De que lado está o STF?
Do lado das mulheres que resistem à violência e se revoltam quando ela nos
impede a respiração, atravessa nossa garganta, faz disparar o nosso coração? Ou
lado dos estupradores?
Sei. Estou perguntando
os demais. Há inclusive duas mulheres. A opção de um deles é dispensável
perguntar. Até liberou o facínora Roger Abdelmassih, mesmo condenado a 278 anos
de prisão por 52 estupros e quatro tentativas de abuso a 39 mulheres. Há outro
que não me convenceria de tomar posição distinta da adotada por seu ícone,
ídolo, guru, orientador, sei lá... Mas, e os demais?
Como deve estar
ocorrendo em muitos cantos do País, as mulheres brasilienses e os homens que
lhes são solidários resolveram fazer uma manifestação na manhã deste domingo,
29 de maio: a Marcha das Flores – 30 contra Todas. O grupo desceu do Museu da
República até o STF, para depositar flores aos pés da estátua de Themis, obra
do artista plástico mineiro Alfredo Ceschiatti. A deusa com os olhos vendados e
uma espada. O artista pretendia que a venda nos olhos representasse a
imparcialidade da Justiça e a espada, a sua força, a coragem, a ordem e a regra
necessárias para impor o direito. Decerto não conhecia o supremo, que perdeu inclusive o direito de que eu o escreva com
inicial maiúscula.
Voltemos aos fatos.
A revolta das mulheres
explodiu com o estupro múltiplo, na comunidade de Morro São João, Jacarepaguá
(Rio de Janeiro), quando uma menina de 16 anos foi violentada por mais de 30
elementos que alguns insistem em classificar como homens.
A bestialidade não
ficou nisso. Registraram tudo em vídeo e disponibilizaram em rede social. Dois
exibem os seios e o órgão sexual da menina ainda sangrando: “Essa aqui, mais de
30 engravidou. Entendeu ou não entendeu?”, diz um deles. “Olha como que tá
(sic). Sangrando. Olha onde o trem passou. Onde o trem bala passou de marreta”,
detalha outro. E mais: "Amassaram a mina, intendeu ou não ou
não intendeu? Kkk" (sic).
Ela teria ido a uma
festa e, de lá, para a casa do namorado na sexta, só acordando no domingo
passado.
Outros estupros
igualmente revoltantes foram divulgados, dois deles no Piauí.
Espontaneamente, as
mulheres e movimentos organizados, especialmente de feministas, vêm protestando
desde então pelas várias redes sociais. Há quem fale até em castração dos
estupradores. O mínimo de reação de violência despertada é a entrega deles a
presidiários. Sabem todos que habitualmente os incriminados por estupro são
submetidos na cadeia à mesma violência que cometeram. É a reação dos detentos,
diante da impossibilidade de proteger suas filhas e mulheres que permanecem nas
comunidades. Reação, no entanto, tão bestial quanto a atitude dos estupradores.
Há quem diga que quatro
participantes foram justiçados pelo crime organizado. Penso que é tão absurdo quanto. Um, é preciso
haver uma assassino para que alguém seja executado. Dois, resulta muito fácil
para o estuprador, pois nem tem que suportar o ônus do sofrimento que impôs.
Pra mim, a única
punição realmente possível é a exibição pública de cada um desses meliantes.
Daí, conhecidos de todas as mulheres, suponho que terão de levar o resto de
seus dias sem dividir a cama com ninguém, sem sequer um gesto de carinho, sem o
mínimo de afeto. Só despertarão nojo. E é o que merecem.
A vítima da comunidade
de Morro São João publicou pela internet: "Venho comunicar que roubaram
meu telefone e obrigada pelo apoio de todos. Realmente pensei que seria julgada
mal! Mas não fui. Todas podemos um dia passar por isso...” A menina explicou: “Não,
não dói o útero e sim a alma por existirem pessoas cruéis sendo impunes!”.
O ex-namorado da
moça, o jogador de futebol Lucas Duarte Santos, de 20 anos, apresentou-se à
polícia, acompanhado de Ray de Souza, de idade não revelada, e uma jovem que
não foi identificada, assim como do advogado. A história, como sempre, foi de
uma relação consentida da menina com esse amigo. Lucas teria tido uma relação
com a moça que compareceu para colaborar. São sempre levadas à polícia versões
inverossímeis como esta.
É claro que as
manifestantes e os manifestantes de hoje, no supremo, estávamos naturalmente comovidos com o sofrimento dessa
garota.
Mas não era
exclusivamente disso que falávamos.
