quinta-feira, 14 de abril de 2016

O AVESTRUZ TOGADO E A REPÚBLICA DOS INDICIADOS

Esses dias trazem à lembrança as crianças, nos seus primeiros anos, cobrindo inocentemente os olhos e imaginando que, por isso, não estão sendo vistas. É exatamente como o avestruz togado tão bem concebido pela artista plástica @nanamada, que o produziu e gentilmente cedeu para ilustrar este artigo.
Seria a própria imagem da mais alta Corte do País?
Estamos em um momento daqueles em que ninguém é capaz de prever o que viveremos daqui a poucos dias. Como na madrugada que antecede uma batalha final de uma guerra tradicional, as forças entrincheiradas diante do campo de luta, ambas sem conhecerem os recursos do inimigo. Coisa de filme da já distante adolescência.
Raras certezas, portanto, com relação ao futuro imediato.
É esse tipo de momento que mais excita os colegas jornalistas e outros analistas políticos. A tentativa de decifrar o que será o dia seguinte.
De um lado, o governo e os partidos que ora compõem a base aliada articulam-se com as lideranças das demais representações que o apoiavam semanas (ou dias) atrás, inclusive com presença na equipe governamental. A presidenta Dilma apresenta ao País uma proposta de um grande debate nacional para o dia seguinte à votação da tentativa de apeá-la do cargo. E, claro, a recomposição do governo com as forças políticas que estiverem efetivamente comprometidas com a continuidade do mandato.
Depois de uma longa letargia, a sociedade parece ter sentido os riscos e também se mexe. Uma intensíssima utilização das redes sociais fazem de blogues, Facebook, Twitter, Whatsapp, Instagram e outros canais de internet a alternativa à indisponibilidade de acesso à mídia tradicional, praticamente toda ela comprometida com o golpe. Centenas de manifestos expressam a condenação à manobra por grupos sociais de toda a ordem: intelectuais, religiosos, advogados, membros do Ministério Público, artistas, estudantes, pessoal de hip hop, de áudio visual, médicos e outros trabalhadores da área de saúde, sindicalistas e jornalistas, para citar só alguns casos. Em um ritmo de vários eventos diários, concentrações se sucedem em teatros, universidades e outras escolas, nas praças, em portas de fábricas, em shoppings, em inúmeros países. Busca-se tirar o tempo perdido e os artistas produzem músicas e clipes, além de reunir-se em pequenas apresentações ou grandes shows, como o da Lapa neste início de semana. Não faltam artistas fazendo representações nas ruas ou no interior de ônibus e metrô.
Do outro lado, foram marcantes as grandes concentrações. O característico é que, com raras exceções, sempre se realizaram aos domingos e contaram com cobertura intensiva da mídia, inclusive para a sua convocação. Além disso, foram apoiadas pelo deslocamento de horários de partidas de futebol e das grades de programação de televisões. E (pasmem!) houve vários casos de liberação de catracas de metrô, como se o transporte público tivesse preferência partidária.
O mais significativo foi a “coincidência” de atos pró e contra o golpe com a agenda da operação Lava Jato: vazamentos de delações, assim como de outras ações policiais, conduções coercitivas e prisões, “descobertas de indícios” ou suposições de atos delituosos etc. O detalhe alarmante é que nenhum dos pedidos de afastamento da presidenta da República sequer menciona as investigações da Lava-Jato, até porque não pesa contra Dilma Rousseff qualquer suspeita de envolvimento. Óbvio que boa parte da opinião pública chega à conclusão contrária, dada a ardilosa combinação das duas pautas.
Não fica nisso. Todas as armas estão sendo acionadas. O apoio de mídia serve para mobilizar os atos que deverão ocorrer até domingo. Nisso, tem lugar especial a guerra de números, passando a sensação de que a destituição de Dilma é fato consumado. Isso também é indispensável para convencer os deputados que querem a companhia do poder. Os deputados também são “convencidos” com outros argumentos. Até se fala em mala preta, o que ajuda especialmente em ano de eleição municipal, em que alguns deles são candidatos e os demais precisam ter vereadores gratos para ajudá-los na eleição de 2018. A crer nas denúncias de alguns deputados, não faltam também as ameaças. Tudo com a participação aberta da dupla Eduardo Cunha e Michel Temer.
