É possível imaginar situação de maior
degradação do que a relação entre torturador e torturado?
Se quiserem passar ao largo da realidade
política brasileira dos anos recentes, busque o caso de tortura mais
repetidamente narrado da história da humanidade: a paixão de Cristo.
Lembrem da caminhada com a cruz ao ombro e
os pés descalços, das chibatadas, da perfuração de pés e mãos durante a
crucificação, de fazer o corpo se sustentar nos cravos, da lancetada no peito.
Imagine o sangramento da pele a se colar no manto que o cobria. Não lhe foi
apenas imposto o sofrimento físico. Foi coberto com um manto por ter sido antes
desnudado. Foi ridicularizado, sendo-lhe colocada uma coroa de espinhos para
provocar o riso da multidão. Foi-lhe dado fel quando disse ter sede e foi
pregada na cruz a inscrição injuriosa de rei dos judeus. Assim teria sido o
último dia de Jesus.
Passados cerca de dois mil anos, dá pra
imaginar a que extremos de sofisticação chegou a tortura. Relatos nos chegam de
todo o mundo, mais marcantes e profusamente lembrados os perpetrados pelo
regime nazista contra os seus opositores, os comunistas ou judeus, ciganos,
poloneses e todos os que tenham caído em desgraça.
Não foi diferente durante a ditadura do
Brasil, especialmente na primeira metade dos anos 70.
Sei o quanto foi duro tomar conhecimento do
que sofreram amigos, companheiros de luta, conhecidos ou quaisquer outras
vítimas desse processo. É ainda hoje quase insuportável ouvir ou ver
depoimentos de quem passou por isso. Para que não pareça um sentimento diante
do padecimento de amigos, sofri recentemente a dor de alguém socialmente muito
distante de mim e por quem não tenho qualquer afetividade, a jornalista Mirian
Leitão. Ao ler seu relato, doeu-me a aflição de um ser humano.
Ao contrário do que consta na narrativa
cristã, a tortura aplicada a militantes políticos no Brasil tinha teoricamente
o objetivo de obtenção de informações. Por isso, ainda mais sofisticada.
Torturadores eram treinados, inclusive com apoio externo. Belo Horizonte chegou
a ter um logradouro batizado como Rua Dan Mitrioni, uma demonstração de
gratidão a um “especialista” trazido dos Estados Unidos para aperfeiçoar os
métodos de tortura.
É importante entender o comportamento do corpo
após algum tempo de pau de arara,
que é uma invenção nacional. O mínimo que se pode dizer é que a dormência toma
conta dos membros, o sangue se concentra na cabeça e já não se consegue fechar
a boca. Pense na cadeira de dragão,
energizada para provocar choque elétrico em diferentes partes do corpo, imagine
o afogamento, às vezes por mergulho, em outras com um pano embebido em água. Ou
a variante com um saco plástico fechado envolvendo a cabeça. Ou a asfixia, como
morreu Stuart Angel, obrigado a respirar a descarga de um jipe. Surras,
quebras de dedos e membros, extração de unhas, submissão à fome e à sede.
Ao lado disso tudo, a tortura psicológica,
somada à física. Como teria sido feito com Jesus, a primeira providência era o
desnudamento do preso. Isolamento, inclusive com a perda de acesso à luz, de
modo a que o preso não tivesse mais noção de tempo.
O MACHISMO COMO INSTRUMENTO DE TORTURA
Nos casos de prisioneiras, a violência era
sempre acompanhada de exacerbação da humilhação, inclusive com apelo ao sexo
forçado ou a demonstração de que isso poderia ocorrer a qualquer momento. Uma
forma de demonstrar que, ali, além do poder irrecorrível da força brutal da
repressão, havia a submissão antropológica da mulher pelo homem. Quanto mais
isso angustiasse a vítima, melhor. A raiva acumulada pela circunstância levaria
a prisioneira mais facilmente ao desespero, ao mais absoluto desequilíbrio emocional.
Por isso a prisão simultânea de parentes ou
entes queridos e sevícias de um diante do outro, até a introdução de objetos
nos corpos. Enfim, a busca do aniquilamento de toda resistência física ou
moral.
É indispensável chamar a atenção para o
fato de que se pretendia obter informações, sendo óbvio para o prisioneiro que,
caso se fragilizasse, poderia causar a morte de companheiros ou pelo menos
levá-los a viver o mesmo vexame. A tortura psicológica ocorria com a utilização
dos interrogadores com papeis diferenciados. Ao lado de um extremamente
violento, havia o que simulava solidariedade, buscava angariar a confiança do
interrogado, prometia alívio.
