O Brasil já viveu
diversos períodos de que o povo não gostaria de lembrar. Afinal, desde 1930, foram não menos de 36
anos de ditadura, diante de 50 em que os brasileiros tiveram liberdades
democráticas. Para cada cinco anos de democracia, tivemos mais de três e meio
de períodos autoritários. E as duas ditaduras tiveram fases de recrudescimento
(o Estado Novo e o período que se seguiu ao Ato Institucional nº 5),
evidenciando que não se saciavam com as perdas de liberdade que já haviam
imposto.
Tem mais. Naqueles 50
anos de democracia, presidentes eleitos completaram os seus mandatos em somente
30 anos: o general Eurico Dutra (1946 a 1951); Juscelino Kubitschek (1956 a
1961); Fernando Henrique Cardoso, duas vezes (1995 a 2003); Lula, também por
dois períodos (2003 a 2011); Dilma, no seu primeiro mandato (2011 a 2015). Mais
anos de ditadura que de governos de presidentes eleitos com mandatos
integralmente cumpridos!
Apesar dessa terrível
tendência do País para a instabilidade política, é perfeitamente possível
afirmar que jamais houve motivo para o povo envergonhar-se tanto de si mesmo
quanto hoje.
Explico. Houve sempre
um certo respaldo popular para o desrespeito por mandatos presidenciais.
Getúlio se viu compelido ao suicídio (1954) diante da incapacidade de controlar
as forças políticas reacionárias, com eco nas ruas, deixando uma Carta
Testamento para que cumprisse o que esperava um papel pedagógico definitivo.
Pouco adiantou. João Goulart (que substituíra Jânio Quadros) abandonou o
governo e saiu do Brasil, diante do golpe militar de abril de 1964, temendo que
se desferisse uma guerra civil e derramamento de sangue. O afastamento de
Fernando Collor foi precedido de ampla mobilização popular, motivada pela
insatisfação com o seu governo e pela onda de corrupção que chegava até o
Palácio do Planalto. Mas jamais deu para creditar ao povo a responsabilidade pela
ruptura.
UM NÓ
INSTITUCIONAL
É o afastamento preliminar
de Dilma Rousseff quem finalmente traz ao Brasil a crescente consciência de que
foi justamente o voto popular que deu causa a um impasse aparentemente incontornável.
Na sequência de dois
governos abertamente neoliberais (Fernando Henrique), os brasileiros escolheram
um governo de compromisso prioritariamente social e desenvolvimentista, com
Lula, que já lhes propunha essa saída desde 1989, em quatro pleitos sucessivos.
Seu primeiro mandato
foi tumultuado pelas denúncias do chamado Mensalão e pela forte oposição da
mídia. Mas o apoio popular e sua habilidade pessoal para a negociação política
permitiram conduzir o governo, mesmo com uma maioria parlamentar conservadora
nas duas casas do Congresso Nacional. Com isso, conseguiu a reeleição, embora
tendo que ceder espaço ao crescimento das forças conservadoras no Legislativo.
Ainda assim, concluiu o segundo período com grande prestígio pessoal, suficiente
para eleger Dilma Rousseff, virgem em experiência eleitoral. O fato é que ela
ainda se deparou com menos apoio parlamentar, tendo que fazer composições com
forças de questionável lealdade, movida quase exclusivamente por interesses
fisiológicos. Como se não bastasse, seu mandato foi abalroado pelos efeitos da
crise internacional de 2008, que contaminaram também os países para os quais o
Brasil voltara suas relações comerciais.
Identificando uma
liderança politicamente mais frágil que Lula e aproveitando-se das dificuldades
econômicas, a mídia recrudesceu o ataque, levando a que Dilma se reelegesse em
condições muito mais difíceis que no pleito anterior. Sua vitória em segundo
turno, com uma vantagem de 3,5 milhões de votos, representou uma diferença de
3,28%, o que animou as forças conservadoras a que jamais reconhecessem a
derrota.
Na verdade, por trás
desse inconformismo estava muito mais que a pequena margem de votos de
vantagem. Os adversários tinham clareza das armas de que dispunham: (1) um
respaldo razoável no Poder Judiciário, especialmente no TSE e no STF, e
praticamente absoluto no Tribunal de Contas; (2) a possibilidade de articular
uma consistente maioria parlamentar na Câmara e no Senado; (3) a integral
solidariedade da grande mídia, determinada a corroer a popularidade de Dilma.
O projeto era claro e
era confessado publicamente por diversas lideranças políticas. Tratava-se de
impedir que a presidenta concluísse o seu mandato ou, no mínimo que
“sangrasse”, ficando sem qualquer possibilidade de governar.
