Caiu o último véu.
Desabou o último pilar do que a direita brasileira vem chamando de “impeachment”,
em um acintoso jogral com a grande mídia. Agora, nem pretexto existe mais para
o afastamento de Dilma Rousseff.
A própria perícia do
Senado concluiu que não houve “pedalada fiscal”, o que vem sendo repetido à
exaustão pela defesa de Dilma, pelos deputados, senadores e partidos alinhados
com o seu governo constitucional e com a mídia que não se associou para
derrubá-lo. Com isso, sobrou a acusação de que houve três decretos da
presidenta que violaram a meta fiscal fixada para 2015. Como bem lembra o deputado
Paulo Pimenta (PT-RS), essa meta foi reajustada no final do ano. Ou seja, essa
alegação também não fica em pé.
Em outras palavras, era
a hora de a ministra Rosa Weber berrar, do outro lado da Praça dos Três Poderes:
“Dilma está certa. É golpe”.
Seria somente um
exercício de autoridade, pois nada teria de inédito. O mundo todo já sabia,
como reiteram os grandes títulos jornalísticos do Exterior e, talvez por isso,
seu colega de Corte Gilmar Mendes tenha se sentido tão à vontade para deixar
isso patente na Suécia, ao avaliar que o crime de responsabilidade é um
detalhe. Se Dilma tivesse mais votos no Congresso, isso nada significaria. Não
bastante, o senador pedetista Zezé Perrella, um dos entusiastas do golpe (o
mesmo que ainda deve uma explicação pública sobre o helicóptero apreendido com
perto de meia tonelada de pasta básica de cocaína), anunciou que o problema
dela não foi qualquer crime de responsabilidade, mas a dificuldade de
articulação com os parlamentares. A senadora Rose de Freitas, com a autoridade
de líder do governo provisório, se disse uma estudiosa da questão e lembrou que
faz parte da Comissão de Orçamento, concluindo, sem qualquer hesitação: "Não
teve esse negócio de pedalada.”
Portanto, não era uma mera
ridicularia dos deputados ao votarem a admissibilidade do processo de
afastamento. Eles só podiam mesmo votarem pelos motivos mais estranhos à
discussão: família, filhos, netos, a cidade em que algum nasceu, o falecido
pai, o pai preso dias depois, o marido encarcerado na manhã seguinte, sei lá mais
o quê. Exceto crime de responsabilidade.
A animar aquela
votação, argumentos tão imorais quanto o de que se encarregou Sandro Mabel,
oferecendo 142 cargos no governo Temer para cada voto de deputado do PR favorável
ao afastamento. Não foram poucas as denúncias de um caixa de 500 milhões de
quatro federações de indústrias para facilitar essas adesões à “tese” e uma
verdadeira ponte aérea de jatinhos criada para que ninguém faltasse à sessão de
17 de abril, que tanta repercussão negativa causou no mundo inteiro.
Tudo isso antecedido de
uma estruturadíssima campanha midiática em que se passava à sociedade a
impressão de que o “impeachment” seria em função da existência de casos
reiterados de corrupção no âmbito do governo.
Para estimular os
deputados a votarem contra uma presidenta recém-eleita com 54,5 milhões de votos,
grandes concentrações populares foram articuladas ao longo de 2015. Afinal,
mesmo em uma Câmara controlada por um acordo entre os partidos derrotados nas
urnas e uma imensa bancada orquestrada por Eduardo Cunha, era preciso haver a
presunção de aceitação popular da decisão de grande parte dos deputados.
A perfeita sincronia
entre a seletividade das investigações da Operação Lava Jato – e ainda mais dos
vazamentos de informações sigilosas do processo – com manchetes uníssonas da
grande mídia assegurou a sensação de que o Brasil exigia o “impeachment”. Não
faltando facilitações nada republicanas ou democráticas, como roletas livres em
metrôs e até alteração de horários em partidas de futebol. No fim, até
campanhas publicitárias de empresas como a rede Habbib’s, chegando a fazer
promoção para quem fosse participar dos atos.
Não adiantou. Mal
Michel Temer instalou-se na Presidência, caiu a máscara da turma que fez o
golpe. A nitidez com que isso foi escancarado não deixou qualquer dúvida para a
população, especialmente aqueles que foram às ruas, juntando-se aos
oportunistas que queriam apenas anular a eleição de 2014 e implantar o programa
então apresentado pelo PSDB.
Não era possível
esconder os sinais. As primeiras medidas, tomadas ou anunciadas como se o
governo emergisse de uma eleição e o presidente não fosse temporário e tivesse
composto a chapa escolhida pelo povo em 2014 com programa diametralmente inverso.
O surgimento de delações em ficava evidente que os maiores corruptos estavam no
poder. Provisoriamente, circunstância que, por sinal, fazem questão de não
admitir. A revelação de que essa gente conspirava justamente por perceberem que
Dilma no poder era uma garantia de que não ficariam impunes. As demissões
decorrentes do fato de ser impossível esconder isso. A clareza da promiscuidade
entre o novo governo e Eduardo Cunha. Tudo temperado pela mesquinhez de Temer, dando
a clara ideia de que não conseguira superar o fato de ter sido ofuscado durante
mais de sete anos por uma liderança feminina.
Estava na cara. Ali
estava apenas um ajuntamento de nazi-fascistas, plutocratas, latifundiários, grileiros
de terras indígenas, corruptos, aliados de traficantes e sobretudo hipócritas.
todos com profundo desprezo pela lei e hospedados sob a consigna Ordem e Progresso.
Junto a eles, uns poucos aproveitadores de maiorias eventuais e políticos
pusilânimes, amedrontados diante do poder dessa gente e, especialmente, do
apoio dos grandes grupos de mídia e de uma nova ordem judicial, em que o crime
e sua negação parecem depender apenas da sigla partidária de quem o pratica ou
com quem o suspeito se relacionou.
E agora? Pretexto não
há mais. Não é possível enganar o mundo, não dá pra deixar alguma versão
assimilável pelas futuras gerações e, pior, nem mesmo o tão dócil povo
brasileiro é possível engrupir. Sumiram as camisas da CBF, foi guardado o que
restou das panelas, declaram-se arrependidos até militantes de grupos que
incrementaram manifestações em 2015.
De saldo para os
setores dominantes da sociedade apenas o fato de que essa gente migrou do tenaz
oposicionismo para a absoluta descrença com a política. E uma maioria
parlamentar sem independência suficiente para romper com os compromissos dos
seus financiadores, em meio aos que fingem-se indecisos para leiloarem
cinicamente os seus votos.
Diante disso, com a
altivez de quem se impôs à mentira e a grandeza de quem pode colocar o Brasil e
a sociedade como sua prioridade, Dilma acena com o entendimento. Reúne as suas
forças e avalia qual o caminho que pode reabrir as portas do futuro, sem danos
tão irreversíveis como os prometidos pelo governo provisório.
Quais serão as
consequências desse gesto?
Fernando Tolentino
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