A
Academia de Letras da Bahia promoveu ontem à noite uma sessão solene para
homenagem o intelectual Oldegar Vieira (meu pai), pela passagem de seu
centenário, em abril passado.
Além
de bela participação da acadêmica Yeda Pessoa (foto abaixo) e me minha manifestação em nome
da família, houve pronunciamentos do acadêmico Edivaldo Boaventura; do poeta
Cunha Lima, presidente da Academia de Letras do Rio Grande do Norte; da
presidente da Academia de Letras e Artes de Lauro de Freiras, Janeide
Borges; e da própria presidente da Academia de Letras da Bahia, Evelina
Hoisel.
“Fizemos
uma coisa diferente”, comemorou a acadêmica Yeda Pessoa, referindo-se ao
conteúdo lúdico do evento, que teve recitação da minha nora Gil (inclusive haicais
de Oldegar), da atriz Tina Tude e da poeta Miliane Tahira, minha filha (na foto
abaixo), além da interpretação de uma música composta por meu filho Iuri Vieira
para homenagear meu pai, cantada por ele próprio, por minha nora Gil e por meus
netos Inana, Mel e Letícia.
* No meio do texto seguinte, inserção de fotos com meu irmão, Paulo; com meu filho Iuri (junto com Mel); e
cercado de netos.
Meu pronunciamento:
Professora Evelina
Hoisel, presidente da Academia de Letras da Bahia
Senhores acadêmicos,
Peço a todos, mas
especialmente às senhoras e aos senhores acadêmicos, compreensão para a forte
carga emocional deste momento. Emoção que levou meu irmão, Paulo, a pedir para
não ser o responsável por fazer essa mensagem. A mim, levou a que preferisse redigir
previamente a comunicação e a ler, agora, para vocês.
É que, até por costume
profissional, nunca escrevo para que eu mesmo leia. A atividade de jornalismo,
profissão que adquiri já em Brasília, me fez criar o hábito de escrever sempre para
outros lerem. Quando chamado a falar, minimizo o vulto da tarefa e costumo
fazê-lo de improviso. Hoje, o receio de não conseguir chegar, com êxito, ao fim
da locução convenceu-me a ler um texto previamente escrito. A estranha
experiência de fazer uma conversa por escrito.
Ao falar em nome da
família do acadêmico Oldegar Franco Vieira, meu primeiro exercício é uma
oração.
Trata-se de um
agradecimento. Deus cuidou muito bem de nós, nos atribuiu um verdadeiro
privilégio, ao nos fazer nascer nesse ninho.
Não estou falando do
escritor ou, ao menos, não exclusivamente. Sobre isso, não me sobraria espaço
diante do brilhantismo de professora Yeda Pessoa. Seria inaceitável pretensão
me deter sobre isso diante deste notável sodalício.
O que posso – e muito
me agrada – é falar do homem, da pessoa incapaz de reter a doçura do seu
coração. A pessoa em que testemunhamos fé, compromisso e caráter.
Acho que, neste ponto,
estamos falando em nome de Tadeu, de Gabriel, de Zambreu, de Constantino e de
tantas pessoas com ou sem nome conhecidos de todos, mas citáveis aqui, tivessem
ou não ligações de sangue, fossem conhecidos, cruzassem o seu caminho ou ele apenas
se deparasse com os seus problemas e os seus destinos.
Estou lembrando em
primeiro lugar do Oldegar amante. Tanto assim que era impedido por minha mãe, de
tratar nossas feridas. Não conseguiria fazê-lo. Oldegar preferia cuidar delas,
acariciá-las quase. E isso não podia ser visto como terapêutica pela eficiente
e responsável enfermeira Edith, a Didi, nossa zelosa mãe.
Oldegar amava o mundo,
o mundo inteiro, amava sua Pátria e as pátrias de outros, como o Japão. O tão
geograficamente distante Japão, pelo qual se apaixonou, quis conhecer a língua
e a cultura, adotou o haicai, conquistando o respeito dos próprios nipônicos.
