Quem
acompanhou futebol no final da década de 80, viu surgir no Rio de Janeiro um
árbitro de estilo diferente. Praticamente bailava sobre o gramado. Ao correr,
saltitava, às vezes deslocando-se em corridas velozes para trás. Seu gestual
era exuberante. O auge, quando levantava um cartão para advertir ou expulsar um
atleta. Punha-se nas pontas dos pés e vergava o corpo a ponto de derrubar a
cabeça para trás, como se fitasse o céu, para onde, aliás, dirigia a mão. A
posição era repetida no apito final de cada partida, também com o braço
esticado para o alto.
Pronto,
terminou o espetáculo. Entrevistado por Marília Gabriela, em dezembro de 2011,
o juiz reconheceu: “O campo de futebol não deixa de ser um palco pra mim.” Jorge
José Emiliano dos Santos trouxe do tempo em que apitava peladas na praia, onde
o seu jeito exótico já divertia atletas e banhistas, o apelido de Margarida.
Naquela entrevista, admitiu ganhar mais como Margarida do que como árbitro
oficial da CBF. A qualidade da sua arbitragem era consensualmente reconhecida e
chamava a atenção por peitar os atletas metidos a
"machões". Mas fez questão de dizer à jornalista: “Eu tenho
que ser autoridade (em campo) e não autoritário.”
Margarida
foi destaque durante alguns anos, até por transformar cada partida em um duplo
espetáculo. Mas não chegou a se tornar uma referência, como fora o seu ídolo
Armando Marques. Certamente por conta do reparo que faziam muitos de seus
críticos, alegando que o bom juiz é aquele que sequer tem a presença notada em
campo. Isto é, faz o jogo fluir e sua autoridade está tão assimilada pelos
jogadores que não é preciso ressaltá-la a cada momento.
Sem
dúvida, não seria nada ruim se as reflexões de Margarida (ou Jorge José
Emiliano dos Santos) servissem de lição para certos personagens da magistratura
brasileira atual.
Confesso
que, sufocado pela presença ostensiva do juiz paranaense Sérgio Moro, sofri a
mesma síndrome que, subitamente, vi se espalhar pelas redes sociais. “Cadê o Moro?”
De
fato, orquestrando a ação de um numeroso grupo de procuradores e policiais
federais, Moro parecia não se conformar se fosse ignorado nas principais
manchetes de jornais e nas chamadas mais sensacionais de rádio e TV. Nem sempre
com ações lícitas, pois propiciando ou pelo menos permitindo o vazamento de
informações sigilosas, determinando detenções e conduções coercitivas tão
afoitas que teve de retroagir ao identificar, quando o prejuízo já era irreparável
para suas vítimas, não se tratar de quem pretendia deter. Chegando, no momento
mais crítico, a sofrer reprimendas do STF, o que forçou a que pedisse desculpas
publicamente. É forçoso assinalar que, em boa parte da operação que conduz, as
ações mais espetaculosas ao menos pareceram sincronizadas com movimentações
políticas ou das ruas. Como se estivesse disputando a evidência nos meios de
comunicação ou, conforme acreditam muitos, querendo nelas influir.
Ao
invés de se reservar a uma posição discreta, já recomendável para qualquer
juiz, mais ainda para quem feria interesses de portentosos empresários e
políticos de significativa grandeza, fazia insistente e nada cuidadosa
exposição pessoal. Como ao dirigir
recados a manifestantes ou aceitar a participação em eventos de personagens que
se sabe candidatos daqui a alguns meses, como o comunicador e política João
Dória, por sinal acusado de atos ilícitos até por companheiros de legenda.
Como
fez alarde de que pretendia ver a opinião pública contaminada pela Operação
Lava Jato, criando o clima social e político que entendi indispensável para o
seu sucesso, é de se pensar sobre as ilações de alguns críticos, para os quais
toda a sua postura fosse um elemento de marketing
voltado para atingir o seu objetivo.
Os
críticos mais ácidos chegam a insinuar que a forma de conduzir a Operação faz
parte de um processo mais global voltado para fulminar o mandato legítimo da
presidenta Dilma Rousseff.
De
fato, a exploração das investigações pela mídia, inundada por versões maldosas,
informações nem sempre confirmadas e, principalmente, seletividade nos vazamentos
levaram a criar uma concepção equivocada em amplos setores sociais, em que se tem
a presidenta como envolvida no processo, embora ela não seja alvo de qualquer acusação
ou suspeita de corrupção. E até a crença de que o processo de impedimento da presidenta
Dilma tem alguma coisa a ver com a Lava Jato.
