É quase chover no molhado lembrar que a eleição de 2014 foi uma guerra.
Depois de eleições
concorrenciais em que Lula foi derrotado (1989, 1994 e 1998) e na que ganhou
para José Serra (2002) e surpreendeu as classes abastadas do País, foram assim
todas as que se seguiram: a da reeleição de Lula (2006), em que se tentou
“sangrá-lo” durante três anos; e a da eleição de Dilma (2010), de que vale lembrar
o jocoso episódio do atentado em que Serra teve que ser socorrido após ser
vitimado pelo arremesso de uma bolinha de papel.
É compreensível. Não dá
pra dizer que fossem eleições em que explicitamente se enfrentaram classes
sociais, mas assim foram vistas pelos segmentos endinheirados da sociedade.
Afinal, era simbólico que enfrentassem um candidato egresso do operariado e da
luta sindical, um ex-retirante, sem formação superior. Na sua sucessão, uma
ex-guerrilheira, ex-presa política e, como agravante, uma mulher. Não era só
isso, esses candidatos traziam a marca do Partido dos Trabalhadores, tinham o
apoio dos movimentos sociais mais mobilizados e empunhavam um programa de
mudanças, ainda que não radical.
Se isso já era suficiente para alarmar os
grupos que se beneficiam do Estado desde 1808 (em alguns casos desde 1500),
insuportável era ver a liderança do Poder Executivo permanecer em mãos de
militantes do PT durante 12 anos. Mesmo que o arranjo de forças políticas que
os sustentassem não tenham permitido que se pusesse um fim na drenagem de
recursos públicos em favor dessas classes.
A antevisão de mais quatro anos com Dilma
Rousseff, fechando um ciclo de 16 anos e abrindo espaço para outros tantos, era
o suficiente para levar à beira do infarto esses setores dominantes da
sociedade.
Basta lembrar alguns
detalhes. A cúpula do Poder Judiciário estará renovada, pouco restando da
herança do período anterior. O novo período de governo poderia permitir que o
PT ingressasse no fechado clube do Tribunal de Contas da União. Abria-se espaço
para uma consolidação dos movimentos sociais, que poderiam ganhar condições de
maior influência nas políticas públicas. Esse longo tempo de governos sob a
direção política do PT tenderia a transformar em irrevogáveis os seus vários
programas de distribuição de renda e seria fatalmente moldado um novo desenho
na sociedade brasileira. Talvez mais do que tudo isso, um governo sob a
liderança petista faria a condução da exploração do Pré-Sal, colocando a
Petrobras e o Brasil no grupo dos grandes produtores de petróleo do mundo. Não
bastante, o novo governo seria eleito com o resgate de bandeiras muito caras à
esquerda brasileira, como a reforma política (com financiamento exclusivamente
público de campanhas) e a regulamentação da mídia.
Na retaguarda dessas
classes abastadas do Brasil, está a sombra da política hegemonista dos Estados
Unidos. Não é apenas o Brasil que tem um governo identificado com teses de
esquerda na América Latina. Já estão neste campo a Bolívia, o Uruguai, a
Venezuela, a Argentina e mais recentemente o Chile, para não falar de países de
menor potencial econômico e militar. Aos olhos estadunidenses, o Brasil surge
como um fiador político da manutenção da democracia nesses países.
É pouco? Lembre-se que
o Brasil passou a integrar, no período petista, o grupo de países efetivamente
emergentes, já se situando como sétima economia mundial e a caminho de subir
novos degraus nesse ranking. Com uma
política externa independente, articula-se com os outros países que realmente
crescem no mundo (China, Índia, Rússia e África do Sul) e constitui o BRICS, um
bloco que ameaça a hegemonia dos Estados Unidos e o próprio dólar como padrão
monetário internacional.
O Brasil, com o PT,
revela-se cada vez mais como um país que fala alto no cenário internacional. Pior,
sua articulação com aquelas potências emergentes e a postura solidária com
diferentes blocos de países menos desenvolvidos leva a que eles sintam-se em
condições de se apresentarem nos fóruns internacionais com os peitos inflados e
os narizes erguidos.
COMO SE MUDA
UM RESULTADO
Ninguém pode esquecer a
decisão absolutamente insólita da Veja de antecipar em três dias o lançamento
da edição que circulou pouco antes do segundo turno, com uma capa
cuidadosamente desenhada para influir no resultado eleitoral. Uma denúncia
alarmante, a que não se teria como responder tempestivamente, baseada em uma
informação que jamais veio a se confirmar. A de que Dilma e Lula teriam sido
citados na delação premiada de presos envolvidos em corrupção na Petrobras. A
“verdade” da Veja foi intensamente repercutida na grande mídia brasileira,
especialmente nos veículos do grupo Globo. No domingo da eleição, a capa da
revista, reimpressa aos milhões, foi distribuída em várias capitais. Foi como a
multiplicação por mil megatons do episódio da filha que Lula teria rejeitado,
em 2002. Uma armação recentemente confessada por seu autor.
