Causou e continua
causando justa e enorme indignação uma das respostas obtidas em pesquisa realizada
pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) e divulgada no final de
março na qual se analisa a visão do brasileiro sobre a mulher: nada menos de 65%
dos entrevistados disseram concordar com a frase “mulheres que usam roupas que
mostram o corpo merecem ser atacadas”.
São contraditórias as
respostas aos questionamentos do levantamento do Sistema de Indicadores de
Percepção Social (SIPS). É esmagadora (91%), por exemplo, a posição favorável a
que sejam presos os maridos que batem em mulher, mas 63% dos 3.810 pesquisados concordam
que “casos de violência dentro de casa devem ser discutidos somente entre
membros da família”.
A indagação que mais
contundente para a parcela conscientizada dos direitos da mulher, porém, foi a que
a coloca em nítida condição de objeto passivo do desejo masculino ainda que em situação
de violência.
Cresci em Salvador,
cidade cosmopolita, mas plantada no Nordeste, e me acostumei a ver isso como
dominante entre homens e mesmo mulheres, confirmando a máxima marxista de que “a
ideologia dominante é a ideologia da classe dominante”. Piadas, troças, análises
de casos ocorridos no dia a dia, tudo apontava para essa ideia de que não é
dado à mulher o direito de decidir sobre o seu próprio corpo.
A começar pela
imposição de que as mulheres só saíssem do domínio (masculino) do pai quando
entregues ao casamento. Em outras palavras, ao domínio (masculino) do marido.
Nessa minha velha
Bahia, admitia-se (até judicialmente) que os homens “lavassem a honra com
sangue”, ou seja, eliminassem fisicamente as suas mulheres se essas cometessem
adultério. Era um conceito, digamos assim, pacífico.
A bem da verdade, palavra absolutamente inapropriada, convenhamos. Pacífico
como sinônimo de universalmente aceito, pois nada menos pacífico para a pobre
mulher que escolhia o caminho de uma aventura fora do casamento, como era comum
entre os homens.
A distorção tinha
força tão grande antes da chegada dos ecos da revolução sexual dos anos 60 que
não restava alternativa a uma mulher com o casamento desfeito senão migrar para
o Rio de Janeiro. Vivendo na Bahia, era senso comum que o assédio sexual fosse
natural.
Imaginava-se soterrada
essa visão retrógrada. A de que um casamento poderia ser desfeito se constatado
que a mulher não fosse virgem. Ou chegar ao ponto, como em certos grotões, de o
orgasmo da esposa não ser admitido pelo marido por poder significar que já conhecesse,
antes, o prazer do sexo...
A surpresa explodiu
como uma bomba, ainda mais ao se verificar que também mulheres contribuíram
majoritariamente para esse entendimento de que o homem teria um certo direito a
atacar mulheres que exponham suas formas.
Há três décadas,
ainda era comum mulheres não se sentirem à vontade para denunciar agressões
sexuais por serem responsabilizadas por esse assédio ao chegarem em delegacias
de polícia. Não foi outra a razão para a criação de delegacias especializadas,
em que elas tivessem a garantia do atendimento por policiais do sexo feminino e
não precisassem se envergonhar da violência sofrida.
Diante do
conhecimento dessa visão reacionária ainda forte na nossa sociedade e da grita,
principalmente das mulheres mais conscientes, postei uma foto no meu perfil de
Facebook em que fiz vigorosa defesa do direito da mulher com relação ao seu
corpo e me surpreendi. Em menos de 30 minutos de um horário de pouco acesso, multiplicaram-se
as curtidas, felizmente também de amigos homens, além de comentários e compartilhamentos.
“Respeite
minha filha, minhas netas, minha namorada, minhas amigas, todas as mulheres que
eu amo e as demais também. Cada uma delas é a senhora exclusiva do seu corpo e
de suas vontades. Mulher alguma merece ser estuprada.”
Mas quero dizer que
observei posições também conservadoras no meio dos protestos de algumas amigas.
Ao reagirem contra
aquela manifestação clara de submissão da mulher e seu corpo aos desejos
masculinos, deu para identificar quem pretenda retirar da mulher a condição de
um ser admirável e desejável. E de poder livremente exercer o prazer de expor atributos
de que, afinal, foi dotada, seja pela graça de Deus ou da natureza. Como se possível
imaginar mulheres sem corpo, admiráveis exclusivamente por seus valores
espirituais.
Mais justo seria combinar
que todas as mulheres – como os homens, ora! – têm algo de belo de que se orgulhar
e se privilegiar nas suas relações sociais ou na sensualidade.
Como prefiro admirar
mulheres e com elas me encantar, sou dos que encontram em todas o que despertar
atenção e interesse. São as pernas, os olhos, o cabelo, as mãos? O busto, a
bunda, os ombros? É o olhar? São os gestos ou é a voz? É o andar? Nada disso, é
o conjunto?
Preste atenção e verá
que mulher alguma deixará de merecer a atenção de alguém, atrair
o desejo.
Melhor entender que a
mulher é naturalmente formosa, especialmente aos olhos dos homens. E entender
que as mulheres têm o mais legítimo direito de vestir-se, adornar-se, trabalharem
gestos, olhares, movimentação do corpo, tudo, com a intenção de serem vistas
como belas e sensuais. Ou pelo menos agradáveis.
Podem ter certeza de
que os homens também tratam de si pensando em ser admirados e vistos como
atraentes.
O que não dá a
ninguém o direito de pôr mais que os olhos nos outros. Além disso, o que existe
é o direito da mulher e do homem de fazerem (e combinarem) as suas escolhas.
Fernando Tolentino
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