Há décadas não vejo uma
só mobilização sem a prévia martelada de algum mau agouro do tipo “não vai dar
em nada”.
Nos tempos terríveis da
repressão militar, era mais compreensível. Os militantes eram gatos pingados, perigosos
terroristas segundo pintava a propaganda oficial. As pessoas comuns nos temiam.
Daí as mobilizações serem quase somente de estudantes ou por eles lideradas.
“Vocês estão dando
murro em ponta de faca”, ouvíamos repetidamente, mesmo quando o regime vivia nos
seus estertores, a maioria no Legislativo dependia de diversos casuísmos
eleitorais e se via forçado a suspender a censura, além de conceder anistia
política, ainda que limitada.
Em 1984, as oposições
tomaram nas mãos a proposta de emenda apresentada nos primeiro dias de mandato pelo
deputado estreante Dante de Oliveira, em que propunha nada menos que eleições
diretas para presidente da República. E resolveram fazer justamente o que os
brasileiros parecem nunca acreditar: reverter a sólida maioria parlamentar governista
a partir de um grande movimento de massas.
Quantas vezes eu ouvi
“não adianta”, “o povo não está nem aí pra política”, “vocês acham que os
militares vão entregar o poder assim fácil!”
Foi nesse clima de
descrença que viajei para o comício de São Paulo em janeiro de 1984. Fui com
meu filho Iuri, então com 11 anos, e Moacyr de Oliveira Filho, também
jornalista e militante do PCdoB, como eu à época. Imagine a surpresa ao nos
aproximarmos da Praça da Sé e vermos grandes grupos em marcha, saindo de tudo
quanto era esquina, das estações de metrô, eufóricos, muitos com camisetas
preparadas para aquele evento.
Aguardávamos na rodoviária
o ônibus da volta, ainda embriagados com a maravilhosa manifestação popular
quando o apresentador do noticiário da TV Globo, a câmera fechada no palanque
para não mostrar as 300 mil pessoas presentes, disse que lideranças políticas
nacionais e inúmeros artistas haviam participado de uma festa de aniversário da
cidade na Praça da Sé.
Foi só de janeiro a
abril, mas a campanha das DIRETAS JÁ inflamou o País. Houve comício nas
capitais de todos os estados e em muitas outras cidades, todos com grande
número de presentes e enorme entusiasmo. Os exemplos pipocavam. Um amigo relatou-me,
impressionado, a experiência reveladora de Irecê, interior da Bahia. Como só
havia vereadores do PDS (partido que apoiava a ditadura), fora criada uma “tribuna popular” na Câmara, aberta ao
cidadão comum em um dia da semana. Pois se formou uma fila de jovens da cidade
que estudavam em Salvador e aproveitavam o espaço para defender as DIRETAS JÁ. Foi
tal a pressão que, embora governistas, os vereadores acabaram aprovando, por
unanimidade, um pedido para que os deputados votados na cidade apoiassem a
emenda Dante de Oliveira.
Depois de muito cobrada
nas ruas, a TV Globo passou a cobrir a campanha a partir de um dos últimos
comícios, o segundo realizado no Rio de Janeiro.
Os pessimistas
incuráveis certamente dirão: “Mas a emenda não passou.” E é verdade. Faltaram
22 votos: 298 deputados votaram a favor, 58,1%, bem mais que a maioria. Só 67
votaram contra e 113 se ausentaram. Um claro sinal da força do movimento foi a
rebeldia na bancada do PDS, que tinha 235 deputados.
A votação se deu com
Brasília cercada pelos militares, para impedir a chegada de manifestantes, e tropas
nas ruas para reprimir os atos políticos de brasilienses. A revolta diante da
repressão e o apoio à emenda foi expressa por vigorosos buzinaços, que tomaram
conta da cidade.
E A DESCRENÇA
CONTINUA
Depois de um ciclo de
importantes conquistas sociais iniciado com a eleição de Lula em 2002 e de um
golpe parlamentar e midiático, com sustentação ou omissão do Judiciário,
assumiu um governo que já antecipara a sua determinação: favorecer os
interesses dos grandes grupos econômicos, especialmente o setor financeiro, destruir
o que houvesse de direitos dos trabalhadores e setores populares, além de
promover intenso processo de desnacionalização da economia.
