É uma crença
generalizada, que ouvi repetida aqui, ali e acolá no mínimo durante décadas a
de que os brasileiros só começam o ano depois do Carnaval.
Parte disso parece ter ficado
confirmada este ano.
Consumado o primeiro
lance do golpe, a deposição de Dilma Rousseff e sua instalação no Palácio do
Planalto, Michel Temer comportou-se como se senhor de inquestionável
legitimidade. Aliás, já dera provas da sua estranha desenvoltura no cargo
durante o período de afastamento provisório de Dilma, esgrimindo mesquinharias
de toda a sorte, como corte no cartão corporativo que assegurava até as
despesas de alimentação da presidenta eleita, impedimento de viagens com o
avião presidencial e até uma espécie de cárcere privado, controlando e
restringindo o acesso ao Palácio da Alvorada.
Passada essa fase, demostrou
que não teria os pruridos republicanos dos anos de liderança petista, autolimitações
próprias de quem se sabia no governo, mas não no poder.
Tal a sede, chegou a
gerar rusgas com a ministra Cármen Lúcia, ciosa em deixar claro que algum poder
cabia ao Judiciário. Por sinal, a política da disputa de espaços a cotoveladas envolveu
até o presidente do Senado, Renan Calheiros, assumidamente insubmisso ao
Judiciário.
Estabelecido um pacto
de convivência entre os poderes responsáveis pelo golpe, Temer passou a lançar
mísseis em direção às conquistas da nacionalidade e direitos sociais
contemplados inclusive n Constituição, cumprindo o que era a real motivação do
golpe, os compromissos da Ponte para o
Futuro, documento apresentado previamente pelos golpistas aos seus padrinhos
e patrocinadores.
A
ESQUIZOFRENIA ELEITORAL
Qual o sentido daquilo?
O eleitor de 2014 revelou uma atitude esquizofrênica, já manifestada em 2002,
2006 e 2010. Fez uma definição clara da expectativa de um governo fortemente
inclusivo e comprometido com um projeto de desenvolvimento nacional.
A intenção foi expressa
no voto para a Presidência da República. Para isso, garantiu a Lula duas vitórias
e a Dilma a sua sucessão. Lula foi reeleito, mesmo depois do massacre midiático
ao PT no processo apelidado de “mensalão”. E terminou o último mandato com quase
90% de aprovação. Na sequência, elegeu Dilma, uma quase desconhecida do público
e sem qualquer experiência eleitoral anterior. Mais quatro anos e voltou a
eleger Dilma, embora ela não fizesse qualquer aceno populista em seu primeiro
mandato.
Mas as eleições para o
Congresso Nacional – deputados federais e senadores – indicaram uma expectativa
nitidamente inversa dos eleitores. Como se a Nação esperasse um projeto
fortemente neoliberal: a solução para a crise econômica a partir da contenção
da participação da sociedade nos frutos da produção, um refreamento da inclusão
social, a retirada de direitos dos trabalhadores, a fragilização do Estado e
seus instrumentos de intervenção na economia, assim como a entrega do
patrimônio nacional e seus frutos ao grande capital internacional.
A tendência foi
crescente nas sucessivas eleições do ciclo de liderança petista. Embora alguns
partidos tenham obtido crescimento em suas bancadas, o PT e o conjunto da
esquerda tiveram redução do número de parlamentares a cada eleição.
A divergência
ideológica entre Legislativo e Executivo foi controlada e eventualmente
ocultada pela expressão popular da liderança de Lula e sua impressionante
capacidade de articulação no meio político. Essa destreza passava pelo próprio
robustecimento de partidos conservadores, na medida em que se beneficiavam nas
sucessivas alianças eleitorais, com prejuízo justamente para a esquerda. Ou
pela cessão da direção de fatias substanciais do aparelho de Estado para as
forças políticas que se solidarizaram com o seu projeto. Tática que gerou grande
parte da corrupção instalada na máquina estatal, em que a grande vítima, aos
olhos da opinião pública, é exatamente o PT.
Dilma nunca foi um
craque nas relações com o meio político, por falta de vocação e por isso
aparentemente lhe causar um certo nojo.
Daí, a natural a
conclusão das forças conservadoras de que Dilma não representava mais que o
“poder de veto” próprio do Poder Executivo. O poder real de iniciativa estava
no Congresso Nacional. Retirada de suas mãos a caneta, tudo seria como a
vontade da maioria parlamentar e, principalmente, do poder econômico que lhe dá
sustentação.
Tratava-se de combinar
como fazer a sucessão de Dilma. As alternativas seriam a eleição de Aécio Neves
e seu projeto neoliberal ou, caso impossível, anular a vitória da petista.