Por
tudo isso, causa espanto a tantos – e eu estou nesse meio – que os noticiários
já não tratem de Lava Jato, que a Margarida repentinamente desapareceu. Estaria
amargando o ostracismo ou, ao contrário, comemora o êxito de uma manobra
meticulosamente urdida, em que a opinião
pública é levada a crer que, afastada Dilma, acaba a corrupção no Brasil?
Pode
não ter dado tão certo. O que saltou aos olhos na votação do dia 18 de abril,
na Câmara, era que ali estavam os verdadeiros envolvidos nesse e em outros
casos de corrupção, como por sinal viria a se comprovar na semana seguinte, em
que se sucederam ações jurídicas e policiais contra vários participantes do
julgamento.
Uma
porrada! Mesmo vencendo a posição que defendiam, os torcedores do “impeachment”
saíram envergonhados da votação. Do outro lado, os que faziam a luta contra o
golpe saíram derrotados, mas orgulhosos.
O
paradoxo é evidenciado pelo excelente artigo de Alex Solnik “Dilma foi
derrubada pela Lava Jato” (http://www.brasil247.com/pt/blog/alex_solnik/228802/Dilma-foi-derrubada-pela-Lava-Jato.htm),
em que ele compara com a hipótese de um país em que grande parte das pessoas
consumisse maconha e surgisse uma presidenta que não a usasse. Sendo ilegal,
ela permitiria que se investigasse e punisse os usuários, o que acabaria por
levar a um grande acordo para afastá-la do poder. O jornalista troca maconha por corrupção e conclui que isso se deu com Dilma e foi a sua desgraça.
Aquela
votação foi realmente exemplar. Enquanto o mundo se sobressaltava com as cenas
lamentáveis daquela sessão, as informações foram aflorando, algumas ainda não
comprovadas, como a de que votos pelo SIM chegaram a custar R$ 2 milhões, ou a
de que o político goiano Sandro Mabel assegurou 172 cargos na administração
federal para cada deputado do PR que aprovasse o afastamento de Dilma.
Só
isso explica o chamado “efeito manada”, que fez parecer tão despropositada a
expectativa otimista dos articuladores da base de apoio do governo. A partir dos
votos de Minas Gerais, quando ficou claro que a deposição de Dilma estava se
consolidando, muitos parlamentares debandaram e passaram a somar votos
favoráveis.
Hoje,
já não há quem possa negar. Caso Dilma seja afastada do cargo, grande parte do
governo será composto por políticos envolvidos na Lava Jato e tantos outros
inquéritos policiais e processos judiciais. Lembre-se que o partido com maior
número de ministérios no governo de Dilma era o PMDB. Além dele, havia
ministros e outras autoridades de várias siglas que se afastaram da base aliada
às vésperas da votação e se integraram entre os apoiadores de Michel Temer, entre
eles o PSD e o PP, que é o líder de envolvimento na Lava Jato e vértice do
processo, já que foi o responsável pela indicação de Paulo Roberto Costa.
Isso
explica o comportamento constrangedor, para a Instituição e para o Brasil, de
dezenas de votantes do SIM. Por um lado refastelavam-se em suas premiações, o
que ganha enorme força em um ano de pleitos municipais, quando a eleição de
prefeitos e vereadores será fundamental para a renovação de seus próprios
mandatos daqui a dois anos. Por outro, muitos comemoravam a crença de que não
mais correrão riscos em processos policiais e judiciais. Por último, aliviam-se
do ônus de desagradar a grande mídia e, além disso, de continuar apoiando um
governo ideologicamente adversário deles, comprometido com segmentos da
sociedade muitas vezes antagônicos aos seus próprios interesses e, muito mais,
aos de seus financiadores.
O
que realmente houve naquela reação despudorada, irresponsável, uma
esculhambação, comparada por jornais estrangeiros como típica de um carnaval, foi
catarse. Foi ver-se livre de apoiar um governo popular e confiar que a reação favorável
dos eleitores será garantida pela grande mídia. Embora não esteja sendo assim
em vários estados nordestinos, o futuro vai mostrar se havia motivo para tanto
entusiasmo. A ver.
Fernando Tolentino
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