Faz somente um ano desde
o afastamento da presidenta Dilma e a decretação do golpe em si ocorreu
efetivamente no último dia de agosto, há oito meses.
Foi nesse período tão
curto que um governo sem qualquer legitimidade popular conseguiu colocar para
trabalhar um legislativo que parecia em greve durante um ano e meio do segundo
mandato de Dilma Rousseff. A verdade é que nem na Constituinte deputados e
senadores foram tão pródigos na aprovação de medidas legislativas, inclusive
emendas à Constituição, que exigem o voto de três quintos dos deputados e dos senadores.
Nenhuma dessas matérias, claro, beneficia a maioria dos brasileiros,
especialmente o povo mais humilde.
Uma das emendas constitucionais
veda que o governo amplie as despesas públicas por 20 anos, salvo no limite da
inflação do período. É um arraso, prometendo o desmantelamento das áreas de
saúde, educação e segurança, para não falar em outros investimentos
governamentais e no arrocho contra os servidores públicos. Só se livrou a cara
dos que se beneficiam com a parte do orçamento destinado a pagamento de juros.
Ao apagar das luzes de
2016, foi aprovado projeto de iniciativa de José Serra que permite a exploração
do Pré Sal sem a participação da Petrobras, o que significou a perda da garantia
de que o recursos teriam destinação social nas áreas de saúde e educação.
Não dá pra deixar de
lembrar a mudança nas regras do ensino médio, que retira qualquer sentido
crítico da educação pública, criando um fosso de formação entre os jovens que
frequentam as escolas mantidas pelos governos e os das escolas privadas.
Outras medidas
trouxeram prejuízos diretos para o trabalhador, como a redução no reajuste do
salário mínimo e as novas regras para desfrutar do seguro-desemprego. Ao lado
disso, desde o início do período de Temer à frente do governo, foram afetados
vários programas sociais do governo e já há a promessa de que outros também vão
desaparecer ou serão seriamente afetados. Nessa lista, incluem-se o Pronatec e
o Ciência sem Fronteiras, praticamente extintos, redução substancial nos
recursos para o Bolsa Família, o Minha Casa Minha Vida, Mais Médicos, FIES,
ProUNI e a perspectiva de desativação do Farmácia Popular.
Paralelamente, as instituições
de ensino federal perderam a condição de investirem e as empresas estatais
sofrem drástico enxugamento. Banco do Brasil, Caixa Econômica e Correios têm milhares
de agências fechadas e servidores são demitidos, com ou sem planos de demissão
voluntária.
Uma das investidas mais
ousadas sobre os direitos dos trabalhadores veio no início de 2017, com a
aprovação de lei de terceirização irrestrita da mão de obra. Ousada pela
amplitude, pois não exclui atividade fim ou sequer a administração pública,
além de precarizar o trabalho, com dispositivos como o que permite o contrato
de experiência por nove meses. Mas ousada também pela forma, pois se desprezou
projeto em andamento, já aprovado pela Câmara e sob análise do Senado, aprovando
iniciativa submetida ao Legislativo ainda no governo de Fernando Henrique
Cardoso e que teve a sua retirada pedida pelo então presidente Lula no início
de seu primeiro mandato, em 2003.
JÁ NÃO DÁ PRA
ENGANAR NINGUÉM
A pauta que investe
contra os interesses populares parece não se esgotar.
A tática da mídia
governista, intensamente utilizada, tem sido a de desviar a atenção do público
da agenda de perda de direitos, com o massacre de notícias sobre a Operação
Lava Jato e as denúncias de corrupção.
O efeito não é o esperado.
Um, porque ficou claro para a opinião pública, ainda que a mídia tente ofuscar,
que a corrupção inunda a base governista, contaminando todas as suas principais
lideranças e membros da equipe de governo. Tanto que já não se ouve falar dos
que foram às ruas pedir o afastamento da presidenta Dilma. Dois, pois já não é
possível enganar os que defendiam o “impeachment”: ele veio para subtrair
direitos dos trabalhadores e das parcelas mais carentes da população, mas
também das classes médias, incluindo os pequenos empresários, afetados pela
perda de dinamismo da economia.