Posso assegurar que toda essa rememoração
do que li e ouvi é pouco diante do que realmente ocorreu nos presídios em que
eram jogados os presos políticos. Não conheço ninguém que saísse íntegro, sem
precisar recorrer a tratamentos psiquiátricos, a cuidados médicos especiais.
Muitos jamais se recuperaram, como Luís Medeiros, jovem estudante de engenharia
pernambucano, preso por jagunços e entregue à polícia após horas de
espancamento, pendurado de cabeça pra baixo. Na Rua da Aurora (Recife), para
onde foi removido, diariamente torturado, acabou não resistindo à tentação de saltar
por uma janela aberta. Paraplégico, terminou seus dias em Brasília. A Dra.
Abigail Feitosa, ginecologista, de tradicional família nordestina, aderiu à
resistência à ditadura, sensibilizada pelas sequelas que viu e tratou a pedido
de seu marido, Ribamar, militante de esquerda. Posteriormente, viria a se
tornar deputada federal, com importante presença na bancada que lutou para
superar a ditadura.
OS PERFIS DOS DOIS FINALISTAS
Para que remexer em tudo isso, lembrar um
passado tão revoltante, hoje felizmente superado?
É impossível deixar de identificar os
protagonistas deste segundo turno, ambos originários de Minas Gerais, sem
levá-los àquele terrível período da história recente do Brasil.
De um lado, Dilma Rousseff, uma
ex-militante de esquerda, prisioneira por três anos, barbaramente torturada.
Conseguiu reconstruir sua vida no Rio Grande do Sul, lá se graduou, aperfeiçoou
a sua formação e, com ela, voltou à política, ascendendo em funções técnicas no
aparelho de Estado, até se eleger presidente da República.
O adversário prefere ser lembrado como neto
de Tancredo Neves. Seria injusto deixar de trazer à luz sua trajetória, para
que ninguém o tenha como um lutador da resistência democrática, ainda que de figurino
conservador, como o de Ulysses Guimarães.
Tancredo integrou o antigo PSD, foi
ministro duas vezes durante o governo democrático de Getúlio Vargas, teve papel
decisivo na crise de 1961, quando uma tentativa de golpe militar pretendeu
impedir a posse de João Goulart após a renúncia de Jânio Quadros. Foi um dos articuladores
da saída parlamentarista e acabou se tornando o primeiro ministro até 1962.
Durante a ditadura, foi deputado pelo MDB, sempre ligado à ala mais
conservadora. Tentou ocupar o terreno da conciliação com o regime quando da
imposição de criação de novos partidos. Criou o PP, mas os militares não
aceitaram sequer correr o risco de deferir um espaço ao seu partido, forçando-o
à incorporação pelo PMDB. Frustrada a emenda com que se pretendia reinstaurar
eleições diretas para a Presidência, Tancredo colocou-se como alternativa para
a disputa no colégio eleitoral, derrotando o candidato Paulo Maluf. Não chegou
a governar, vítima de doença que impediria a sua posse. Com esse episódio,
Tancredo passou para a história como um dos principais artífices da
redemocratização.
Aécio Neves, convenientemente, destaca essa
descendência, colocando em segundo plano a figura do pai, o deputado Aécio
Cunha, integrante destacado do partido que representava a ditadura no
Parlamento, a ARENA. Quando Dilma amargava a prisão política, ele ocupava um
cargo no gabinete do pai. O gabinete era em Brasília e o pai da bancada de
Minas Gerais, mas Aécio vivia e estudava no Rio de Janeiro.
Aécio nasceu e se criou em um ambiente em
que se respirava política nos dois ramos da família, o pai nas entranhas da
ARENA e o avô como importante membro do PMDB, prestigiado por interlocução
constante com expoentes do regime. Debruçado nessa destacada janela, podia
observar com atenção o que se passava nas hostes governistas e testemunhar a
perseguição aos adversários.
O privilégio dessa posição no cenário
político foi ingrediente fundamental para a sua carreira: deputado, governador,
senador, candidato a presidente. É toda essa carga de experiência que coloca em
jogo na disputa.
