Ontem seria um dia para
ser esquecido.
Pulei da cama às 3 da
madrugada, em Santiago, perdi um tempo enorme procurando uma embalagem térmica
perdida pelo hotel, saí sem café (claro), quase perdi o horário de apresentação
no aeroporto (duas horas antes), fiz os procedimentos de embarque para Salvador
e decidi desistir e voltar direto para Brasília. O solícito funcionário da TAM
acertou, pelo rádio, minha retirada da mala que já seguia para o embarque e
orientou como recebê-la. Daí, fui de balcão em balcão, carregando a pesada
bagagem de mão, e sofri longas esperas até desistir, comprar a nova passagem e
embarcar para Brasília, não sem antes fazer meia dúzia de comícios de protesto
diante das filas de embarque da empresa. Enquanto aguardava o embarque, novos
comícios para os passageiros em volta. Não poderia deixar de escutar, de uma
senhora de meia idade: “E esse é o país que quer fazer a Copa!” É claro que
reagi: “Isso não tem nada a ver com Copa, mas com irresponsabilidade. Essa empresa sequer é mais realmente nacional, mas
vinculada à LAN, chilena, como a Avianca é colombiana e a Azul, estadunidense.
Perdi a bagagem aqui, mas poderia ter sido em Santiago, onde perdi minha
embalagem térmica, ora!” Não deixei de comparar aeroportos e hotéis brasileiros
com os da Argentina, que fez a Copa em 78 e lembrar que o Brasil fez a de 50.
Não é brincadeira me acomodar (se
é possível dizer isso) nos minguados espaços dos aviões. No de Santiago a São
Paulo fui colocado naquela poltrona encostada no banheiro, com recosto que não
reclina. Acharam pouco e puseram ao meu lado um rapaz com pernas maiores que as
minhas. Foi tão complicado que as próprias comissárias resolveram me tirar
dali, pois o que sobrava de minhas pernas e ombros atravancava o corredor.
Fiquei em uma poltrona de meio, evidentemente apertada, mas estaria no lucro
ainda assim se não fosse a decepção do alemão ao ver que perderia a poltrona
livre ao seu lado. Sequer mereci resposta para o “bom dia”, mas nem posso me
queixar, pois posso assegurar, por experiências antes vividas, que ontem foi o
seu dia de banho.
No trecho de Guarulhos
a Brasília, outro aperto, agora incomodado pelo corpulento jovem à minha
frente. De tanto pular na cadeira, parecia fazer sexo sozinho durante o voo.
Posso atestar a resistência da poltrona. Cheguei à noite. Literalmente
esgotado. Insone, um dia de muita luta, cansaço, incertezas, aporrinhação.
Encontrei em Brasília um
aeroporto diferente do deixado há duas semanas. Ainda carente de organização,
mas lindo, espaçoso, inteiramente servido por esteiras. Centenas de pessoas
disputavam os espaços, aparentemente também extasiadas. À frente dos amplos
espaços, várias faziam fotos, que devem estar espalhadas por aí nos perfis de
facebuque, no tuíter ou outras redes. Parecia que a reforma se dera nesses
quinze dias. No balcão de reclamação da TAM, me foi mostrado no computador que
a bagagem chegaria a Salvador uma hora depois. Fiz os registros da queixa e
recebi a promessa de que a receberia hoje, em casa.
A manhã de hoje serviu
para arrumar tudo em casa e rememorar a viagem de férias. Tenho grande apego
por Santiago, aonde vou sempre que posso. Cerro San Cristobal, subida e descida
em funiculares, Mansão La Chascona (Pablo Neruda), Cerro Santa Lucia, passada
pelo zoológico, a galeria do Bela Vista, uma noite de música chilena, salmão,
congrio e vinho nacionais, cervejas idem, inclusive as várias artesanais,
caminhadas por ruas e avenidas largas, com prédios recuados (como nas grandes
cidades brasileiras dos anos 60), arborizadas com plátanos, o chão coberto das
folhas do outono.
O paraíso? Não. O Chile tem seus problemas, como o Brasil. Não têm alguns dos nossos, mas têm outros. Podemos circular nas ruas com as câmeras penduradas no ombro sem risco de assalto. O povo é acolhedor, gosta de dar informações e as dá adequadamente, até falando devagar, pois percebem nossa nacionalidade antes que digamos uma só palavra. Sua geografia é extremamente peculiar: 4270 km de norte ao sul (nosso litoral tem 7.408 km), mas a extensão entre leste e oeste não ultrapassa 177 km. A mesma que separa Goiânia e Brasília por estrada: 173 km. Ou menos que a distância rodoviária entre Rio de Janeiro e Juiz de Fora, que é de 180 km. Por isso, é difícil generalizar os problemas nacionais, como no Brasil. Punta Arena fica no extremo sul, à margem do Estreito de Magalhães, diante da Terra do Fogo, disputando a condição de cidade mais próxima do Polo Sul e a 2.197 km de Santiago em linha reta. Saímos de lá às 8 horas da manhã com 5 graus de temperatura e encontramos 26 graus em Santiago no final da tarde.