A agenda do governo tem
no momento dois pontos cruciais, com a apreciação quase simultânea pelo
Congresso de projeto que, de tão radical na representação dos interesses do
capital, significa uma revogação tácita da CLT, que data de 1943 e vem sendo
aperfeiçoada desde então, e mudanças profundas nas regras da Previdência
Social, que retiram a expectativa de aposentadoria para os trabalhadores.
Mais à frente, já se
anunciam novas medidas também prejudiciais às camadas historicamente mais desassistidas,
como a exigência de submissão ao Congresso Nacional das demarcações de terras
para comunidades indígenas.
Aos estados,
pretende-se impor regras para a renegociação de suas dívidas que praticamente lhes
obriga à repetição do modelo adotado pela União.
Parcelas substanciais
da sociedade compreenderam o que se passa e reagem. Não são apenas centrais
sindicais ou outros movimentos de representação dos setores mais pobres da
sociedade, como os de trabalhadores rurais sem terra e moradores urbanos sem
teto ou mesmo o movimento estudantil. Manifestam-se entidades que congregam
juízes e procuradores do trabalho, denunciando que a Justiça Trabalhista
simplesmente tende a desaparecer, e representações de igrejas, como a CNBB e as
Igrejas Evangélicas Históricas.
É claro que a insatisfação popular atinge a base parlamentar do governo.
Segundo o jornal O Estado de
S. Paulo, a média de apoio ao governo na Câmara caiu de 91% (julho
de 2016) para 79%. As reações mais recentes mostram rebeldia entre os partidos
que apoiam o governo e a direção do PSB, que tem inclusive um ministro na
equipe de Temer, já deixou claro que não votará a favor das duas reformas: a
trabalhista e a da Previdência.
O governo já tentou adiversas
manobras, aliviando dispositivos do projeto da Previdência que atingem grupos
específicos. A tentativa mais enfática de sair do canto do ringue se dá, no
entanto, com a imposição de celeridade na votação dessas matérias. Assim,
questões tão importantes para o conjunto da sociedade são apreciadas sem
qualquer debate com a população. Em outras palavras, dá mostras de que está
fugindo da reação popular, quer dar o fato como consumado antes que as forças
sociais tomem a iniciativa das ações.
E A GREVE
GERAL?
Enquanto o governo
impõe à base parlamentar submissão inconteste e rapidez nas decisões, chegamos
às vésperas de um importante enfrentamento. Marcada para esta sexta-feira, 28,
tudo indica que o Brasil finalmente terá uma Greve Geral capaz de trazer
consequências concretas, valendo-se do já evidente isolamento social do governo.
Com o apoio de
lideranças religiosas, personalidades jurídicas e intelectuais, entidades
estudantis e de outros segmentos da sociedade, além das representações
classistas, a Greve Geral promete ser mais representativa que todas as experiências
anteriores de grandes paralisações nacionais.
Centenas de categorias
já decidiram cruzar os braços e outras prometem evoluir para isso nas próximas
horas, entre elas várias que são fundamentais para o funcionamento normal das
próprias estruturas urbanas, como rodoviários, metroviários, portuários,
professores, bancários, profissionais de saúde (inclusive médicos em alguns
casos), servidores públicos federais, estaduais e municipais, policiais,
vigilantes e vários outros segmentos de trabalhadores terceirizados, para citar
somente alguns casos. Até escolas privadas, prefeituras e órgãos locais do
Poder Judiciário decidiram-se por fechar as portas.
Muitos outros
trabalhadores expressarão o apoio de outras formas, inclusive se negando a
consumir o que quer que seja nesta sexta-feira.
Apesar disso, ainda é o
caso de perguntar a cada pessoa insatisfeita. Você também vai cruzar os braços?
Pelo menos apoiará explicitamente o movimento? Ou vai repetir a velha ladainha
de que não adianta fazer nada?
Fernando Tolentino
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