quinta-feira, 30 de março de 2017

O BRASIL SÓ FUNCIONA DEPOIS DO CARNAVAL



É uma crença generalizada, que ouvi repetida aqui, ali e acolá no mínimo durante décadas a de que os brasileiros só começam o ano depois do Carnaval.
Parte disso parece ter ficado confirmada este ano.
Consumado o primeiro lance do golpe, a deposição de Dilma Rousseff e sua instalação no Palácio do Planalto, Michel Temer comportou-se como se senhor de inquestionável legitimidade. Aliás, já dera provas da sua estranha desenvoltura no cargo durante o período de afastamento provisório de Dilma, esgrimindo mesquinharias de toda a sorte, como corte no cartão corporativo que assegurava até as despesas de alimentação da presidenta eleita, impedimento de viagens com o avião presidencial e até uma espécie de cárcere privado, controlando e restringindo o acesso ao Palácio da Alvorada.
Passada essa fase, demostrou que não teria os pruridos republicanos dos anos de liderança petista, autolimitações próprias de quem se sabia no governo, mas não no poder.
Tal a sede, chegou a gerar rusgas com a ministra Cármen Lúcia, ciosa em deixar claro que algum poder cabia ao Judiciário. Por sinal, a política da disputa de espaços a cotoveladas envolveu até o presidente do Senado, Renan Calheiros, assumidamente insubmisso ao Judiciário.
Estabelecido um pacto de convivência entre os poderes responsáveis pelo golpe, Temer passou a lançar mísseis em direção às conquistas da nacionalidade e direitos sociais contemplados inclusive n Constituição, cumprindo o que era a real motivação do golpe, os compromissos da Ponte para o Futuro, documento apresentado previamente pelos golpistas aos seus padrinhos e patrocinadores.
A ESQUIZOFRENIA ELEITORAL
Qual o sentido daquilo? O eleitor de 2014 revelou uma atitude esquizofrênica, já manifestada em 2002, 2006 e 2010. Fez uma definição clara da expectativa de um governo fortemente inclusivo e comprometido com um projeto de desenvolvimento nacional.
A intenção foi expressa no voto para a Presidência da República. Para isso, garantiu a Lula duas vitórias e a Dilma a sua sucessão. Lula foi reeleito, mesmo depois do massacre midiático ao PT no processo apelidado de “mensalão”. E terminou o último mandato com quase 90% de aprovação. Na sequência, elegeu Dilma, uma quase desconhecida do público e sem qualquer experiência eleitoral anterior. Mais quatro anos e voltou a eleger Dilma, embora ela não fizesse qualquer aceno populista em seu primeiro mandato.
Mas as eleições para o Congresso Nacional – deputados federais e senadores – indicaram uma expectativa nitidamente inversa dos eleitores. Como se a Nação esperasse um projeto fortemente neoliberal: a solução para a crise econômica a partir da contenção da participação da sociedade nos frutos da produção, um refreamento da inclusão social, a retirada de direitos dos trabalhadores, a fragilização do Estado e seus instrumentos de intervenção na economia, assim como a entrega do patrimônio nacional e seus frutos ao grande capital internacional.
A tendência foi crescente nas sucessivas eleições do ciclo de liderança petista. Embora alguns partidos tenham obtido crescimento em suas bancadas, o PT e o conjunto da esquerda tiveram redução do número de parlamentares a cada eleição.
A divergência ideológica entre Legislativo e Executivo foi controlada e eventualmente ocultada pela expressão popular da liderança de Lula e sua impressionante capacidade de articulação no meio político. Essa destreza passava pelo próprio robustecimento de partidos conservadores, na medida em que se beneficiavam nas sucessivas alianças eleitorais, com prejuízo justamente para a esquerda. Ou pela cessão da direção de fatias substanciais do aparelho de Estado para as forças políticas que se solidarizaram com o seu projeto. Tática que gerou grande parte da corrupção instalada na máquina estatal, em que a grande vítima, aos olhos da opinião pública, é exatamente o PT.
Dilma nunca foi um craque nas relações com o meio político, por falta de vocação e por isso aparentemente lhe causar um certo nojo.
Daí, a natural a conclusão das forças conservadoras de que Dilma não representava mais que o “poder de veto” próprio do Poder Executivo. O poder real de iniciativa estava no Congresso Nacional. Retirada de suas mãos a caneta, tudo seria como a vontade da maioria parlamentar e, principalmente, do poder econômico que lhe dá sustentação.