AS ARMAS DE CADA UM
Especialmente no segundo turno, algo me
impressiona ao ver Dilma e Aécio encarando-se nos debates. Quatro anos após
eleger-se para o primeiro mandato, percebo Dilma com muito mais informação e
capacidade de articulá-las ao debater com Aécio que na disputa anterior.
Paradoxalmente, vejo nela agora certo abalo emocional que não revelava ao
confrontar José Serra, por sinal um político com muito mais quilometragem que
Aécio.
Aécio não é mais que um fedelho diante de
Serra, Dilma tem clara noção da superioridade de seus conhecimentos e de sua
argumentação, além de que já teve nos debates do primeiro turno oportunidade
suficiente para constatar a falta de conteúdo do adversário.
O que incomoda Dilma, a ponto de
desestabilizar o seu emocional?
Cada um de nós se dá o direito de opinar
sobre o que ela deveria fazer para pôr o oponente em seu lugar. Afinal, em
política, como em futebol, qualquer um se sente à vontade para sentar na
cadeira do técnico e dar o seu pitaco.
Caso estivesse na equipe que a prepara para
os debates, eu não teria dúvida: buscaria apoio psicológico, promoveria
sucessivos laboratórios colocando-a diante de um personagem que assumisse o
papel de um torturador debochado, aquele que ocupava o espaço de desestabilizar
emocionalmente a prisioneira política, ferindo-a moralmente, impondo a
superioridade pela força e pela falta de escrúpulos.
Só isso explica, para mim, que Dilma não
reduza Aécio ao seu verdadeiro tamanho e, mais, revele certa angústia por ter
de enfrentá-lo. Suspeito que Dilma veja nele a figura daquele torturador
desprovido de limites morais. Mais que isso, não estou certo de que, sabendo o
que foi o passado dela, Aécio não tenha sido preparado justamente para
desestruturá-la emocionalmente, usando de tais artifícios. Afinal, seria essa a
única forma de não evidenciar a sua própria inferioridade.
Fernando Tolentino
Gostei muito Tolentino. Vou compartilhar para divulgação. Parabéns! Texto muito bom, com motivação histórica.
ResponderExcluirFernando Tolentino, seu ótimo artigo faz importantes considerações históricas e políticas e ressalta algo extremamente pertinente: o perfil psicológico e o histórico dos dois candidatos e o comportamento de ambos no enfrentamento dos debates .Tenho observado em todos eles, o estilo AGRESSIVO de Aécio Neves, o qual utiliza de um artifício extremamente autoritário em sua fala, "CENSURANDO a PRESIDENTE , quando esta lhe apresenta dados oficiais, fazendo o incauto telespectador ser levado a concluir que o candidato mais forte é o que "bate" no adversário, e neste caso, um home batendo numa mulher! Causa-me muita repugnância assistir estes debates entre os dois e , depois de ler seu importante artigo, compreendi melhor o por quê..Não é a qualidade nem o conteúdo do discurso que diminui Dilma ante a platéia e sim a a face OPRESSORA e AGRESSORA de seu interlocutor...
ResponderExcluirTexto incrível, sensível e perspicaz. Não duvido nada que esse pessoal maldoso da turma do moço tenha programado esse ar de deboche e machismo pra lembrar nossa presidente das torturas que ela viveu sim.
ResponderExcluirNos resta esperar que ela o esmague, a ele e a tudo que ele representa.
Dilma é muito polida, humana... Mas tem que arrasar com esse "tucanoboy" no debate! (Vai arrasar tbém através de sua reeleição e de seu sucessivo governo- este se Deus quiser!)
Excelente texto. Nos debates tenho sentido essa impressão das salas de tortura que você bem colocou aqui. Esse texto deve ser amplamente divulgado. Abraços e Parabéns.
ResponderExcluirFernando, li com muito gosto seus três últimos textos. Não tinha ainda acessado o seu blog. Fiquei bastante feliz com a consistência das informações e da sua qualidade, o que aliás, não é novidade. Curiosamente quando vi os últimos debates, a sensação que tive foi parecida com a que vc descreve no seu artigo. A desestabilidade de Dilma diante da frieza, do cinismo e das injúrias arquitetadas pelo seu algoz Aécio, foi como se estivesse rebobinando um filme de terror que ela gostaria de ter apagado definitivamente da sua memória.
ResponderExcluirFelizmente, para a felicidade de muitos, a verdade prevaleceu e o Brasil se soergueu com Dilma reeleita.