Esses dias trazem à lembrança
as crianças, nos seus primeiros anos, cobrindo inocentemente os olhos e
imaginando que, por isso, não estão sendo vistas. É exatamente como o avestruz
togado tão bem concebido pela artista plástica @nanamada, que o produziu e gentilmente cedeu para ilustrar este
artigo.
Seria a própria imagem
da mais alta Corte do País?
Estamos em um momento
daqueles em que ninguém é capaz de prever o que viveremos daqui a poucos dias.
Como na madrugada que antecede uma batalha final de uma guerra tradicional, as
forças entrincheiradas diante do campo de luta, ambas sem conhecerem os
recursos do inimigo. Coisa de filme da já distante adolescência.
Raras certezas, portanto,
com relação ao futuro imediato.
É esse tipo de momento
que mais excita os colegas jornalistas e outros analistas políticos. A
tentativa de decifrar o que será o dia seguinte.
De um lado, o governo e
os partidos que ora compõem a base aliada articulam-se com as lideranças das
demais representações que o apoiavam semanas (ou dias) atrás, inclusive com
presença na equipe governamental. A presidenta Dilma apresenta ao País uma
proposta de um grande debate nacional para o dia seguinte à votação da tentativa
de apeá-la do cargo. E, claro, a recomposição do governo com as forças
políticas que estiverem efetivamente comprometidas com a continuidade do
mandato.
Depois de uma longa
letargia, a sociedade parece ter sentido os riscos e também se mexe. Uma
intensíssima utilização das redes sociais fazem de blogues, Facebook, Twitter, Whatsapp, Instagram e outros canais de internet a
alternativa à indisponibilidade de acesso à mídia tradicional, praticamente
toda ela comprometida com o golpe. Centenas de manifestos expressam a
condenação à manobra por grupos sociais de toda a ordem: intelectuais,
religiosos, advogados, membros do Ministério Público, artistas, estudantes,
pessoal de hip hop, de áudio visual,
médicos e outros trabalhadores da área de saúde, sindicalistas e jornalistas,
para citar só alguns casos. Em um ritmo de vários eventos diários,
concentrações se sucedem em teatros, universidades e outras escolas, nas
praças, em portas de fábricas, em shoppings,
em inúmeros países. Busca-se tirar o tempo perdido e os artistas produzem
músicas e clipes, além de reunir-se em pequenas apresentações ou grandes shows, como o da Lapa neste início de
semana. Não faltam artistas fazendo representações nas ruas ou no interior de
ônibus e metrô.
Do outro lado, foram
marcantes as grandes concentrações. O característico é que, com raras exceções,
sempre se realizaram aos domingos e contaram com cobertura intensiva da mídia,
inclusive para a sua convocação. Além disso, foram apoiadas pelo deslocamento
de horários de partidas de futebol e das grades de programação de televisões. E
(pasmem!) houve vários casos de liberação de catracas de metrô, como se o
transporte público tivesse preferência partidária.
O mais significativo
foi a “coincidência” de atos pró e contra o golpe com a agenda da operação Lava
Jato: vazamentos de delações, assim como de outras ações policiais, conduções
coercitivas e prisões, “descobertas de indícios” ou suposições de atos
delituosos etc. O detalhe alarmante é que nenhum dos pedidos de afastamento da
presidenta da República sequer menciona as investigações da Lava-Jato, até
porque não pesa contra Dilma Rousseff qualquer suspeita de envolvimento. Óbvio
que boa parte da opinião pública chega à conclusão contrária, dada a ardilosa
combinação das duas pautas.
Não
fica nisso. Todas as armas estão sendo acionadas. O apoio de mídia serve para
mobilizar os atos que deverão ocorrer até domingo. Nisso, tem lugar especial a
guerra de números, passando a sensação de que a destituição de Dilma é fato
consumado. Isso também é indispensável para convencer os deputados que querem a
companhia do poder. Os deputados também são “convencidos” com outros
argumentos. Até se fala em mala preta, o que ajuda especialmente em ano de
eleição municipal, em que alguns deles são candidatos e os demais precisam ter
vereadores gratos para ajudá-los na eleição de 2018. A crer nas denúncias de
alguns deputados, não faltam também as ameaças. Tudo com a participação aberta
da dupla Eduardo Cunha e Michel Temer.
