quinta-feira, 13 de abril de 2017

UM PAÍS DE TRAMBIQUEIROS



Coisa desanimadora é olhar em volta e concluir que pode ser verdade quando se define o Brasil como o país do jeitinho. Como o daquela máxima de uma propaganda dos anos 70 e que quase estigmatizava o craque Gerson, do Botafogo e do escrete nacional: “Tem que levar vantagem em tudo, certo?”
Alguém “aluga pneus para vistoria”, outros vendem trabalhos de conclusão de curso (e tem quem compre, claro), taxistas fazem dinheiro com trajetos desnecessários e somos advertidos para ficar esperto ao sair de um carro de Uber, pois o condutor pode não ter encerrado a corrida. Para redobrarmos também a atenção quando ele chega, pois pode ser um falso Uber, que tenha interceptado nossa chamada. Amigos ligam para saber se queremos comprar recibos médicos para usar na declaração de Imposto de Renda. Representantes de operadoras se oferecem para serviços “por fora” e até colocarem pontos não contratados. Muitos fazem “gatos” em ligações de energia elétrica, outros interceptam a rede pública de água, fugindo do controle. Médicos e dentistas propõem pagamentos sem notas. Não poucos emplacam os seus carros em cidades vizinhas para pagarem IPVA menor. Há quem alugue crianças para atendimento rápido em bancos. Ou compre celular “baratinho”, fingindo desconhecer que foi roubado. Temos que abrir os olhos para produtos “batizados”: gasolina, perfumes, uísque, cachaça e tantos outros. Gente que torcia o nariz para escolas públicas transferem para elas os seus filhos somente para usarem cotas nos vestibulares. Após um jantar de serviço, não é raro ouvir a pergunta do garçom: “Quanto quer que ponha na nota?” Empresários reduzem as suas retiradas e descarregam despesas pessoais e da família em suas empresas, assim fraudando o Imposto de Renda. Com o mesmo objetivo, quantos deixam de declarar o que recebem de aluguéis e outras receitas? E os empregados sem registro na carteira, os domésticos ou os das empresas? Por vezes em acordo com os próprios empregados, que recebem assim para continuarem no seguro desemprego?
Ufa! Nem falar de autores de grandes tramoias, as que lhes fazem temer impostos como a CPMF, por revelarem a movimentação financeira, seja ou não lícita. Tramoias como o tráfico, a exploração do jogo de bicho, o contrabando ou o Caixa 2. Ah! O Caixa 2... Como é que entra na empresa o dinheiro com que se paga a propina do político? Só em um conto de fadas daria para crer que todo Caixa 2 vai para as mãos de políticos.
Uma certeza eu tenho. O caríssimo leitor lembrou de várias irregularidades comuns, constatadas no seu dia a dia. Outras ele nem percebe. É possível que alguns só agora se tenham dado conta de que é um trambique muita coisa relatada aqui. Pois, apesar de tudo isso, ainda sou tentado a afirmar que a maioria dos brasileiros orgulha-se de sua honestidade. E quase sempre com razão.
E o Brasil era visto assim pelo mundo até bem pouco tempo. O que se identificava como jeitinho era a criatividade, a capacidade de resolver problemas imprevistos. Tive como companheiro de viagem há menos de dois anos um engenheiro que trabalhava na Coreia, na construção de navios para a Petrobras. Dizia que os trabalhadores coreanos eram mais operosos, aplicados. Mas ficavam paralisados diante do que fugia da rotina. Os brasileiros encontravam rapidamente uma alternativa.
Na América Latina ou na Europa, ouvi estrangeiros falarem do Brasil e dos brasileiros com admiração. E um dos motivos era esse tipo de “jeitinho brasileiro”. Como para enfrentar uma crise mundial investindo no seu próprio crescimento e, mais, distribuindo renda. O inverso da opção dos governos de seus países, que optaram pelo arrocho neoliberal. Vi que nos invejavam.