Nem esqueçam que não
ficou nisso. No dia da eleição, as emissoras de rádio de quase todo o País
repetiram insistentemente o boato matreiramente veiculado em redes sociais de
que o denunciante citado pela Veja, ainda que preso, teria sido envenenado pelo
PT.
Quantos por cento dos
eleitores teriam sido contaminados por essas duas ondas de mentiras? Avalia-se
que não menos de oito por cento dos eleitores de São Paulo, o contingente de
maior número no Brasil.
Ao se aproximar o fim
da apuração, Aécio Neves chegou a reunir seus cardeais, entre outras
celebridades, e teria havido uma comemoração precoce, desmentida pelo resultado
final. No mínimo o portal UOL chegou a publicar a sua vitória.
Ninguém imaginava que
fosse diferente, em uma eleição tão ideologicamente polarizada quanto aquela.
Dilma fez a disputa ornamentada por uma sopa de letrinhas: PT, PMDB, PSD, PP,
PR, PROS, PDT, PCdoB, PRB. O primeiro turno teve dez concorrentes, dos quais
sete saltaram para o palanque de Aécio no segundo turno. A única exceção foi
Luciana Genro, que não apoiou Dilma, mas seu partido recomendou que não se
votasse em Aécio.
Somente a soma dos
votos obtidos por Marina Silva no primeiro turno já davam a Aécio a expectativa
de mais de 57 milhões de votos, cerca de 6 milhões a mais do que realmente teve.
O que se viu, no entanto, mesmo enfrentando toda essa unidade dos opositores e
o exacerbado (e nem sempre ético) respaldo da grande mídia, foi Dilma dar um
pulo, de 43.253.800 para 54.483.045. Mais de 11 milhões de votos, representando
cerca de 10% dos eleitores.
E daí? A estreita
diferença de votos permitiu que se instalasse o mantra na grande imprensa de
que o Brasil saíra dividido da eleição. Não faltou quem traçasse linhas
divisórias entre as regiões e buscasse responsabilizar programas sociais pela
vitória de Dilma, mesmo as evidências desmentindo tais análises.
As semanas seguintes
viram ódio escorrer de olhos e lábios de eleitores idiotizados pelo nível em
que se fez a campanha aecista e pelo estímulo à atitude preconceituosa insinuada
pela grande mídia.
O DNA golpista da
candidatura de Aécio Neves não esperou para se manifestar. O PSDB tentou
questionar a contagem dos votos e, como não conseguisse nada, tentou impugnar o
resultado.
ONDE SURGE O
GOLPISMO
Essa postura e o
resultado mais estreito que em derrotas anteriores estimularam duas vertentes
de inconformismo. Um grupo resolveu simplesmente melar o jogo e, de uma
tentativa inicial de questionar o resultado, partiu para uma campanha pura e
simples de derrubar a presidenta da República. Lançou a campanha do impeachment, esgrimindo falsamente o
que constaria de delações premiadas que a grande mídia passou a dar como
ocorridas. A insistência foi tamanha que de nada adiantou a abertura da
verdadeira lista de políticos citados pelos presos. Há sete petistas e sete
pemedebistas, ao lado de 32 políticos do PP, além de um do PTB e um do PSDB.
Não consta qualquer
menção a Dilma ou mesmo a Lula e, paradoxalmente, constava o de Aécio, retirado
por ponderação do procurador geral, por se tratar de denúncia relativa a
episódio de outra estatal. Por outro lado, as denúncias evidenciam que o
processo teria se originado no governo de Fernando Henrique, do PSDB. Mais, que
a roubalheira teria sido viabilizada por decisão de seu governo, quando eximiu a
Petrobras de fazer aquisições passando pelo filtro da Lei de Licitações.
SÓ SE VÊ O
QUE SE QUER
Nada disso adianta. Não
se quer fatos, mas resultados. Ou seja, anular a eleição de 2014.
O outro grupo já não se
prende à eleição de 2014. Tenta antecipar a disputa de 2018, abrindo claramente
o jogo de que pretende “fazer Dilma sangrar” durante os próximos quatro anos.
Em outras palavras, não permitir que ela governe. Esse grupo aproveita o fato
de que o resultado obtido por Dilma ficou muito distante das eleições
legislativas.
Aquela sopa de
letrinhas desenhou-se de forma totalmente diferente nas eleições estaduais e
grande parte das legendas que nominalmente apoiavam Dilma, juntaram-se a
candidatos adversários do PT em nível regional.