Hoje se sabe que, antes
das urnas, Eduardo Cunha era preparado para cumprir esse papel. Contam
investigações e delações que, mesmo escalado para compor a chapa com Dilma (e
talvez por isso mesmo), Michel Temer e sua turma tramavam isso em 2014,
inclusive arregimentando recursos financeiros para garantir uma bancada que
fizesse de Cunha presidente da Câmara dos Deputados. Ele usaria o poder da
Câmara e, mediante articulação ou chantagem, dirigiria remotamente o governo de
Dilma. Ou simplesmente a derrubaria.
FOGO DE
SATURAÇÃO
Às vésperas do golpe, esperava-se
um verdadeira guerra civil caso Dilma fosse deposta. Chegou a ser anunciado em
palanques da luta pela resistência democrática que – à frente o MST, MTST e CUT
entre outros – fazendas seriam ocupadas em escala nacional, rodovias seriam
fechadas, os trabalhadores iriam à greve geral, grandes mobilizações fariam o
Brasil ferver.
Nada disso! A
passividade diante do golpe deve ter deixado perplexos até mesmo os golpistas. Talvez
uma consequência com a adoção de medida francamente contrárias aos compromissos
de palanque no início do segundo governo de Dilma, uma forma de tentar conter
os efeitos da crise econômica. Isso teria erodido a paixão suscitada pelos dois
governos de Lula e por seus primeiros quatro anos.
Hora de a direita
avançar. Os golpistas entenderam que deveriam fazê-lo sem qualquer vacilação,
determinando fatos consumados. A tática foi empreender essa ofensiva com
medidas concomitantes ou sucessivas, imprimida uma velocidade que imobilizasse
na prática os adversários, incapazes de fazer o enfrentamento em tantas
batalhas ao mesmo tempo.
Pense nas ruínas de um
prédio subitamente em demolição. Como impedir que caiam reboco, janelas,
telhado, paredes, se tudo é simultaneamente lançado do alto sobre as nossas
cabeças? É a tática militar do fogo de saturação. Ofensivas tão intensas e de
tantas direções que não dá condição de organização das defesas.
Diversos ministérios e órgãos
púbicos foram fechados. O salário mínimo perdeu a garantia da incorporação de
crescimento real, aposentadorias por motivo de saúde passaram a ser revistas,
recursos foram retirados do Minha Casa, Minha Vida, do Pronatec e do FIES.
Concursos públicos foram suspensos. Foi anunciada a suspensão da Farmácia
Popular. Os orçamentos das instituições de ensino superior foram drasticamente
reduzidos. Recursos petrolíferos foram entregues ao capital estrangeiro.
O Congresso Nacional
foi praticamente colocado em prontidão e as medidas passaram a ser aprovadas
com celeridade jamais vista no Brasil. O Pré-Sal ruiu. As relações com os estados
foram fortemente contingenciadas. Entrou em discussão a entrega da base de
lançamento de foguetes de Alcântara. As relações internacionais do País foram rigorosamente
alteradas, perdendo substância o Mercosul e os elos de solidariedade com países
periféricos, além principalmente do BRICS. A Constituição foi alterada para
impor que não haverá crescimento nos gastos públicos ao longo dos próximos 20
anos.
Diante da dificuldade
de aprovação do projeto de lei de terceirização da mão de obra, na forma
combinada com as lideranças empresariais, desencavou-se iniciativa de cerca de
19 anos atrás, então encaminhada por Fernando Henrique Cardoso e que fora
aprovada pelo Sanado, tendo a sustação da tramitação pedida por Lula assim no
início do seu primeiro mandato. O projeto foi aprovado em um piscar de
olhos.
Não por acaso, são
anunciadas mudanças radicais na legislação trabalhista, com perda de direitos
conquistados há mais de 70 anos, assim como a própria instituição do ensino
pago em universidades federais.
A medonha reforma da
Previdência foi taticamente deixada para agora, quando muito da demolição já
foi feita sem efetiva reação popular.
As investigações da
Lava Jato entre outros processos judiciais e operações policiais praticamente
quebraram a Petrobras e fragilizaram projetos de desenvolvimento na área
militar.
(E quem diz que viu
assombrações não fomos nós... mas o próprio Temer, a ponto de se refugiar no
Palácio do Jaburu!)
É até difícil crer, mas
toda essa demolição se deu em menos de sete meses desde a posse de Temer, e
mais um período de provisoriedade entre 12 de maio e 31 de agosto do ano
passado.