Não fui ao exterior depois que o golpe derrubou Dilma Rousseff. Mas aquela admiração virou fumaça, segundo ouço de amigos que têm viajado para fora do Brasil ou residem em outros países. Duas imagens estão neles impregnadas: um país em que já não há democracia e um país de trambiqueiros. E a conclusão não surgiu do nada. O primeiro grande impacto foram as imagens daquela fatídica sessão da Câmara dos Deputados (fará exato um ano no próximo dia 17), dirigida por um parlamentar já tido como um meliante e entre os votantes dezenas com processos judiciais e policiais variados, a grande maioria oferecendo seus votos a filhos, netos, pais, como se fosse um auditório de programa de calouros. Depois, o martelar cotidiano da mídia, com a pauta de corrupção generalizada. A partir da já famosa “lista de Fachin” essa constatação passa a ser tida como inquestionável: todo político brasileiro é corrupto.
PEDAGOGIA OU DEMAGOGIA
Isso é verdade?
O mínimo a dizer sobre “a lista” e sua divulgação é que se mistura tudo. Como se fosse tudo igual. É preciso dizer que, em política, se faz pedagogia ou demagogia. Não há uma terceira categoria. E isso se aplica a todos os agentes envolvidos: os políticos, quem faz a cobertura jornalística da política e os responsáveis pelos processos policiais e judiciais.
Alguém aí consegue citar algum personagem preocupado com a pedagogia? Interessado em que a opinião pública tenha clareza do que se passa nos processos? Aos políticos, interessa mostrar que os corruptos estão na bancada contrária. Até aqui, a grande mídia comercial e os responsáveis pelas investigações pareciam ter quase um acordo para apontar o PT como um partido de corruptos e, mais que isso, quase um inventor da corrupção ou, ao menos, o seu grande padrinho. A partir dos últimos dias, mesmo mantendo a predileção pelo PT, a ofensiva se expande. A palavra de ordem parece ser a demonstração de que político é sinônimo de corrupção.
Vejamos. A corrupção subentende uma transação indevida de interesses entre o agente público e o particular. No caso da Lava Jato e processos judiciais e policiais paralelos, está em apreciação, genericamente, o fato de políticos (ou outros agentes públicos) receberem recursos de empresários. Se o beneficiado não é político (um ministro do Tribunal de Contas, por exemplo), nada explica que recebesse qualquer doação. Caracteriza obviamente enriquecimento ilícito, sendo inevitável concluir que a doação implica no uso do cargo para a prestação de algum “favor” eticamente injustificável.
Tratando-se de político, o recebimento em si não basta para caracterizar corrupção. O sistema político brasileiro pressupunha o financiamento privado de campanhas. Daí, há algumas situações em que empresas repassaram recursos a políticos.
- O Caixa 2, quando o político recebe a doação e não a declara na prestação de contas da campanha. Ela pode ter sido efetivamente usada na campanha, embora sem contabilização. Em si, é um crime eleitoral, ainda que o recurso não tenha sido apropriado pelo político para o seu enriquecimento pessoal.
- A doação regular para uma campanha, com a devida contabilização e prestação de contas à Justiça Eleitoral. Embora regular, pode ser caracterizada como corrupção, bastando que, para obter o recurso, o político tenha se comprometido com a defesa de algum interesse do doador no âmbito da administração pública.
- A terceira hipótese é a de que o político tenha recebido a doação sem que a destinação fosse a campanha eleitoral. Uma propina pura e simples, em que obtém uma doação para defender interesses do empresário. A cada uma dessas situações corresponde um tipo de tratamento judicial e um tipo de punição específica.
Basta lembrar o exemplo do processo que ficou conhecido como “mensalão”. O do PT, pois o do PSDB, que foi anterior, sequer foi julgado. E praticamente não ficou conhecido, pois é uma raridade a sua menção pela grande mídia. Pois as duas grandes discussões no chamado “mensalão” foram se (1) a origem do recurso era pública e (2) era um caso de Caixa 2, o PT transferindo recursos para o pagamento de despesas de campanha do PL e do PTB, que haviam disputado conjuntamente a eleição de 2002. As condenações só resultaram em penas de prisão porque a justiça decidiu que não foi Caixa 2.