Em um pleito mais marcadamente
influenciado pelo poder econômico que em quaisquer dos anteriores, elegeram-se
composições nitidamente conservadoras para a Câmara dos Deputados e para o
Senado. Ou seja, Dilma tem uma base de apoio aparentemente forte, se olhada
pelas plaquetas de partidos levantadas pelos parlamentares. E assim, por sinal,
é compelida a retalhar a composição dos cargos de governo. Mas não conta com
essa sustentação para as medidas que precisa aprovar.
A fragilidade dessa
base se torna muito maior se ela for mantida no canto do ringue, constantemente
ameaçada de perda do mandato.
No meio desse lodaçal
de políticos fisiológicos e vinculados a poderosos grupos econômicos, está uma
grande quantidade de parlamentares disposta a usar essa fragilidade de apoio
para mercadejar interesses inconfessáveis.
O QUE ESTÁ
REALMENTE EM JOGO
É nisso que crê a
grande mídia. É essa a estratégia da oposição. É a isso que serve a
disseminação do ódio. Nesta semana, diante da sanção de Dilma à importante lei
que tipifica o feminicídio,
definindo-o como crime hediondo, um juiz federal espalhou na rede Facebook uma piada de péssimo gosto, em
que sugere que os brasileiros quem matar Dilma. Na véspera, justamente quando
se comemorava o Dia Internacional da Mulher, uma charge de Chico Caruso, no
jornal O Globo, tem o mesmo conteúdo.
E há quem diga que não
falta o encorajamento de interesses externos. Basta dizer que a processo da
Petrobras tende a impedir que contrate qualquer empreiteira brasileira, sendo
forçada a buscar serviços em empresas de outros países.
Quem preferir não precisa
entender.
Mas cada brasileiro estará
dividido neste fim de semana. E certamente durante mais algum tempo. Participa das
manifestações convocadas pela oposição para o dia 15 e favorece o golpe e, no
mínimo, a inviabilização do funcionamento do País. O golpe significa em
primeiro lugar a ruptura com a ordem democrática, com consequências
imprevisíveis. Quem viveu ou se informou sobre o que se passou a partir de 1964
tem uma ideia clara de até onde podemos ir. Representa também o encerramento de
uma fase de conquistas dos trabalhadores e setores populares, o fim de
programas sociais que reduziram as disparidades sociais e permitiram que
milhões de famílias vislumbrasse um novo tempo. Desfaz a esperança de que o
Brasil possa ter mudanças fundamentais inclusive para que não continuemos a conviver
com a corrupção sempre de braços dados com a política, pela garantia da
investigação de toda e qualquer denúncia que apareça, mas principalmente por
mudanças fundamentais na ordem institucional, como a reforma política e a
democratização do sistema de comunicação. Enfim, retira o poder de iniciativa
política de Dilma Rousseff e o entrega para as forças que elegeram os
presidentes da Câmara e do Senado, Eduardo Cunha e Renan Calheiros, ambos
envolvidos até o pescoço com a corrupção, inclusive na Operação Lava-Jato. São
esses os que vão marchar no dia 15.
Ou se levanta para defender
a democracia (e o resultado das urnas), a Petrobras e os interesses nacionais e
populares. Quem tiver estes compromissos está convocado para as manifestações
da tarde de hoje em todo o Brasil.
De que lado você está?
Fernando Tolentino
Estou do lado da democracia.Vou à rua clamar contra a corrupção, pedir justiça, a prisão dos envolvidos nos escândalos existentes no nosso país, o fim do privilégio dos políticos e o cumprimento das ações prometidas na época de campanha. Tania
ResponderExcluirNo meio de tanta gente, tomara que alguém tenha percebido a presença de alguém com tais intenções.
ResponderExcluirAliás, a prisão dos envolvidos na Lava-Jato não depende de manifestação, mas de um processo judicial, que por sinal já começou. Não sei se perguntou a algum dos outros manifestantes se eles favoráveis à prisão de envolvidos no Mensalão do PSDB, na Privataria Tucana, no Trensalão de São Paulo e do DF, no escândalo de Furnas, no do Banestado, na lista do HSBC, no escândalo de Carlinhos Cachoeira, na compra de votos da reeleição. Imagino que não, pois teria sido trucidada se perguntasse sobre só um desses escândalos.
O fim dos privilégios dos políticos (não sei exatamente quais) é matéria de decisão de cada um dos órgãos do Poder Legislativo: Senado, Câmara dos Deputados, Assembleias Legislativas, Câmaras de Vereadores. Não notei que isso estivesse na pauta de um só dos outros manifestantes.
Quanto ao cumprimento das ações prometidas em campanha, não sou tão ansioso, mas acho legal que já as quisesse cumpridas após dois meses e meio da posse.