Amava as pessoas e isso
lhe fez um amante também da Justiça. Amava perdidamente a natureza e a lealdade
de propósitos. Também por isso, entendeu como indispensável nos fazer
escoteiros.
Fico imaginando a dor
de Oldegar se tivesse tido o infortúnio de testemunhar fato quase recente, uma
autoridade judicial usar a ferramenta Facebook com o despropósito de recomendar
a policiais que pusessem o peso da sua violência sobre um grupo de jovens
rebeldes, a ponto de assegurar que garantiria a impunidade mesmo que isso
resultasse em morte.
O que lembro em Oldegar,
pois não são poucos a recordar, é o surpreendente professor, capaz de enfrentar
a autoridade policial para não permitir que fosse agredido um ex-aluno que
poderia ter sido irreverente com quem, naquele momento, detinha o poder da
repressão. Digo surpreendente porque ninguém via nele solidariedade com as
bandeiras do movimento estudantil.
Mas o amor de Oldegar o
mantinha irrefreavelmente comprometido com quem visse fragilizado. Ainda meninos,
eu e meu irmão assistimos, onde Salvador nomeou significativamente como Largo
dos Aflitos, ele descer do carro para esgrimir sua cédula de identidade e,
assim, impedir que um homem usasse sua peixeira contra o seu desafeto, inteiramente desarmado.
Estamos homenageando um
homem, como todos os homens e as mulheres daqui, especialmente apaixonado pelas
letras. Leitor incontrolável, acostumamos a vê-lo agarrado à leituras nas
madrugadas, quando voltávamos de nossos momentos de lazer juvenil. Cabeceira
acesa, lá estava Oldegar dialogando com autores de diferentes disciplinas, fosse
direito, política, sociologia, medicina, psicologia e todo o mais. Anotava nas
margens dos livros seus comentários, discordâncias, avaliações, às vezes meras
perplexidades. É impressionante como eu não conseguia ler um só dos livros já
lidos por ele sem satisfazer a curiosidade de ler tais anotações. Às vezes,
refletindo sobre aquilo, em outras discordando diametralmente, não raro
simplesmente rindo.
Poucos talvez saibam
que essa intensidade de dedicação à leitura, naquele momento buscando
capacitar-se para a sua primeira experiência docente, no velho Colégio Estadual
da Bahia, impôs um lapso de perda de visão em sua juventude, felizmente
recuperado sem sequelas significativas.
Esse amor pelo mundo,
pelas pessoas, pela Justiça, pela natureza e pelas letras só poderia fazer dele
um escritor. E muito cedo. Seus primeiros haicais apareceriam na imprensa
baiana em 1932. No ano seguinte, eram reproduzidos na revista da Academia
Brasileira de Letras. Imaginem. Ele andava pela casa dos 18 anos e merecia,
segundo ele, a generosidade de Afrânio Peixoto.
O seu “Folhas de Chá”
surgiria em 1940, depois de concorrer a um prêmio na mesma Academia Brasileira
e, por conter haicais, como lembrado pela Dra. Yeda, não escapar à troça de
Cassiano Ricardo, que chegou a ser deselegante com Guilherme de Almeida, que
também integrava a Comissão Julgadora e era adepto do gênero, então recém-introduzido
no Brasil.
Intelectual irrequieto,
Oldegar nunca se deteve na poesia. Produziu inúmeros ensaios, entre eles A
CONSTITUIÇÃO DE UM ESTADO DE DIREITO E DE CULTURA, O DIREITO E O PODER, A
PROBLEMÁTICA TERRITORIAL BRASILEIRA, O HAICAI e UMA NOTÍCIA – BREVE E CAUTELOSA
– DA POESIA JAPONESA. A obra sobre a poesia japonesa foi
premiada e o credenciou para receber, no Japão, a insígnia de comendador da
Ordem do Tesouro Sagrado com Laço, outorgada pelo imperador Akihito.