Pedido de recontagem de
votos, questionamento das contas da campanha, atrasos na votação do orçamento.
Sucessivamente, eram colocados os obstáculos a que o governo seguisse o seu
caminho. Vamos lembrar que o PSDB, partido do candidato derrotado, encomendou
um parecer sobre “impeachment” ainda nos primeiros dias do segundo mandato de Dilma.
Diante de uma crise econômica de proporções consideráveis, a oposição
congressual sequer teve constrangimento de anunciar sua tática para implodir a
capacidade de Dilma governar. O presidente da Câmara definiu o que chamou de
“pauta bomba”, ou seja, a aprovação de medidas legislativas voltadas para
inviabilizar o andamento do governo.
Paralelamente,
desenvolviam-se as investigações da Operação Lava Jato. Embora não tenha havido
qualquer sinal de envolvimento da presidenta, o discurso oposicionista e a
pauta da mídia sinalizava justamente o contrário, além de insistentemente
buscar responsabilizá-la pelo insucesso na compra da refinaria de Pasadena.
Em outras palavras, o
governo se via na obrigação de negar compromissos assumidos em campanha, na
medida em que buscava enfrentar a crise econômica com ajustes orçamentários; o
Congresso impedia que esse ajuste efetivamente se exercesse, levando ao
aprofundamento da crise; a opinião pública era diariamente contaminada pela
ideia de que a presidenta estivesse diretamente ou indiretamente envolvida com
corrupção; enorme esforço político e midiático foi desenvolvido no sentido de
promover manifestações de massa contra o governo, nas quais se propunha
declaradamente a deposição da presidenta. É significativo que a primeira e
maior delas tenha se dado em março de 2015, apenas dois meses após a posse.
Com apenas um ano e
quatro meses, Dilma teve iniciado o seu processo de afastamento pela Câmara,
pretextado por crimes de responsabilidade que efetivamente não cometeu.
O então presidente da
Câmara, Eduardo Cunha, não teve o menor constrangimento de anunciar que
admitiria o andamento do processo de “impeachment” caso lhe fossem negados na
Comissão de Ética os votos do PT para determinar o arquivamento do seu próprio
processo de cassação.
Em entrevista coletiva
desta terça-feira, voltou a evidenciar essa atitude ao declarar: “Tenho a
consciência tranquila que livrar o Brasil da Dilma e do PT será uma marca que
terei a honra de carregar”.
Foi uma entrevista de
um moribundo, que não conseguiu atrair um só dos mais de 200 deputados que
mantinha sob o seu comando. Anunciara como se, ali, fosse desencadear efeitos
avassaladores. Não se sabe a que preço, “a montanha pariu um rato”. Só o rato.
Se algum tumulto
causar, não foi nessa entrevista, que sequer justificou holofotes e plantonistas
escalados para acompanhá-la.
A VERGONHA
ABORTOU O PARLAMENTARISMO
A eleição de 2014
deixou escrachadamente clara uma tendência que já se insinuava desde a primeira
vitória de Lula, em 2003. O voto progressista para presidente não se reflete no
que a população dá ao compor a Câmara e o Senado.
A Câmara tem deputados
de 31 partidos e esses parlamentares pouco ou nada tem a ver com a maior parte
dessas agremiações. Eles se articulam, em verdade, por compromissos com grupos
que os elegeram ou financiaram as suas campanhas. É notória a força da articulação
das bancadas ruralista, evangélica e ligada à indústria de armas (conhecida como
BBB, numa alusão a Bíblia, Boi e Bala), que se comprometem com pautas de interesse
dos três grupos, tornando-a quase imbatível na atual legislatura. Muitos deles
teriam sido eleitos com apoio (inclusive financeiro) de Eduardo Cunha, o que o
fez virtual líder desse conjunto de forças. Embora com atuação menos agressiva,
é fato que, entre os 81 senadores, nada menos de 32 são vinculados ao setor
agropecuário e 36 ao empresarial, além de quatro evangélicos.
A clareza desse viés
profundamente conservador leva a que esses agrupamentos de parlamentares e os
grupos que os respaldam queiram tirar o máximo proveito possível da
circunstância de praticamente sufocarem as forças políticas que ousam
enfrentá-la. E têm pressa.
Ao lado da já
amplamente conhecida expectativa de que a saída de Dilma Rousseff viabilizasse
a paralisação das investigações da Lava Jato, a outra vertente é essa ansiedade
pela destruição de direitos sociais e trabalhistas. O terceiro fator é o
interesse de grupos internacionais na exploração das jazidas petrolíferas do
Pré Sal, aliado ao de grupos empresariais que querem desguarnecer o Estado de
instrumentos públicos como os seus bancos, a ECT e até a EBC.