A cada 11 minutos, uma
mulher é estuprada no Brasil. São dados do Fórum Brasileiro de Segurança
Pública divulgados no final de 2015, ano em que se registrou 47.646 casos de
estupros no País. Veja-se bem: registrou. Não estamos falando daquela vizinha
ou da pessoa da família de cada um de nós que é molestada por seus companheiros
e não registram qualquer ocorrência. Até por não serem poucos os que as recriminariam
por estarem criando dificuldades para eles. Vocês devem conhecer casos de
filhas que pedem à mãe para não denunciarem os pais violentos.
Nem de longe, esse é
o único tipo de violência sofrido pela mulher brasileira, inclusive com apelo à
sexualidade.
Por incrível que
pareça, na primeira semana do governo provisório de Michel Temer, foi
simplesmente extinto o órgão criado pelos governos anteriores para intervir
nesse tipo de situação, uma reivindicação histórica dos movimentos de mulheres.
Pudera! É um governo incapaz de sentir o que vai no coração de uma mulher. Não
é à toa que é composto inteiramente por homens brancos. E ricos.
A manifestação deste domingo
tinha grande conteúdo simbólico. As pessoas marcharam tranquilamente, armadas
exclusivamente com as suas flores. Mais cartazes e outros instrumentos que
pudessem representar a repulsa vivida atualmente pelas mulheres brasileiras e
pelos homens com elas solidários.
Havia, naturalmente,
bebês nos colos de muitas delas, outros levados em carrinhos, além de outras
numerosas crianças. Havia pessoas idosas também. Assim como cadeirantes.
Encontraram a parte
da Praça dos Três Poderes fronteiriça ao STF cercada por grades, ficando
impedidas de levarem as flores até a estátua. A vedação de acesso era ainda
reforçada pela segurança do Órgão. É claro que protestaram e começaram a lançar
suas flores para dentro do cercado.
Uma das mulheres
conseguiu ultrapassar a grade, recolheu grande número de flores no chão e
dirigiu-se à estátua.
Claro que é
inacreditável. Os seguranças cercaram a estátua, impedindo a aproximação da
manifestante. Supunham que havia risco de a estátua ser agredida, talvez até
estuprada? Como a moça insistiu, foi agarrada e afastada à força.
A massa não suportou
mais essa afronta e simplesmente derrubou as grades. A segurança do Tribunal
investiu contra os que avançavam, basicamente mulheres, lançando gás de pimenta,
logo contando com o apoio de policiais militares. Um deles chegou a esgrimir o
cassetete e agarrar-se com um rapaz que auxiliava na derrubada das grades.
Venceram as mulheres.
Alguma voz lúcida deve ter determinado que cessassem as agressões, embora a
segurança judiciária continuasse ridiculamente cercando a estátua de Themis,
como se estivesse ali os que não se cansam de estuprá-la.
Em volta, uma linda
ciranda ouvia o que os ausentes togados precisavam e mereciam escutar: “Ei,
você vai ver, a mulherada não tem medo de você”; “Não tem justificativa!”; “Lugar
de mulher é onde ela quiser”; “Mexeu com uma, mexeu com todas”; “Fascistas,
machistas, não passarão!”; “Se cuida, seu machista, a América Latina vai ser
toda feminista”. É claro que as mulheres percebem o caráter machista do governo
provisório e do golpe que o instalou, além do seu compadrio com o supremo. Não faltou quem lembrasse que
a condição de mulher foi um dos elementos que levou à verdadeira guerra contra
o governo de Dilma Rousseff e sua deposição. Daí, palavras de ordem como “Fora
Temer”; ”Fora Cunha”; “Volta Querida”; e ”Fora Gilmar, protetor de estuprador”.
Aquelas mulheres
sabem, como nós sabemos, que a marcha deste domingo foi só um momento da sua luta.
O governo provisório vai continuar machista. A julgar pela reação de hoje, a
mais alta instância do Judiciário vai se manter machista. O Congresso vai pelo
mesmo caminho. A grande mídia não mudará sua atitude de disseminar os mesmos valores
de submissão da mulher. A publicidade vai permanecer sexista. Boa parte da
ideologia dominante vai pelo mesmo caminho, repetido o discurso em igrejas, nas
escolas e em grande parte das famílias, como nas relações de trabalho.
A luta não cessará,
pois terá que se dar em todos os ambientes e circunstâncias. Como destacou um
grupo de universitárias, vestidas significativamente com roupas sumárias, para
dar ideia do que sofrem nas relações com os seus próprios professores e
colegas.
A sociedade vai
precisar se definir e assumir de que lado vai ficar, pois a resistência
persistirá.
Fernando Tolentino
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