Engana-se quem, vendo a
sua produção literária, pudesse imaginá-lo como um homem contemplativo, contido
em uma vida apenas de estudo e reflexões. Impunha-se intervir na realidade. Foi
assim que se embrenhou na Amazônia, quando o professor Lourenço Filho, com quem
trabalhava no INEP, o indicou para Diretor de Educação no então Território do
Guaporé, hoje Rondônia. A pedido do governador, visitou a Escola Ana Nery, no
Rio, e conseguiu levar jovens enfermeiras para implantar um serviço de saúde
pública. Foi assim que conheceu a catarinense Edith, com quem viria a casar,
assim nos possibilitando vida.
De volta à Bahia, foi
recrutado pelo professor Edgar Santos, contribuindo com a estruturação inicial da
Universidade Federal da Bahia. Coube-lhe parte substancial das providências
para a organização da Escola de Administração, carreira que então era uma
novidade no Brasil. Inclusive com a atração de nomes já acatados no mundo da
cultura e de jovens talentos que concluíam pós-graduações em instituições de
ensino dos Estados Unidos. Eu e meu irmão fizemos ali os exames vestibulares e
tivemos o privilégio de desfrutar de um nível de docência diferenciado,
considerado o estado da arte no Brasil.
Sei que Paulo tem suas
caras lembranças de professores, no curso de Administração de Empresas. Eu não
me canso de citar os meus, no de Administração Pública, sempre consciente de
que estou omitindo nomes da maior importância. Perseu Abramo, João Ubaldo,
Vital Duarte, Jorge Hage, João Eurico Matta, Edivaldo Boaventura. Tantos
outros.
Oldegar criou também a
Escola Superior de Estatistica, privada, onde lecionou durante muitos anos,
noite adentro.
Semeava cada projeto
com o mesmo entusiasmo com que ora erguia casas, ora reformava a nossa morada. Diaga-se,
de passagem, colocando sua concepção muito pessoal em cada construção.
A mesma sofreguidão que
o punha na estrada, buscando novos horizontes, ver como vivia cada povo. Essa
curiosidade e esse encantamento levaram, na sua despedida, a que João Eurico
apropriadamente o chamasse de “Vira-Mundo”.
Quando já se aproximava
dos 80 anos, éramos sucessivamente assaltados por incidentes diversos. Um dia,
cercado em uma rua deserta por taxistas solidários com um colega que tivera o
carro abalroado pelo dele; adiante, um desequilibrado quebrou o seu para-brisa
com um extintor de incêndio, inconformado com uma disputa de trânsito. Mas ele
relutava em abandonar a direção. Aquilo lhe dava asas. Um dia, ele e minha mãe
se viram com o carro pendurado sobre um despenhadeiro depois que o sono roubou
a atenção do motorista Oldegar. Precisaria mesmo de asas! Conseguimos
que recorresse aos serviços de um motorista. Mas éramos enganados. No caminho,
tomava a direção do carro. Quando Paulo me ligou para dizer que seu carro fora
roubado durante uma reunião desta Casa, ergui as mãos para agradecer a Deus.
Há 30 anos, assustei ao
ver o súbito envelhecimento de meu pai. Passos miúdos, voz sumida, gestos
lentos, olhar baixo. Tinha acabado de ser laçado pela aposentadoria
compulsória. Dez anos depois, nesta tribuna, ouvi explicar ter entendido então
que “viver é como caminhar de bicicleta; quando não se pedala, cai”. Depois
daquele momento difícil, ele encontrou novos compromissos e vi Oldegar se
reerguer.
Ao introduzir o seu
primeiro livro de poesias, Oldegar explicou que o seu gênero preferido era de
amplo uso entre os nipônicos, escrevendo haicais desde o imperador até o homem
mais simples. E lembrou Lewis Tsujimura, para quem cada leitor de haicai
precisa ser um poeta em potencial.
Talvez por isso,
Oldegar tenha lançado tantas sementes em torno de si.