Tratava-se de combinar como fazer a sucessão de Dilma. As alternativas seriam a eleição de Aécio Neves e seu projeto neoliberal ou, caso impossível, anular a vitória da petista.
Hoje se sabe que, antes das urnas, Eduardo Cunha era preparado para cumprir esse papel. Contam investigações e delações que, mesmo escalado para compor a chapa com Dilma (e talvez por isso mesmo), Michel Temer e sua turma tramavam isso em 2014, inclusive arregimentando recursos financeiros para garantir uma bancada que fizesse de Cunha presidente da Câmara dos Deputados. Ele usaria o poder da Câmara e, mediante articulação ou chantagem, dirigiria remotamente o governo de Dilma. Ou simplesmente a derrubaria.
FOGO DE SATURAÇÃO
Às vésperas do golpe, esperava-se um verdadeira guerra civil caso Dilma fosse deposta. Chegou a ser anunciado em palanques da luta pela resistência democrática que – à frente o MST, MTST e CUT entre outros – fazendas seriam ocupadas em escala nacional, rodovias seriam fechadas, os trabalhadores iriam à greve geral, grandes mobilizações fariam o Brasil ferver.
Nada disso! A passividade diante do golpe deve ter deixado perplexos até mesmo os golpistas. Talvez uma consequência com a adoção de medida francamente contrárias aos compromissos de palanque no início do segundo governo de Dilma, uma forma de tentar conter os efeitos da crise econômica. Isso teria erodido a paixão suscitada pelos dois governos de Lula e por seus primeiros quatro anos.
Hora de a direita avançar. Os golpistas entenderam que deveriam fazê-lo sem qualquer vacilação, determinando fatos consumados. A tática foi empreender essa ofensiva com medidas concomitantes ou sucessivas, imprimida uma velocidade que imobilizasse na prática os adversários, incapazes de fazer o enfrentamento em tantas batalhas ao mesmo tempo.
Pense nas ruínas de um prédio subitamente em demolição. Como impedir que caiam reboco, janelas, telhado, paredes, se tudo é simultaneamente lançado do alto sobre as nossas cabeças? É a tática militar do fogo de saturação. Ofensivas tão intensas e de tantas direções que não dá condição de organização das defesas.  
Diversos ministérios e órgãos púbicos foram fechados. O salário mínimo perdeu a garantia da incorporação de crescimento real, aposentadorias por motivo de saúde passaram a ser revistas, recursos foram retirados do Minha Casa, Minha Vida, do Pronatec e do FIES. Concursos públicos foram suspensos. Foi anunciada a suspensão da Farmácia Popular. Os orçamentos das instituições de ensino superior foram drasticamente reduzidos. Recursos petrolíferos foram entregues ao capital estrangeiro.
O Congresso Nacional foi praticamente colocado em prontidão e as medidas passaram a ser aprovadas com celeridade jamais vista no Brasil. O Pré-Sal ruiu. As relações com os estados foram fortemente contingenciadas. Entrou em discussão a entrega da base de lançamento de foguetes de Alcântara. As relações internacionais do País foram rigorosamente alteradas, perdendo substância o Mercosul e os elos de solidariedade com países periféricos, além principalmente do BRICS. A Constituição foi alterada para impor que não haverá crescimento nos gastos públicos ao longo dos próximos 20 anos.
Diante da dificuldade de aprovação do projeto de lei de terceirização da mão de obra, na forma combinada com as lideranças empresariais, desencavou-se iniciativa de cerca de 19 anos atrás, então encaminhada por Fernando Henrique Cardoso e que fora aprovada pelo Sanado, tendo a sustação da tramitação pedida por Lula assim no início do seu primeiro mandato. O projeto foi aprovado em um piscar de olhos. 
Não por acaso, são anunciadas mudanças radicais na legislação trabalhista, com perda de direitos conquistados há mais de 70 anos, assim como a própria instituição do ensino pago em universidades federais.
A medonha reforma da Previdência foi taticamente deixada para agora, quando muito da demolição já foi feita sem efetiva reação popular.
As investigações da Lava Jato entre outros processos judiciais e operações policiais praticamente quebraram a Petrobras e fragilizaram projetos de desenvolvimento na área militar.
(E quem diz que viu assombrações não fomos nós... mas o próprio Temer, a ponto de se refugiar no Palácio do Jaburu!)
É até difícil crer, mas toda essa demolição se deu em menos de sete meses desde a posse de Temer, e mais um período de provisoriedade entre 12 de maio e 31 de agosto do ano passado.
