Que dia doído!
Como é que os jovens de
hoje acham que tomávamos conhecimento da morte de um amigo, um contemporâneo de
faculdade, de um militante de esquerda ou uma liderança do movimento
estudantil?
Não aparecia nos
jornais ou na TV, é claro. Ali se noticiava os feitos do regime, os resultados
econômicos espetaculares. Quando muito, na TV, interrompia-se a programação
habitual para mostrar um grupo de “terroristas arrependidos”... As expressões
nada convincentes, os olhos baixos, a própria imagem da miséria humana,
balbuciavam palavras vãs, redigidas por algum escriba das masmorras.
A informação sobre as
mortes nós obtínhamos em rodoviárias, agências dos correios e outras
repartições públicas. Cartazes eram expostos com dezenas de pequenas fotos,
seus nomes e apelidos. Eram os “procurados”. Era como tínhamos certeza de que
“haviam caído”, ou seja, estavam nas mãos dos torturadores. Eu olhava em volta
e me dava conta de que aquelas fotos não despertavam a atenção de ninguém.
Um dia, víamos uma cruz
rabiscada a caneta sobre a foto de alguém. Afastávamo-nos, chorando sozinhos, com
a certeza de que mais um não resistira. A maior parte das vezes era “mais um”,
alguém que não conhecíamos, mas nos sentíamos atingidos assim mesmo. Como que
recebendo uma punhalada funda. Sabíamos do sofrimento dos que amavam a vítima, do
enfraquecimento de nossa luta e, principalmente, que poderia ter sido aquele
amigo que estava nas mãos dos torturadores. E às vezes era...
Há outras cenas que
nunca esqueço. A cara de medo das pessoas quando nos aproximávamos de alguma
aglomeração – uma fila de ônibus, por exemplo – para distribuir a convocação
para uma manifestação qualquer. Aos seus olhos, éramos os terroristas.
Por isso, a explosão de
alegria, a euforia, quando passaram a surgir, vez ou outra, grupos de dezenas de
militantes embarcando para a liberdade. Algum diplomata fora sequestrado por um
ou outro grupo de esquerda e estava sendo cumprida a exigência de libertação de
uma lista de prisioneiros. Para que se liberasse aquele diplomata, eram ainda
publicados manifestos denunciando a existência de uma ditadura no País. A
nossa sensação era de vitória, sentindo como nossa a liberdade de cada um deles.
Adiante, viríamos a
saber que os militares vingavam-se daquela humilhação com o recrudescimento da
tortura sobre os que permaneciam presos.
Eu era um adolescente
quando eclodiu o golpe em 31 de março de 1964 e, embora já presidente do grêmio
do Colégio de Aplicação (Universidade Federal da Bahia), não tinha exata noção
do que sucedia, como também não tinha perfeitamente definida minha formação
ideológica.
Em Salvador, cheguei a
ver grupamentos militares posicionados em pontos diversos da cidade. Além
disso, ouvíamos falar em detenções para interrogatórios nos IPMs (Inquéritos
Policiais Militares). Surgiam alguns nomes, como o prefeito de Feira de
Santana, Chico Pinto, e Mário Lima, presidente do fortíssimo Sindicato dos
Petroleiros da Bahia, o Sindipetro. Vi meu pai, que tinha um passado de
militância integralista na juventude, oferecendo apoio e tentando liberar o
primo Geraldo Vieira, também dirigente do Sindipetro.
Antes do final do ano,
viria a Lei Suplici (Lei no. 4.464/64), colocando na ilegalidade a UNE, que já
fora invadida e incendiada logo após o golpe, e as Uniões Estaduais de Estudantes.
Junto com elas, normatizava todas as entidades estudantis, das quais se
retirava na prática o caráter representativo e impunha um perfil apenas social,
cultural e esportivo.