A “fala de posse” de Temer (o áudio “vazado”) serviu para esse convencimento aos deputados de que tem cacife para fazer promessas em nome do futuro cargo e para dar uma garantia ao grande empresariado de que tudo será como o combinado. O problema foi ter soado como exagerada empáfia para quem conhece os meandros do Congresso e sabe que as favas não estão contadas. E disseminar desconfiança com alguns dos compromissos de seu “governo de União Nacional”, por sinal, título também utilizado pelo ditador português Antonio de Oliveira Salazar.
Mas o grande desastre, do ponto de vista da opinião pública, foi justamente o que Cunha trabalhou com tanto capricho: a composição da comissão que aprovou a admissibilidade. Seria até o caso de perguntar o que estavam aqueles três deputados fazendo na companhia de tantos indiciados por corrupção, já que 35 dos 38 votos têm contas a prestar à Justiça.
Ficou muito na cara! Livrá-los de complicações judiciais e policiais seria uma das moedas para a obtenção dos votos? Apareceu como uma bomba a evidência de estarem indiciados mais de 90% dos eleitores a favor do “impeachment”, enquanto apenas dois integram o grupo dos 27 votos contrários. Imediatamente, viriam outros indícios alarmantes. A declaração do senador Delcídio Amaral, outro seriamente envolvido na Lava-Jato, de que votará pelo afastamento de Dilma se ele chegar ao Senado. O afastamento do deputado Fausto Pinatto da relatoria do processo de cassação do mandato do próprio Cunha, após ter dado parecer favorável e denunciar que recebera ameaças pessoais para que não o fizesse. A garantia de que continuará como deputado e na Presidência da Casa é fundamental para alimentar nos demais o medo de perseguições, ainda mais diante da explícita utilização do cargo em proveito de seus interesses pessoais.
Não bastasse isso, o juiz Sérgio Moro, espetaculoso condutor da Lava-Jato, permitiu circular discreta informação de que “sonha com o fim do processo em dezembro”, o que soa como música para aqueles deputados e senadores temerosos de consequências funestas com o prosseguimento das investigações.
REPÚBLICA DOS INDICIADOS
Desfez-se a ilusão de quem via com certo otimismo cívico o processo que pode resultar no afastamento da presidenta Dilma, até imaginando respeito à Constituição, o que lhe tiraria o caráter de golpe puro e simples. Além do caráter golpista da manobra, já não há como negar interesses escusos de grupos econômicos poderosos, que teriam a representá-los, caso afastada a presidenta Dilma (vale sempre repetir que imaculada com relação a qualquer suspeita de corrupção) e substituída pelo vice Michel Temer, ele mesmo envolvido na operação Lava-Jato.
O processo vem sendo e tende a ser conduzido por ninguém menos que Eduardo Cunha, contra o qual o STF não move uma palha. Se não o faz agora, quanto o mais se ele atingir o objetivo de derrubar a presidenta da República e implantar no seu lugar o parceiro Michel Temer, conquistando a condição de virtual vice-presidente.
O que surgiria com Temer, Cunha (que seria o seu substituto na Presidência e teria inequívoca voz de comando em seu eventual governo) mais todos os parlamentares que teriam trocado votos por benefícios em processos criminais? Com a falsa alegação de combate à corrupção, estaria constituída uma autêntica República dos Indiciados. Ou ex-indiciados.
Há três semanas, cheguei a imaginar uma reviravolta no Judiciário ao menos no Supremo (http://blogdetolentino.blogspot.com.br/2016/03/teori-zavascki-pode-ter-salvo-o.html), diante da coragem e altivez do ministro Teori Zavascki, que parecia se associar ao rigor jurídico de Marco Aurélio de Mello e Roberto Barroso. Imaginei que aquilo pudesse contaminar a Corte, ainda mais que vinha sendo seguidamente afrontada por Eduardo Cunha, o que até poderia criar um espírito de corpo.
