Nelson Rodrigues
Nenhum gordo gosta de ser gordo. Sobe na
balança e tem um incoercível pudor, uma vergonha convulsiva do próprio peso. E,
no entanto, vejam: — pior do que ser gordo é o inverso, quer dizer, pior do que
ser gordo é ser magro. Digo isto a propósito de Feola* , o meu personagem da
semana. Ele está em Araxá e eu aqui. A despeito da distância, porém, é como se
eu o estivesse vendo com a doce, a generosa cordialidade que é o clima dos
gordos de todos os tempos. E aqui pergunto: — um Feola magro teria sido melhor
para o escrete?
Não creio e explico. É preciso ver os magros
com a pulga atrás da orelha. São perigosos, suscetíveis de paixões, de
rancores, de fúrias tremendas. E, até hoje, que eu me lembre, todos os canalhas
que conheci são, fatalmente, magros. Acredito que Feola esteja no profundo e
amargo arrependimento de ser gordo. Mas, se assim for, temos de admitir a sua
ingenuidade. Pois uma de suas consideráveis vantagens de homem e, atrevo-me a
dizê-lo, de técnico está nesta circunstância, que ele deplora e repudia. Numa
terra de neurastênicos, deprimidos e irritados, convém ter o macio, o inefável
humor dos gordos. A banha lubrifica as reações, amacia os sentimentos, amortece
os ódios, predispõe ao amor.
Nós temos, aqui, um preconceito, de todo
improcedente, contra a barriga. Erro crasso. Na verdade, há uma relação sutil,
mas indiscutível, entre a barriga e o êxito, entre a barriga e a glória.
Examinem a figura de Napoleão como imperador. Era ele, na ocasião, algum
depauperado? Não, senhor. Pelo contrário: — os quadros mostram a inequívoca e
imperial barriga napoleônica. E uma das coisas que me levam a acreditar no
Brasil como campeão do mundo é o fato de termos, finalmente, um técnico gordo.
O leitor pode perguntar, com certa irritação:
— e que importância tem que o técnico seja magro ou não? Muita. De fato,
dirigir um escrete, no Brasil, é um dos mais pesados encargos terrenos. O
sujeito está cercado de palpites por todos os lados. Digo “cercado de palpites”
e acrescento: — de palpiteiros. O técnico tem, no mínimo, duzentas irritações
por dia. E, além do mais, não há função mais polêmica. Tudo o que ele faça
suscita debates no país inteiro. Há sujeitos que vivem, dia e noite, tramando a
sua desgraça. E das duas uma: ou ele tem uma inexpugnável sanidade mental ou
acaba maluco e a família não sabe. Só um gordo, repito, possui por natureza a
euforia necessária para resistir às crises de um escrete.
Por exemplo: — observem o comportamento de
Feola na preparação do escrete em Poços de Caldas e Araxá. Nada o perturba,
nada o irrita. Não subiu pelas paredes nenhuma vez, não gritou, não xingou a
mãe de ninguém. Sabemos que há técnicos no Brasil e, por coincidência, magros,
que acham bonito e eficaz tratar o craque a pontapés. Feola, nunca. Podem fazer
todas as ondas do céu e da terra. Ele permanecerá com sua alegria imbatível —
constante, ininterrupta alegria. E esse bom humor quebra e desmoraliza qualquer
resistência. De resto, não desafia, não discute, não ofende. Faz o que quer, e
só o que quer, da maneira mais discreta, insidiosa e, direi mesmo,
imperceptível.
Não se sente a autoridade de Feola que,
entretanto, é militante, irredutível. Sim, amigos: — não esbraveja, não
estrebucha, nem todos percebem que ele é o único que manda, o único que decide.
E ninguém se iluda: — a sua abundante cordialidade de gordo é o disfarce de um
maquiavelismo benéfico e criador. Esse técnico sem histeria, insuscetível de
irritações, fazia falta num futebol de emotivos, de irritados, como o nosso.
Eu disse que Feola não perdia nunca o bom
humor e já retifico: há uma maneira, sim, de enfurecê-lo. É chamá-lo de gordo.
Então, ele pula e esbraveja como um caluniado.
Publicado originalmente na Manchete
Esportiva, em 3/5/1958
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