Estivemos em Santiago, Valparaíso (na época do incêndio), Viña del Mar, Puerto Montt, Puerto Varas, Frutillar, Punta Arenas, Puerto Natales. Subimos ao Vulcão Osorno e lá pegamos no máximo 2 graus em meio à neve ou no trajeto de teleférico. Flagramos animais incomuns no Brasil, como guanacos e condores, vimos fazendas de salmões, cenários maravilhosos de pré-cordilheira nevada e geleiras, diante de espelhos d’água absolutamente plácidos. Mas – se quiserem podem denunciar que quero estragar o prazer – não dá pra deixar de lembrar que é impossível um banho de mar. Água com temperatura negativa ou muito próxima de zero, ainda que sob o sol, e o piso pedregoso só me remetiam ao mar cálido da Bahia e suas areias brancas sob coqueiros, além de uma temperatura média de 26 a 28 graus ao sair da água. Andamos em rodovias bem cuidadas, mas vimos várias com obras de recuperação conturbando o tráfego e outras ainda sendo implantadas. Gasolina a cerca de R$ 3,45 em Santiago e R$ 3,60 no sul. O aeroporto de Santiago está em obras, como os nossos.
A alimentação é extremamente diferente, no padrão europeu, com entrada, salada e prato principal separados. Prato principal sem acompanhamento. Nada de feijão, farinha nem pensar, eventualmente arroz, pedido separadamente, e batata. Raramente suco de frutas natural. Quase sempre “frutilla”. No Brasil eu não tomo esse suco, pois inventaram tanto remédio com gosto de morango que passei a achar a fruta com gosto de remédio. Saudade de guaraná! Muito vinho, cerveja e às vezes água tônica.
Se a capital tem baixo
índice de umidade (como Brasília), o índice pluviométrico de Puerto Montt sequer
se mede em milímetros, como no Brasil, mas em metros, tanta é a chuva que cai
sobre a cidade. Pegamos sol todos os dias e o guia sugeriu que jogasse na
megasena ao voltar. Em Santiago, praticamente é impossível ver a Cordilheira
dos Andes, pois a poluição não é imaginável sequer para um paulistano. Os
chilenos convivem bem com os cachorros na rua. Chamam a atenção por serem
muitos, andarem aos bandos e não poucos demonstrarem alguma pureza racial. Mas
é preciso dizer que embora seja comum os chilenos os abandonarem quando
crescem, eles são alimentados por populares e não há qualquer sinal de
agressividade mútua. Os cães só não se conformam com a presença de motos, que
perseguem. Triste é ver, especialmente à noite, os pobres animais padecendo de
frio. Abandono de cachorros não é um problema específico do Chile. Em Paris,
ocorre de serem abandonados quando as famílias saem de férias. Segundo me
disseram os chilenos, são tímidos os programas públicos para animais de ruas,
como a castração para evitar a reprodução excessiva. Não há também programas de
acolhimento ou recolhimento. Os da foto são de Puerto Montt, mas os fotografei
em Santiago e Punta Arenas.
Os sinais de pobreza
são semelhantes aos nossos, com vendedores, malabaristas e músicos nos
semáforos e alguns pedintes pelas ruas. O vandalismo, também. Sejam pichações
ou depredação de sinais de rua, muitos sendo cobertos por propagandas. Flagrei
vários desses na Avenida Pio Nono, que dá acesso ao Cerro San Cristobal.
O trânsito, com ruas
espaçosas e menos carros (não há indústria chilena de automóveis), tem períodos
curtos de engarrafamentos. Para isso contribuem as alternativas de transporte
de massa. Para se ter uma ideia, Santiago tem 103 de metrô para 5,4 milhões de
habitantes na região metropolitana, enquanto os 20 milhões de paulistanos
(Grande São Paulo) têm 75 km.
Os
chilenos estão ligados na Copa. Muita publicidade em torno dela, vinculando-as
a vários programas. Às vezes parece engraçado como o Brasil é mais querido por
outros povos da América Latina que pelos brasileiros. Eles, por exemplo, estão
animados porque a Copa é perto do Chile. Torcem para o campeão ser algum país
da América Latina.Como eu. Cada um preferindo o seu, claro. Eles têm uma
ressalva: "Menos os argentinos." Quando estive em Cuba, o Brasil
havia acabado de conquistar a realização de Olimpíadas em seu próprio
território e os cubanos vibravam com isso como se fosse ocorrer lá. Alguns me
cumprimentavam por isso e comemoravam uma Olimpíada no hemisfério sul e na
América Latina. Só no Brasil se identifica esse baixo astral com pessoas
lamentando-se por sediar a Copa e as Olimpíadas!