A
“fala de posse” de Temer (o áudio “vazado”) serviu para esse convencimento aos
deputados de que tem cacife para fazer promessas em nome do futuro cargo e para
dar uma garantia ao grande empresariado de que tudo será como o combinado. O
problema foi ter soado como exagerada empáfia para quem conhece os meandros do
Congresso e sabe que as favas não estão contadas. E disseminar desconfiança com
alguns dos compromissos de seu “governo de União Nacional”, por sinal, título
também utilizado pelo ditador português Antonio de Oliveira Salazar.
Mas o
grande desastre, do ponto de vista da opinião pública, foi justamente o que
Cunha trabalhou com tanto capricho: a composição da comissão que aprovou a
admissibilidade. Seria até o caso de perguntar o que estavam aqueles três
deputados fazendo na companhia de tantos indiciados por corrupção, já que 35
dos 38 votos têm contas a prestar à Justiça.
Ficou
muito na cara! Livrá-los de complicações judiciais e policiais seria uma das
moedas para a obtenção dos votos? Apareceu como uma bomba a evidência de
estarem indiciados mais de 90% dos eleitores a favor do “impeachment”, enquanto
apenas dois integram o grupo dos 27 votos contrários. Imediatamente, viriam
outros indícios alarmantes. A declaração
do senador Delcídio Amaral, outro seriamente envolvido na Lava-Jato, de que
votará pelo afastamento de Dilma se ele chegar ao Senado. O
afastamento do deputado Fausto Pinatto da relatoria do processo de
cassação do mandato do próprio Cunha, após ter dado parecer favorável e
denunciar que recebera ameaças pessoais para que não o fizesse. A garantia de
que continuará como deputado e na Presidência da Casa é fundamental para
alimentar nos demais o medo de perseguições, ainda mais diante da explícita
utilização do cargo em proveito de seus interesses pessoais.
Não bastasse isso, o
juiz Sérgio Moro, espetaculoso condutor da Lava-Jato, permitiu circular
discreta informação de que “sonha com o fim do processo em dezembro”, o que soa
como música para aqueles deputados e senadores temerosos de consequências
funestas com o prosseguimento das investigações.
REPÚBLICA DOS INDICIADOS
Desfez-se a ilusão de
quem via com certo otimismo cívico o processo que pode resultar no afastamento
da presidenta Dilma, até imaginando respeito à Constituição, o que lhe tiraria
o caráter de golpe puro e simples. Além
do caráter golpista da manobra, já não há como negar interesses escusos de
grupos econômicos poderosos, que teriam a representá-los, caso afastada a
presidenta Dilma (vale sempre repetir que imaculada com relação a qualquer
suspeita de corrupção) e substituída pelo vice Michel Temer, ele mesmo
envolvido na operação Lava-Jato.
O processo vem sendo e
tende a ser conduzido por ninguém menos que Eduardo Cunha, contra o qual o STF
não move uma palha. Se não o faz agora, quanto o mais se ele atingir o objetivo
de derrubar a presidenta da República e implantar no seu lugar o parceiro
Michel Temer, conquistando a condição de virtual vice-presidente.
O que surgiria com
Temer, Cunha (que seria o seu substituto na Presidência e teria inequívoca voz
de comando em seu eventual governo) mais todos os parlamentares que teriam
trocado votos por benefícios em processos criminais? Com a falsa alegação de
combate à corrupção, estaria constituída uma autêntica República dos
Indiciados. Ou ex-indiciados.
Há três semanas, cheguei
a imaginar uma reviravolta no Judiciário ao menos no Supremo (http://blogdetolentino.blogspot.com.br/2016/03/teori-zavascki-pode-ter-salvo-o.html), diante da coragem e altivez do
ministro Teori Zavascki, que parecia se associar ao rigor jurídico de Marco
Aurélio de Mello e Roberto Barroso. Imaginei que aquilo pudesse contaminar a
Corte, ainda mais que vinha sendo seguidamente afrontada por Eduardo Cunha, o
que até poderia criar um espírito de corpo.
