O Diário Oficial da União publicou na
sexta-feira a Portaria nº 854, do Ministério da Agricultura, com os preços
mínimos para 31 culturas de verão das safras 2014/2015 e, de produtos da Região
Norte e Nordeste da safra 2015.
Que bom. A agricultura tem realmente
contribuído significativamente com o desenvolvimento nacional, especialmente
por sua participação na pauta de exportações, mas também assegurando valores
compatíveis para os produtos que integram a dieta dos brasileiros.
Nenhum governo pode desconsiderar a
importância desse segmento. E isso atualmente não significa exclusivamente
latifúndio ou grandes empresas agrícolas. A agricultura familiar responde por
70% dos alimentos produzidos no País e assegura a ocupação de 80% dos
brasileiros envolvidos com essa produção.
Esse é um lado da questão. Para que
isso seja possível, o governo comparece com recursos. Além do financiamento
agrícola, há outros mecanismos, como o Prêmio Equalizador Pago ao Produtor
(Pepro), a Aquisição do Governo Federal (AGF) e o Prêmio de Escoamento do
Produto (Pep). Na prática, o governo compensa o agricultor quando os preços de
mercado ficam inferiores a valores fixados antes do plantio. Como fez na sexta-feira.
O Plano de Garantia de Preços Mínimos
foi criado em 1966 e, portanto, deve comemorar em breve 50 anos.
Não são parcos os recursos colocados à
disposição da agricultura. O atual Plano Safra (2014/15) prevê R$ 156,1
bilhões, sendo R$ 21 bilhões colocados à disposição dos agricultores
familiares.
Mas a poderosa bancada ruralista nunca
está satisfeita e, buscando mais vantagens, costuma negociar com a liderança
dos governos cada voto no Congresso Nacional.
Mas, além de mostrar a importância
desse segmento para o equilíbrio da economia brasileira, a que propósito esses
dados são trazidos para discussão?
E
o apoio a outros brasileiros?
É que, sendo tão importante essa
colocação de recursos federais à disposição de setores da sociedade, não custa comparar
com outras formas de apoio.
Não é noticiado com a mesma simpatia,
por exemplo, o Programa Bolsa Família. Pelo contrário, recebe duro combate de
políticos e partidos conservadores, inclusive os que representam o setor
ruralista, beneficiado com os recursos apontados. A maior parte da grande mídia
faz coro com esses adversários do programa.
Não são poucos os que chegam a apelidá-lo
de “bolsa esmola”.
Comparando os números, talvez a
designação até pudesse não ser assim tão injusta. O Programa atinge cerca de 11,1
milhões de famílias, beneficiando nada menos de 48,5 milhões de pessoas. Mais ou
menos um quarto da população do País.
Há algumas características do Programa
que desmontam as críticas superficiais que lhe são lançadas. O valor per capita não é suficiente, por
exemplo, para estimular a “vagabundagem”, como se chega a dizer, alegando-se
que as pessoas são estimuladas a não trabalharem, encostando-se no Bolsa
Família. O valor individual parte de R$ 12 e não ultrapassa R$ 112. Só pode
fazer jus ao benefício quem não tiver renda mensal superior a R$ 120. Por isso
mesmo, é sempre bom lembrar que a bolsa não é concedida somente a quem não
trabalha, mas a quem tem insuficiência de renda: mais de 75% dos beneficiados trabalham.
Tem sido observado um número razoável
de empreendedores individuais entre os atingidos pela bolsa, com milhões de
pessoas afastando-se espontaneamente do Programa.
Além disso, há exigências para quem
recebe, como manter as crianças na escola e cumprir um calendário de vacinação.
Com isso, organismos internacionais reconhecem a sua validade, apontando para a
contribuição com a escolarização e a queda dos índices de mortalidade infantil.