Tendo um tratamento penal mais brando, existe na política uma atitude mais frouxa com relação a Caixa 2. Às vezes a pedido do doador, que não quer o seu nome vinculado ao político ou partido. Isso é comum, por exemplo, em pequenas cidades, onde o doador contribui para campanhas adversárias, mas não quer que isso chegue ao conhecimento público, temendo uma retaliação após a eleição.
O fato é que os conceitos têm sido misturados. Apesar disso, o juiz Sérgio Moro chegou a relativizar as doações ao PSDB, alegando que não podiam ser propinas porque ele não integrava o governo. Desconhece que, no início de seu primeiro governo, Lula teria aceito indicação de Aécio Neves para a direção de Furnas? Desconhece que interesses de empresas também são tratados no Legislativo, como ocorreu com o então presidente do PSDB, Sérgio Guerra, que recebeu um agrado de R$ 10 milhões para paralisar uma CPI sobre a Petrobras?
Vi o deputado Vicentinho (PT-SP) esclarecer que recebeu doação de R$ 30 mil sete anos atrás e pedir que observem os seus projetos e votos desde então, nenhum deles atendendo interesses da empreiteira.
Os deputados Paulo Pimenta (PT-RS), Darcísio Perondi (PMDB-RS) e o ex-senador Sérgio Zambiazi (PTB-RS) parecem ter sido envolvidos em uma trapalhada, pois o ministro Fachin devolveu a denúncia para a PGR, pedindo que dê mais esclarecimentos. O procurador (não dá pra pôr a culpa em um estagiário) misturou os três, que são inclusive de partidos distintos, e dois fatos de épocas diferentes: de um lado, pedidos de apoio financeiro dos deputados dois anos antes, em que o próprio delator se diz traído na memória pelo tempo, mas ressalva (“acho que eram institucionais”, regulares portanto); de outro, um pedido do ex-senador de 2012 de ajuda financeira a uma instituição de apoio a idosos e drogados, em que alegou não recordar se Zambiazi sabia como se davam as doações.
Enfim, fato semelhante ao ocorrido na explosão do intitulado “mensalão”. O Jornal Nacional citou inúmeros políticos que teriam recebido recursos indevidos. Sem dó nem piedade. No dia seguinte, o noticiário teve que ressalvar vários deles. Seu repórter fora vítima de um vazamento irresponsável de informações originadas no gabinete de Rodrigo Maia (DEM-RJ). Por conta de meu trabalho e de minha atividade política, identifico diversos políticos que fazem a sua representação parlamentar com a maior dignidade, entre os quais Pimenta e Vicentinho.
Saliento que a homenagem à honestidade estende-se a parlamentares de outros partidos. Não me julgo também no direito de sequer jogar lama em adversários citados nesta lista. Os políticos refletem a sociedade em que vivem e que representam. Embora mais pressionados, por conta do sistema eleitoral, padecem das influências comuns aos demais cidadãos. Em uma sociedade adoecida, não dá pra esperar que todas as pessoas sejam sistematicamente virtuosas. Por que esperar isso de todos os que os representam?
Prefiro aguardar investigações meticulosas, que identifiquem se cada nome foi mencionado com responsabilidade pelos delatores ou o fizeram apenas para agradar investigadores, na tentativa de abreviar o seu suplício, após dois anos de prisão que só se explicam para forçar tais delações. Dessa forma, um dos mais conhecidos comunicadores sociais do Brasil chegou a ser preso e torturado, durante a ditadura, porque um colega, tentado escapar das dores dos castigos físicos, falou o seu nome injustificadamente. Mais que isso, a individualização de cada nome, o que realmente significa a sua inclusão na lista, o que eventualmente houve de irregular e qual a acusação que se pode fazer.
Não me permito contribuir para a disseminação da ideia de que a atividade política é inevitavelmente podre e que a saída para o Brasil passa por fora dela. Em qualquer país do mundo, quero encontrar uma imagem ao menos respeitosa com relação ao Brasil e aos brasileiros. Em outras palavras, que faça justiça ao País e seu povo.
Além disso, tenho muito claro o que significaram 21 anos de ditadura e tive notícias do que foram os do Estado Novo.
Chamo essa atitude de pedagógica. A própria negação da demagogia.
Fernando Tolentino

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