Nada! O Supremo só
chegou a se impor de fato diante do Executivo, impedindo que a presidenta da
República efetivasse a nomeação de um de seus auxiliares, mesmo sendo alguém
sem qualquer acusação formada, como é o caso do ex-presidente Lula.
A verdade é que os
brasileiros não têm o Judiciário em alta conta. Há muita demanda, mas pouca
expectativa de sucesso e quase nenhuma satisfação com o resultado, até pela
lerdeza com que funciona. Ou não funciona. Juízes são vistos como uma nata de
privilegiados, o que não está nada longe da realidade e alcança os procuradores
e promotores de justiça. O privilégio mais conhecido é o auxílio-moradia de R$
4.377,73 mensais, não incidindo qualquer desconto sobre esse valor. O montante
nacional custa anualmente à administração pública R$ 863 milhões, não
considerados os atrasados, já que receberam esse benefício por uma decisão
judicial.
Não fica por aí. Veja o
que levantou a revista Época em junho de 2015.
“Confirmou-se
o que todos no Judiciário suspeitavam:
o contracheque de juízes e promotores ultrapassa, e muito, o teto
constitucional de R$ 33 mil. A média de rendimentos de juízes e
desembargadores nos Estados é de R$ 41.802 mensais; a de promotores e
procuradores de justiça, R$ 40.853. Os valores próximos mostram a equivalência
quase perfeita das carreiras. Os presidentes dos Tribunais de Justiça
apresentam média ainda maior: quase R$ 60 mil (R$ 59.992). Os
procuradores-gerais de justiça, chefes dos MPs, recebem, também em média, R$
53.971. Fura-se o teto em 50 dos 54 órgãos pesquisados.”
http://epoca.globo.com/tempo/noticia/2015/06/juizes-estaduais-e-promotores-eles-ganham-23-vezes-mais-do-que-voce.html
Enquanto isso, vemos
interesses feridos, pessoas presas sem a oportunidade de um julgamento (quando
não vítimas de decisões jurídicas equivocadas), processos simplesmente
paralisados, julgamentos amplamente questionados, demandas simplesmente
arquivadas por conta do poder econômico ou político dos reclamados. Processos
que apontam para anos de tramitação levaram à criação de varas de pequenas
causas e instâncias de negociação, nas quais é comum abrir-se mão de direitos
para não se restar inteiramente lesado ou ver protelada a vã expectativa de
atendimento para tempos inimagináveis.
Nem é bom falar em
outras evidências de tratamento diferencial, como os longos recessos forenses e
feriados ampliados de que outros trabalhadores e servidores não conseguem
usufruir.
Os ministros do Supremo
parecem não se importar com a disseminação dessa imagem negativa do Judiciário
brasileiro. A condução do mais notório processo judicial brasileiro da
atualidade (a Lava-Jato) desrespeita princípios basilares da ordem jurídica e,
quando reclamou, a Corte resignou-se diante de vago pedido de desculpa (em um
só dos casos, talvez o mais grave) do juiz Sérgio Moro. Como se isso reparasse
erros processuais e lesões às partes.
O grave é a
generalização da crença de que magistrados e juízes de futebol são quase a
mesma coisa. Parte substancial da população até negligencia aqueles privilégios
e se rejubila com o fato de que erros estão sendo cometidos, mas são contra
adversários políticos, no caso, o PT e as pessoas que dele se aproximaram. Como
ocorre com torcedores (de caráter bastante duvidoso) que repetem a convicção de
que, contra o time adversário, “o melhor é vencer com um gol de mão, após
cometer falta no goleiro e, de preferência, quando o juiz já deveria ter
encerrado a partida”.
Fernando Tolentino
A ilustração da avestruz togada é da
artista plástica @nanamada
(no perfil do Facebook: Nana Lopes
Andrade)
Enquanto roubam nesse jogo o destino diz: ""Q rolem os dados"" ...
ResponderExcluirFernando, otimas colocaçœs. ( Rubia