Fiquei
todo o sábado retido em casa por culpa da TAM. A funcionária me ligou na
primeira hora da manhã e disse que a mala já estava em Brasília e seria
entregue “no horário comercial”. Como eu alegasse que precisaria sair, fazer a
feira do sábado, almoçar e tomar várias outras providências, perguntou minha
hora preferida e garantiu que a entrega se daria ainda pela manhã. Não saí pela
manhã, não pude sair para almoçar, passei toda a tarde preso em casa, até que
perdi a paciência e me mandei para o aeroporto. Já entrava lá, mais de 20
horas, quando me ligou o funcionário escalado para a entrega. Estava na porta
de minha casa. Voltei e peguei a mala. Realmente intacta. Disse-me que só lhe
foi passada para ser entregue às 16 horas! Nossa sensação é esquisita: ao ver a
mala de volta, quase esquecemos o aborrecimento da espera...
Dia
inteiro em casa, não faltou tempo para lembrar da mulher do comentário sobre o
Brasil e a Copa. Que vontade de encontrá-la para pedir desculpas. Lembrei das
expressões de quem estava em volta. Duas senhoras, amigas dela, demonstravam
com os olhos que me davam razão e balançavam as cabeças em sinal de aprovação.
Outros também se interessaram e saí do bate-boca convencido de que realmente não
podia ficar calado. E acho que não podia mesmo. Mas a verdade é que a mulher
não precisa da descompostura. Entendi que é apenas alguém que desperdiça
sábados e domingos diante da TV, ouvindo coisas como esta (“Imagina na Copa!).
As pessoas que a cercam certamente não têm coragem de romper o hábito de uma
novela atrás da outra, noites e noites seguidas, até não lhes restar um pingo
de capacidade de compreender o mundo. De pelo menos entenderem que o Brasil é
um país como os outros.
Os
problemas estão por aí. As soluções dependem de entendermos que podemos
adotá-las. Fazemos parte de um mundo em crise e essa crise bate à nossa porta.
Porque não é tão grave quanto na Europa? Naqueles países que sempre aprendemos
a ver como superiores? O que não faltou foi enfrentamento. Nunca se investiu
tanto em educação, em saúde, jamais houve um programa que levasse médicos à
periferia e pequenas cidades do país, as universidades deixaram de ser
instituições ilhadas nas capitais, as vagas em programas de bolsas para
estudantes carentes se multiplicaram exponencialmente, nos de formação de mão
de obra também, programas sociais ajudaram a tirar 40 milhões de brasileiros da
miséria, o salário (em dólares) multiplicou-se mais de quatro vezes, ressurgiu a indústria
naval, várias refinarias são construídas, a água é levada ao sertão nordestino,
investe-se em hidrelétricas como não ocorria há anos, há formidáveis
investimentos em mobilidade urbana, foi paga integralmente a dívida externa... Mas
o crescimento do PIB é tímido. A questão é que, se tímido, está entre os que
mais crescem no mundo em crise, como as taxas de desemprego são também as
menores.
Para
que tudo isso ocorresse, nosso povo não deu muito mais do que o voto. O voto e
a esperança. E alguém duvida, hoje, que ao menos uma parte dessa capacidade
brasileira de resistir à crise mundial vem de uma sucessão de megaeventos
conquistados nos últimos anos? Copa das Confederações, Festival da Juventude, Olimpíadas
Militares, Copa do Mundo, Paraolimpíadas, Olimpíadas. Ufa! Não há um ano em que
o Brasil não esteja no centro das atenções do mundo, atraindo estrangeiros para
cá e criando um lastro para que essa corrente se mantenha. A verdade é que esse
intenso calendário e a Copa do Mundo em particular são poderosos propulsores de
atividade econômica e têm permitido que nossa economia se imponha e nossos
programas sociais mantenham o mesmo vigor de antes da crise mundial.
É
com essa capacidade de resistir que não se conformam os propagadores do Imagine na Copa!, do É este o País que quer fazer a Copa?, do
Não vai ter Copa.
Espero que a pobre
mulher tenha conseguido romper com a visão deprimida da parte mais passiva de
nossa população, a que não consegue desviar os olhos da telinha e espiar pela
janela. E, percebendo que somos os grandes beneficiários dessa agenda, que
tenha condições de dizer, com convicção e alegria, como acreditam os chilenos e
os povos de vários outros países da América Latina: ESTE É O PAÍS QUE VAI FAZER
A COPA.
Fernando Tolentino
Perfeito!
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