Se já não produz novas
obras, seus passos são seguidos por sua irmã caçula, minha tia, Joanna Angélica
Vieira Ribeiro, Jane Ribeiro. De suas mãos, começaram a brotar livros,
inclusive o primeiro de haicais e, agora, o segundo. Já é um nome respeitado na
cultura baiana e nacional. Outros projetos a animam. É um novo motivo de
orgulho.
Paulo já tem obra
publicada na área a que se dedica, a preparação para o ocaso da vida. Sua
companheira, Dora, é também uma escritora, já com espaço conquistado no
mercado.
Oldegar não descansava.
Orientou meu filho Iuri e sua mulher, Gil, a como produzir haicais. E os dois
se divertiram muito com as suas próprias poesias. Minha filha Miliane, além de
dançarina, é também uma poetisa e tem hoje como marido o jovem Tássio, produtor
cultural e poeta. Até sua filha, minha neta Inana, já foi premiada por um poema
de sua autoria.
É assim que volto à
minha oração. Fomos privilegiados pelo berço que nos foi atribuído. Nascemos e
crescemos em uma casa de cultura, de fé, de compromisso. Decerto não sou capaz
de lembrar trechos daquela obra, mas ler, ainda adolescente, Shakespeare,
Bandeira, Castro Alves, Camões, Ruy Barbosa, Drummond, Cassiano Ricardo, Viana
Moog, Câmara Cascudo, Dias Tavares, Melo Neto, Machado, Alencar, Graciliano,
Guerreiro Ramos e por aí vai. Lorca, Agatha Christie, Cortazar, Garrett, Garcia
Marquez, Llosa. Marx, Althusser... Eita! Quanta coisa mais. Ter que ler
coleções inteiras em nossos encontros de educação sexual.
Tudo isso nos atribuiu
privilégios. O principal deles talvez tenha sido olhar o mundo da cultura
baiana, brasileira e universal com a consciência (e a lamentação) de não se ter
lido praticamente nada.
E quem, ao lado de
privilégios, tem compromissos – como os tinha Oldegar – não pode esquecer de
que temos de transformá-los em direitos. Por isso, tenho convicção de que ele
se sentiria recompensado com a universalização da educação e, sempre zeloso com
o seu povo, com medidas como o direito de cotas.
Ao escrever um artigo publicado
pelo jornal A Tarde (quando tive
atenção especial do professor Edivaldo Boaventura), na semana em que se
comemorava o seu 100º aniversário, contei episódio do início de minha
adolescência. Mostrei minhas poesias e pedi sua opinião. Ao cobrá-la, dias
depois, ouvi: “Você precisa ler mais”.
É claro que nunca me
dispus a publicar poesias, embora confesse que, secretamente, continuo pondo em
forma o meu encantamento, as minhas descrenças, as minhas esperanças, as minhas
reflexões.
Ontem, ao escrever esta
mensagem, lembrei dos últimos dias de meu pai e saiu-me mais um haicai.
PRÊMIO?
Deslumbrou-lhe
o mundo.
E
Deus fechou-lhe os olhos
Para
relembrar.
Ao redigir esta comunicação,
entendi que ela deveria ter ao menos um haicai de meu pai. Pensei na iniciativa
de seus pares de imortalidade, em nossa gratidão por isso, no importante
discurso da professora Yeda Pessoa – belo na forma e brilhante no conteúdo – e
vi que é o caso de recitar um de seu “Folhas de Chá”. E com a alegria de que
estamos negando justamente o título dele:
O
ÚLTIMO DESEJO
Nada
mais desejo...
o
silêncio, a grande paz
dos
abandonados...
Fernando Tolentino
Salvador, 18 de junho de 2015
Linda homenagem, querido amigo. Fiquei emocionada com as tuas palavras e com a linda Família que tens. Parabéns! Repito:- escreve logo teus poemas e continuas lendo. Grande abraço da amiga Vanessa.
ResponderExcluirAgora estou aqui.
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