Os anos que se seguiram
foram duros. O movimento estudantil e os segmentos mais avançados da sociedade
fizeram o enfrentamento com o regime na opinião pública e nas ruas, até que
outra data se juntou ao 31 de março, para jamais ser esquecida pelos
brasileiros: 13 de dezembro de 1968, dia de edição do AI-5, o ato que
aprofundava a ditadura e eliminava os resquícios existentes de democracia.
Ao ler o editorial da
Folha de São Paulo de ontem (as organizações Globo já haviam feito antes o seu mea culpa), não é possível deixar de
refletir sobre o papel da mídia em todo esse período. De estímulo ao movimento
golpista, antes de sua eclosão, e de aplauso entusiástico quando ele ocorreu, com
pequenas exceções de órgãos como a Última Hora, fechada dias depois. Nos anos
que se seguiram, a postura dominante foi de colaboração ou, quando muito,
passividade.
“Isso não significa que
todas as críticas à ditadura tenham fundamento. Realizações de cunho econômico
e estrutural desmentem a noção de um período de estagnação ou retrocesso”,
argumentou a Folha, talvez justificando a sua postura editorial na época. E
continua, alegando o crescimento de três vezes e meia da economia em 20 anos, os
avanços em infraestrutura de transportes e comunicações, o controle da inflação.
Aponta ainda a queda da taxa de mortalidade infantil.
Embora lembre que “metade
dos brasileiros vivia em cidades em 1964; duas décadas depois, eram mais de 70%”,
não debate suficientemente as consequências em aspectos sociais como a criação
de bolsões de miséria em nossas cidades e, naturalmente, os problemas de
segurança decorrentes.
A verdade é que
crescimento econômico é uma marca quase indissociável das ditaduras. Basta conferir
o salazarismo português ou o franquismo espanhol. Ou, de forma mais
espetacular, o que o nazismo fez na Alemanha: eliminou o desemprego entre 1930
e 1932 e ampliou o produto nacional em 102% entre 1932 e 1937. Claro que a
custa de quê e de quem. Mas a mídia não costuma incorrer em tais relatividades
quando analisa a passagem de Stalin pela União Soviética.
No Brasil, em que se
dizia ao povo ser “preciso antes crescer o bolo para depois distribuir”, a
ditadura mantinha o salário mínimo em US$ 41,69 durante os anos terríveis do general
Garrastazu Médici ou em US$ 82,76 quando o presidente era o general João
Figueiredo. Vamos anotar para não efetuar outras comparações: Lula deixou o
salário mínimo em US$ 331,29 e Dilma já o elevou para US$ 364,25.
Prisões, perseguições,
tortura, sequelas físicas e emocionais insuperáveis, mortes, famílias
destruídas, órfãos, suicídios, perdas materiais, depreciação moral, carreiras
abortadas.
Mas, ninguém se engane.
O que a minha geração sofreu, a nossa luta, foi por liberdade, sim. Mas
liberdade não é um conceito vazio. E as conquistas sociais que hoje testemunhamos
evidenciam: crescimento econômico pode ser alcançado com ditadura ou
democracia, mas a luta pela distribuição dos seus frutos carece de liberdade.
Fernando Tolentino
Excelente! Esse nefasto período só é elogiado por "masmorrentos" e outros que se locupletaram nos ninhos do arbítrio. Quem esteve do outro lado e viveu os "afagos" repudia a ideia de que a solução para os problemas do país esteja na volta ao estado de exceção.
ResponderExcluirSeu artigo me transportou para uma época triste e vergonhosa da história do Brasil! Mas a coragem de lutar contra a prepotência e o abuso de poder transformaram em heróis os mártires desse tempo! Parabéns pelo relato!
ResponderExcluirO texto é bem intimista. Uma testemunha dos acontecimentos. Mas, confesso que deprime um pouco, pois nos transporta para aquele período triste. Me faz lembrar do Paulinho da Viola, cantando o Chico: Olá, como vai, eu vou indo e você tudo bem...
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