Coube à grande mídia
oferecer expectativas positivas para a opinião pública e a tentativa de manter Lula
na defensiva, sabendo ser a liderança capaz de confrontar Temer e o seu projeto
de desmonte de direitos e do patrimônio nacional.
MAS CHEGOU O
CARNAVAL...
Os primeiros meses de
2017 pareciam indicar a mesma passividade da população, as reações restritas a
bravatas individuais nas redes sociais e uma ou outra declaração mais agressiva
de político ou liderança popular.
Ledo engano! As
energias pareciam estar reservadas para o Carnaval.
Cuícas, tamborins,
surdos e chocalhos abriram espaço para a rebeldia. Era hora de mostrar que o
poder está podre, não tem qualquer base popular. Fantasias, músicas, enredos,
cartazes, tudo abriu a possibilidade de contestar o poder e suas medidas,
espalhando pelo Brasil o que acabou sendo um autêntico Carnaval do Fora Temer.
Não teve mais como ser
contido o questionamento que dali brotou. Veio o 8 de março, animado pelo
chamamento para que, em todo o mundo, as mulheres fizessem uma parada, não
cumprissem as suas atribuições habituais, inclusive as que caracterizam a dupla
e até tripla jornada que lhes é imposta.
No Brasil, a conexão com
reforma da Previdência de Temer foi quase automática, pois desconsidera a
especificidade da mulher e exige o mesmo tempo de atividade dos homens para a
conquista da aposentadoria. Não bastante, reduz os valores de pensões e veda a sua
acumulação com a aposentadoria.
O Dia Internacional da
Mulher nunca teve tamanha participação popular no Brasil, tornou-se uma guerra
contra a reforma da Previdência e, naturalmente, um novo Fora Temer.
A terceira grande demonstração
de forças da oposição nasceu de uma provocação do próprio Temer, que resolveu
posar de responsável pela transposição do rio São Francisco, certamente buscando
algum prestígio no Nordeste, região em que Lula é a liderança inconteste.
Temer foi à cidade de
Monteiro (Paraíba) em 10 de março e inaugurou o eixo leste da transposição. Numa
cerimônia em recinto fechado, atreveu-se a dizer que a obra não tinha pai, uma
alusão direta a Lula, que a iniciou em 2007, peitando resistências de boa parte
da base atual de Temer. Do lado de fora, gente do povo reagiu entoando o nome
de Lula e resgatando-lhe a paternidade.
Foi o suficiente para, passados apenas nove
dias, Monteiro ser palco do evento designado Celebração das Águas, em que os
ex-presidente Lula e Dilma, verdadeiros responsáveis pela quase totalidade da
obra, e o governador paraibano Ricardo Coutinho fizessem a inauguração popular
da transposição. Uma festa popular de que, durante décadas, o povo de Monteiro
e do Nordeste não se esquecerá. A cidade não teve acomodação pra quem quis, o
tráfego ficou congestionado em toda a estrada, milhares de pessoas se
concentraram em suas ruas e comemoraram efusivamente a inauguração,
praticamente desconsiderando que o evento oficial. Não bastante, nas ondas das
novas tecnologias, o ato político foi acompanhado por gente de todo o Brasil.
Uma semana depois, em 15
de março, a contestação ao governo Temer e suas medidas de retirada de
direitos, especialmente a reforma da Previdência, estava de novo nas ruas. Em
todas as capitais e dezenas de outras cidades, estima-se que os protestos reuniram
pelo menos um milhão de pessoas. O mais importante, os atos anunciavam novas manifestações
neste dia 31.
Mesmo diante da enorme insatisfação
da sociedade com o encaminhamento do governo de Temer, especialmente as suas
reformas, os grupos utilizados para estimular o seu apoio ao golpe em 2015 e
início de 2016 resolveram sustentar uma convocação para quatro dias depois.
Fiasco total! Os amigos
da mídia ainda tentaram alegar que houve atos em dezenas de cidades, mas o
certo é que não se viu, sequer nas grandes capitais, um ajuntamento de atraísse
perto de mil pessoas.
O governo Temer já
percebe que a sua bola murchou. Manobrou na reforma da Previdência, anunciando
que servidores estaduais e municipais estão fora dela. Não enganou ninguém.
Apenas tenta dividir o movimento transferindo a responsabilidade pelo arrocho
para outras instâncias. Agora, promete alterações no cálculo da média de
contribuição sobre a qual viriam a ser calculadas as futuras aposentadorias.
Não adianta. Todos já entenderam que praticamente ninguém se aposentará com as
novas normas, ainda mais se entrar em vigor a nova Lei de Terceirização.
A luta está nas ruas!
Fernando Tolentino
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