Nada! O Supremo só chegou a se impor de fato diante do Executivo, impedindo que a presidenta da República efetivasse a nomeação de um de seus auxiliares, mesmo sendo alguém sem qualquer acusação formada, como é o caso do ex-presidente Lula.
A verdade é que os brasileiros não têm o Judiciário em alta conta. Há muita demanda, mas pouca expectativa de sucesso e quase nenhuma satisfação com o resultado, até pela lerdeza com que funciona. Ou não funciona. Juízes são vistos como uma nata de privilegiados, o que não está nada longe da realidade e alcança os procuradores e promotores de justiça. O privilégio mais conhecido é o auxílio-moradia de R$ 4.377,73 mensais, não incidindo qualquer desconto sobre esse valor. O montante nacional custa anualmente à administração pública R$ 863 milhões, não considerados os atrasados, já que receberam esse benefício por uma decisão judicial.
Não fica por aí. Veja o que levantou a revista Época em junho de 2015.
“Confirmou-se o que todos no Judiciário suspeitavam: o contracheque de juízes e promotores ultrapassa, e muito, o teto constitucional de R$ 33 mil. A média de rendimentos de juízes e desembargadores nos Estados é de R$ 41.802 mensais; a de promotores e procuradores de justiça, R$ 40.853. Os valores próximos mostram a equivalência quase perfeita das carreiras. Os presidentes dos Tribunais de Justiça apresentam média ainda maior: quase R$ 60 mil (R$ 59.992). Os procuradores-gerais de justiça, chefes dos MPs, recebem, também em média, R$ 53.971. Fura-se o teto em 50 dos 54 órgãos pesquisados.”
http://epoca.globo.com/tempo/noticia/2015/06/juizes-estaduais-e-promotores-eles-ganham-23-vezes-mais-do-que-voce.html
Enquanto isso, vemos interesses feridos, pessoas presas sem a oportunidade de um julgamento (quando não vítimas de decisões jurídicas equivocadas), processos simplesmente paralisados, julgamentos amplamente questionados, demandas simplesmente arquivadas por conta do poder econômico ou político dos reclamados. Processos que apontam para anos de tramitação levaram à criação de varas de pequenas causas e instâncias de negociação, nas quais é comum abrir-se mão de direitos para não se restar inteiramente lesado ou ver protelada a vã expectativa de atendimento para tempos inimagináveis.
Nem é bom falar em outras evidências de tratamento diferencial, como os longos recessos forenses e feriados ampliados de que outros trabalhadores e servidores não conseguem usufruir.
Os ministros do Supremo parecem não se importar com a disseminação dessa imagem negativa do Judiciário brasileiro. A condução do mais notório processo judicial brasileiro da atualidade (a Lava-Jato) desrespeita princípios basilares da ordem jurídica e, quando reclamou, a Corte resignou-se diante de vago pedido de desculpa (em um só dos casos, talvez o mais grave) do juiz Sérgio Moro. Como se isso reparasse erros processuais e lesões às partes.
O grave é a generalização da crença de que magistrados e juízes de futebol são quase a mesma coisa. Parte substancial da população até negligencia aqueles privilégios e se rejubila com o fato de que erros estão sendo cometidos, mas são contra adversários políticos, no caso, o PT e as pessoas que dele se aproximaram. Como ocorre com torcedores (de caráter bastante duvidoso) que repetem a convicção de que, contra o time adversário, “o melhor é vencer com um gol de mão, após cometer falta no goleiro e, de preferência, quando o juiz já deveria ter encerrado a partida”.
Fernando Tolentino
A ilustração da avestruz togada é da artista plástica @nanamada
(no perfil do Facebook: Nana Lopes Andrade)

Um comentário:

  1. Enquanto roubam nesse jogo o destino diz: ""Q rolem os dados"" ...
    Fernando, otimas colocaçœs. ( Rubia

    ResponderExcluir