Marcelo Pires Mendonça*
“Milhares
de pessoas vivem sem amor. Mas não sem água.”
W.H. Auden na abertura do documentário Flow
(Fluxo) – Por Amor à Água.
No ano de 2000 a guerra da água em Cochabamba, terceira
maior cidade boliviana, nos deixou uma importante lição: somente o povo
organizado nas ruas pode barrar medidas governamentais que contrariam os
interesses e causam prejuízos à sociedade. Num feito inédito, a população do
campo e da cidade unidas conseguiram a revogação da lei que privatizava a água
em seu país, contrariando a recomendação do Banco Mundial. Estava posto ali o
caráter estratégico dos recursos naturais, em especial a água, para a América
Latina e para o mundo, sob a égide do capitalismo privatista.
Em 2014 testemunhamos a crise hídrica de São Paulo,
negada pela cúpula do governo estadual (com a conivência da mídia hegemônica,
omissa em divulgar os fatos)
Em Brasília, o ano de 2017 começa com o anúncio
extemporâneo do GDF de um cronograma de racionamento de água. Aqui, como em São
Paulo há três anos, as mesmas duas questões se sobressaem: a gestão calamitosa
dos recursos hídricos pelo governo local em plena capital do país e o caráter
de classe do racionamento de água, cujo corte no fornecimento ocorrerá por
rodízio e afetará precipuamente as regiões administrativas de menor poder
aquisitivo do Distrito Federal. Sob a justificativa de que apenas as regiões
abastecidas pela bacia do Descoberto (que abrange 60% da população do DF)
demandam esta medida, coincidentemente as regiões nobres de Brasília,
abastecidas pelo reservatório de Santa Maria e outros córregos, serão poupadas
deste incômodo. Assim, Asas Sul e Norte, Lagos Sul e Norte, enfim, todas as
regiões que englobam os setores de mansões e grandes condomínios (e que
consomem, em média, o dobro de água do restante da população do DF) serão
afetadas apenas pela redução da pressão da água, mas terão garantidos pelo GDF direitos
fundamentais, como o de encher suas piscinas, regar suas gramas e lavar seus
carros.
A atual crise hídrica nos coloca o desafio de refletir
questões como educação e gestão ambiental, sustentabilidade e o uso adequado de
recursos naturais do ponto de vista de classe. O que não é debatido pela mídia com relação ao problema da sustentabilidade
ambiental é o fato de que 82% da nossa água é consumida pela agricultura em
processos de irrigação, 10% é destinada à indústria e somente 8% de toda água é
consumida pelas famílias, segundo dados da OMS. No fim das contas, quem menos
consome e paga as maiores tarifas de água é quem sofre as consequências de uma
sociedade que não discute a questão ambiental na perspectiva de classe e sim na
perspectiva individualista do capitalismo tão propalada pelos meios de
comunicação: os maiores poluidores ambientais no mundo são as indústrias
petroquímicas e de plástico, que jogam no meio ambiente toneladas de metais
pesados, efluentes industriais e poluentes orgânicos persistentes (POP), a
queima de combustíveis fosseis e as usinas termoelétricas, sendo responsáveis
por 91% da poluição ambiental no mundo e por 86% do lixo do planeta...
Entretanto, a mídia
hegemônica difunde o discurso da consciência ambiental individual,
superdimensiona a coleta seletiva de lixo residencial, o banho cronometrado, a
economia de água doméstica, o racionamento que afeta somente às famílias, quando
na realidade as famílias produzem 7,5% do lixo no Brasil e a coleta seletiva
residencial, por exemplo, tem um impacto praticamente zero na preservação do
meio ambiente, considerando que 3% (de 7,5% que é produzido) do lixo doméstico
é reciclado.... E enquanto a sociedade está distraída separando o lixo da sua
casa não tem ninguém pressionando empresas e governos por práticas industriais
mais sustentáveis e eficazes ou por uma legislação e uma fiscalização mais
rígidas que garantam de forma efetiva a preservação ambiental...
Pari
Passu, aqui no Distrito Federal, a
população das regiões administrativas com menores Índices de Desenvolvimento
Humano (IDH), a exemplo de Santa Maria, Ceilândia e Samambaia terão,
oficialmente, um dia de racionamento com dois dias de religamento e três de
abastecimento normal. Na prática observamos inúmeras denúncias de casos de
falta de fornecimento nestas localidades uma semana antes do racionamento
oficial, reclamações acerca de relógios de medição que registraram cobrança no
período do corte e de localidades nas quais, passado o período previsto para
reabastecimento, a população seguia sem acesso à água. Há também, no DF, os
casos de restrição estrutural de acesso à água em regiões administrativas como
a Fercal, que apresenta um dos maiores contingentes populacional de negros e um
dos menores índices de renda, na qual parte da população sequer integra a rede
oficial de abastecimento e recebe água de poços artesianos, cuja qualidade é
considerada salobra. Mais uma vez, as variáveis de raça e classe se imiscuem
para aprofundar as desigualdades estruturais da sociedade... Enquanto isso, as
quatro regiões administrativas com maior IDH e menores contingentes
populacionais de negros - Lago Norte, Sudoeste/Octogonal, Lago Sul e Plano
Piloto – seguem imunes ao racionamento. O banho de piscina está garantido nos
setores de mansões, mas as regiões mais populosas e mais carentes nem direito
ao banho têm...
Infelizmente, acompanhando o
racionamento, persevera o discurso atomista e liberal do capitalismo de que
"precisamos fazer a nossa parte"... Mas na realidade, se a nossa
parte não compensa o dano industrial proporcionalmente muito maior do que
podemos reparar, então na verdade a "nossa parte" favorece muito mais
à nossa consciência, à manutenção do status
quo e das políticas públicas erráticas do que ao meio ambiente. Por isso a
sociedade precisa assumir o compromisso histórico de construir a luta pela sustentabilidade
ambiental e em defesa dos recursos naturais com consciência de classe e
controle social, problematizando os reflexos da desigualdade social, de raça e
de classe no acesso a bens e recursos essenciais. O racionamento deve ser
proporcional ao consumo e não inversamente proporcional ao nível de renda.
*Formado
em História e Geografia, professor da Rede Pública do Distrito Federal.
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