Coube à grande mídia oferecer expectativas positivas para a opinião pública e a tentativa de manter Lula na defensiva, sabendo ser a liderança capaz de confrontar Temer e o seu projeto de desmonte de direitos e do patrimônio nacional.
MAS CHEGOU O CARNAVAL...
Os primeiros meses de 2017 pareciam indicar a mesma passividade da população, as reações restritas a bravatas individuais nas redes sociais e uma ou outra declaração mais agressiva de político ou liderança popular.
Ledo engano! As energias pareciam estar reservadas para o Carnaval.
Cuícas, tamborins, surdos e chocalhos abriram espaço para a rebeldia. Era hora de mostrar que o poder está podre, não tem qualquer base popular. Fantasias, músicas, enredos, cartazes, tudo abriu a possibilidade de contestar o poder e suas medidas, espalhando pelo Brasil o que acabou sendo um autêntico Carnaval do Fora Temer.
Não teve mais como ser contido o questionamento que dali brotou. Veio o 8 de março, animado pelo chamamento para que, em todo o mundo, as mulheres fizessem uma parada, não cumprissem as suas atribuições habituais, inclusive as que caracterizam a dupla e até tripla jornada que lhes é imposta.
No Brasil, a conexão com reforma da Previdência de Temer foi quase automática, pois desconsidera a especificidade da mulher e exige o mesmo tempo de atividade dos homens para a conquista da aposentadoria. Não bastante, reduz os valores de pensões e veda a sua acumulação com a aposentadoria.
O Dia Internacional da Mulher nunca teve tamanha participação popular no Brasil, tornou-se uma guerra contra a reforma da Previdência e, naturalmente, um novo Fora Temer.   
A terceira grande demonstração de forças da oposição nasceu de uma provocação do próprio Temer, que resolveu posar de responsável pela transposição do rio São Francisco, certamente buscando algum prestígio no Nordeste, região em que Lula é a liderança inconteste.
Temer foi à cidade de Monteiro (Paraíba) em 10 de março e inaugurou o eixo leste da transposição. Numa cerimônia em recinto fechado, atreveu-se a dizer que a obra não tinha pai, uma alusão direta a Lula, que a iniciou em 2007, peitando resistências de boa parte da base atual de Temer. Do lado de fora, gente do povo reagiu entoando o nome de Lula e resgatando-lhe a paternidade.
 Foi o suficiente para, passados apenas nove dias, Monteiro ser palco do evento designado Celebração das Águas, em que os ex-presidente Lula e Dilma, verdadeiros responsáveis pela quase totalidade da obra, e o governador paraibano Ricardo Coutinho fizessem a inauguração popular da transposição. Uma festa popular de que, durante décadas, o povo de Monteiro e do Nordeste não se esquecerá. A cidade não teve acomodação pra quem quis, o tráfego ficou congestionado em toda a estrada, milhares de pessoas se concentraram em suas ruas e comemoraram efusivamente a inauguração, praticamente desconsiderando que o evento oficial. Não bastante, nas ondas das novas tecnologias, o ato político foi acompanhado por gente de todo o Brasil.
Uma semana depois, em 15 de março, a contestação ao governo Temer e suas medidas de retirada de direitos, especialmente a reforma da Previdência, estava de novo nas ruas. Em todas as capitais e dezenas de outras cidades, estima-se que os protestos reuniram pelo menos um milhão de pessoas. O mais importante, os atos anunciavam novas manifestações neste dia 31.
Mesmo diante da enorme insatisfação da sociedade com o encaminhamento do governo de Temer, especialmente as suas reformas, os grupos utilizados para estimular o seu apoio ao golpe em 2015 e início de 2016 resolveram sustentar uma convocação para quatro dias depois.
Fiasco total! Os amigos da mídia ainda tentaram alegar que houve atos em dezenas de cidades, mas o certo é que não se viu, sequer nas grandes capitais, um ajuntamento de atraísse perto de mil pessoas.
O governo Temer já percebe que a sua bola murchou. Manobrou na reforma da Previdência, anunciando que servidores estaduais e municipais estão fora dela. Não enganou ninguém. Apenas tenta dividir o movimento transferindo a responsabilidade pelo arrocho para outras instâncias. Agora, promete alterações no cálculo da média de contribuição sobre a qual viriam a ser calculadas as futuras aposentadorias. Não adianta. Todos já entenderam que praticamente ninguém se aposentará com as novas normas, ainda mais se entrar em vigor a nova Lei de Terceirização.
A luta está nas ruas!
Fernando Tolentino

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