É dessa convicção de que
os interesses conservadores conseguem controlar mais efetivamente o Poder
Legislativo que nasceram as propostas de retomada do parlamentarismo, inclusive
as de subordinação do Executivo ao Legislativo que pontuam a Ponte para o Futuro, programa político assumido
por Michel Temer.
Contraditoriamente, as
mesmas investigações que foram utilizadas para tornar simpático à população o
processo de afastamento de Dilma são as que vão jogando por terra os devaneios
parlamentaristas.
De um lado, é
inescapável à percepção da sociedade que nenhuma mácula existe a toldar moralmente
a biografia de Dilma.
Não é nem minimamente próxima
disso a imagem das forças que lhe subtraíram, ao menos provisoriamente, o
poder. Até parece que os membros do governo Temer foram escolhidos nas listas
de envolvidos nos vários escândalos de corrupção ora sendo apurados. Uns por
serem diretamente citados em delações premiadas como beneficiários de propinas,
outros como em articulações para a paralisação das investigações, já foram
quatro os nomes de primeiro escalão afastados nos primeiros 40 dias de governo:
ministros do Planejamento, da Transparência, da AGU e do Turismo. Tem-se como
certo que o da Educação não tarda a cair e avolumam-se as acusações contra o
secretário de Governo e o ministro da Casa Civil.
Não deve ficar por aí. O
líder do governo na Câmara é indiciado até por homicídio, o do Senado é citado
na Lava Jato. O próprio presidente interino é referido 24 vezes na propalada
delação premiada de Sérgio Machado, ameaçando disputar o pódio com o senador
Aécio Neves (PSDB), e já foi confirmado que é sua a voz de conversa que negou
ter tido com o denunciante.
Antes de tudo, a imagem
maior de Eduardo Cunha, surgido como sócio (talvez majoritário) do governo
provisório, de quem hoje Temer parece querer se desvencilhar, ao menos aos
olhos do povo. Ainda não está claro se é “a outra” ou “a ex”, uma figura
normalmente incômoda na política.
O governo chegou ao
desplante de nomear para secretário de Futebol do Ministério dos Esportes o
proprietário do helicóptero apreendido com 430 kg de pasta básica de cocaína em
novembro de 2013, chegando a ensejar a piada de que será abolido o exame
anti-dopping no futebol nacional.
As bancadas da Câmara e
do Senado que apoiam o afastamento de Dilma estão repletas de políticos
indiciados, acusados, investigados ou claramente suspeitos.
À medida que as
investigações avançam nos diferentes casos de corrupção, aumenta o número de
envolvidos, desmentindo cabalmente a impressão tão disseminada antes do início
do processo de afastamento de Dilma de que o seu partido tivesse “inventado” a
corrupção. Nesta semana, a Operação Turbulência, da Polícia Federal,
aproxima-se bastante do financiamento da campanha de Eduardo Campos (PSB), de
quem Marina Silva herdou a vaga na disputa de 2014.
A delação de Sérgio
Machado, que foi senador e líder do PSDB e diretor da Transpetro por indicação
do PMDB durante longos dez anos, não deixa dúvida de que são antigas as raízes
da corrupção ligada à política. Ele fala em 1946 e não deixa dúvida de que a propinorreia
não apenas havia com Fernando Henrique, mas se manteve nos governos de Lula e
Dilma justamente por conta da absorção de partidos que, antes, apoiavam os
tucanos e mudaram de lado para manter espaços no governo.
Por fim, fica
cabalmente demonstrado que a força da proposta de golpe ainda se mantém porque
os políticos sobre os quais se concentra a responsabilidade de afastar Dilma
definitivamente do seu mandato não se vergaram à evidência de que não se engana
mais a população. E mais: o governo Temer não hesita em atraí-los com o mesmo
tipo de negociação que levou aos horrores ora investigados.
O que se mostra é um
verdadeiro mercado persa, tudo indicando que senadores assumem ares de indecisão
para aumentar o valor do resgate, repetindo a postura de bancadas de deputados
às vésperas da decisão sobre a admissibilidade do processo. O governo Temer diz
sim. Há poucos dias, o senador Romário (PSB-RJ), o esperto baixinho do futebol,
reviu sua posição de indeciso após apresentar ao presidente o pleito da presidência
de Furnas. Nesta semana, vazou a exigência do senador Hélio José (PMDB-DF) de
indicar os titulares de 34 cargos, inclusive o presidente de Itaipu e um
diretor do Banco do Brasil, entre outros.
Os próprios
parlamentares parecem já terem claro que a opinião pública não veria com bons
olhos entregar o governo pra esse tipo de negociata e o “parlamentarismo” vai
celeremente caminhando para o brejo.
Fernando Tolentino
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