil 5 x 1 Paraguai (4/5/1958), no
Maracanã; Brasil 0x0 Paraguai (7/5/1958), no Pacaembu. Jogos preparatórios para
a Copa de 1958.
Publicado
original na Manchete Esportiva, em
17/5/1958
Nenhum comentário:
Postar um comentário