O percentual de mulheres entre os
beneficiários chega a 90% do total, considerando-se que as mães têm situação
cada vez mais clara de elo de continuidade da família. Mas há uma consequência
ideológica interessante: as mulheres passam a ter maior participação na
economia familiar, o que é revertido em respeito, dignidade. Ou seja, redução do
machismo antes tão arraigado em certas regiões do País.
Aliás, essa é também uma
característica que tem causado resistência em certos setores da sociedade. O
Programa reduz o mandonismo das classes abastadas sobre as pessoas que lhes
servem. Em outras palavras, a Bolsa Família concede às pessoas humildes a
condição de dizer não.
Por quê? De um lado, por ser fruto de
um cadastro em que não há participação de chefes políticos de qualquer nível. Ou
seja, não é preciso a família “mendigar” o benefício a quem lhe tenha concedido
e nem ter gratidão por recebe-lo. Reveste-se, assim, de cidadania. Por outro
lado, conferindo um lastro mínimo de renda a essas famílias, elas ganham condição
de recusarem condições aviltantes de trabalho. Como o emprego doméstico sem
registro na carteira ou, para os já empregados, expedientes intermináveis, sem
remuneração equivalente, além de atividades despropositadas e até humilhantes.
Por isso, encontra-se “patroas” alegando
que os empregados não querem mais trabalhar. A verdade é que não se sujeitam às
condições de trabalho antes impostas.
Há outros aspectos significativos na
importância do Programa. Segundo pesquisa da conceituada FIPE, a cada R$ 1 real
transferido ao Bolsa Família o Produto Interno do País cresce R$ 1,78.
É possível ainda dizer que esse foi um
dos instrumentos mais importantes para que o Brasil tivesse condições de
enfrentar a longa crise econômica internacional. Fácil explicar. À época da
reforma da Previdência Social, no início da década passada, foi identificado
que apenas aposentados e servidores municipais tinham rendimento registrado na
esmagadora maioria dos municípios brasileiros. O Bolsa Família eliminou isso.
Ainda que pouco por família, há beneficiados em todas as regiões e quase todos
os municípios. Em outras palavras, criou-se um mercado interno, que foi
fundamental para substituir as vendas ao mercado externo, quando os países compradores
tradicionais perderam a condição de manter as importações. Não custa sublinhar
que isso representou também a desconcentração da economia brasileira, com o
desenvolvimento de pequenos e médios negócios em milhares de cidades que viviam
próximas da estagnação econômica.
Transferência de recursos estatais ou
sob controle do Estado para a sociedade não é inédito no Brasil. A Previdência
Social arca com boa parte disso, inclusive na aposentadoria do trabalhador
rural. É possível citar outros programas e direitos como o vale-transporte e o
seguro-desemprego. E os que beneficiam setores médios ou abastados da
sociedade, especialmente com imunidades e isenções tributárias, perdões de
impostos, subsídios, financiamentos a juros rebaixados, cessões graciosas de
áreas urbanas e rurais à guisa de estímulo ao desenvolvimento de certas
atividades. Mas também bolsas de estudos ou financiamento a viagens de estudos,
para citar apenas alguns casos. Nunca é bom esquecer mecanismo de pura e
simples transferência de renda que felizmente tende a se extinguir, como a jocosamente
apelidada “bolsa dondoca”, aquela que beneficia filhas de certas autoridades
públicas, especialmente os militares, levando ao absurdo de que essas
privilegiadas não registrem suas relações conjugais.
O que cria resistências ao Programa Bolsa
Família, portanto, é a inversão do fluxo tradicional de recursos públicos. Por
isso, foi trazido o exemplo do Plano de Garantia de Preços Mínimos. Não se questiona
a sua validade. Mas o fato é que apoia o setor agrícola com R$ 156,1 bilhões, enquanto
o a Bolsa Família consumirá este ano apenas R$ 603 milhões. A diferença é que
um beneficia quem tem propriedade e renda, por isso podendo produzir, enquanto
o outro existe para retirar brasileiros da miséria.
Fernando
Tolentino
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