Fernando
Tolentino
Sempre
achei que corno não é xingamento,
salvo por pretender sê-lo.
Afinal,
não seria mesmo possível querer culpar alguém pelo julgamento que se faz do
comportamento de outro, no caso, a sua companheira. E corno é justamente isso e
não mais do isso. Considera-se condenável o comportamento de uma mulher e
resolve-se que isso é um xingamento para o seu companheiro. Ora bolas!
O ator e
escritor Gregorio Duvivier publica
o importante artigo Xingamento na edição da Folha de São Paulo de hoje (6 de janeiro de 2014),
em que aborda, de um ponto de vista sociológico, o fato de que os brasileiros
(mas não só) xingam as mulheres referindo-se sempre à sua pretensa “intensa
vida sexual”: puta, piranha, vadia, vagabunda, quenga, rameira, devassa,
rapariga, biscate, piriguete.
A alternativa
é encontrar uma forma de desqualificá-la no que seriam os seus atributos de mulher
atraente, desejável: feia, gorda e outras variações.
Isso é
tão disseminado, lembra, que as próprias mulheres xingam outras apelando para o
mesmo tipo de caracterização.
E, mais,
quando se quer (mesmo as mulheres) xingar os homens de uma forma extremadamente agressiva, Duvivier mostra que se apela não para a sua
própria desqualificação, mas a de mulheres a que está ligado, sua mulher ou sua
mãe: corno e filho da puta.
Grande sacada do articulista. Por isso, fiz questão
de republicar o artigo neste Blog. Veja abaixo.
Mas
quero abordar outro aspecto, como que a completar a reflexão de Duvivier. E do jeito que iniciei
este texto. Contestando a força desse tipo de xingamento, que se fundamenta
exclusivamente em uma visão retrógrada de relacionamento homem-mulher. A mulher
como objeto e, marcadamente, como propriedade do homem.
É
aí que se situa corno como
xingamento. Alguém é corno por lhe faltar capacidade para submeter a mulher,
seja por seu domínio, seu controle ou por sua competência como macho. Daí, se a
mulher resvala para uma relação alheia ao casal, o objeto de escárnio é o
homem. Veja-se: lavar a honra do macho. Ele é quem estava desonrado, embora o
deslize, digamos assim, tivesse sido dela. Por isso, nas comunidades mais
tacanhamente atrasadas, usava-se há não tantos anos “lavar a honra com sangue”.
O mais grave, a explicação era tida como suficiente para inocentar o autor de
um assassinato.
Mas,
saltando para um outro patamar de exame da questão, o que se pode supor estranhamente
é que alguém xingado de corno tem como companheira uma mulher no mínimo
atraente. A única hipótese plausível de que um homem, se ela não for realmente
desejável, enfrente os riscos de buscar relacionar-se com a mulher alheia é a
mais vil rivalidade, a competição, a tentativa de submeter o companheiro dela.
E, neste caso, parece-se que o desvio de caráter está nele e não no companheiro
da mulher. Fora isso, a relação extraconjugal tem como causa primordial o desejo recíproco. E, portanto, a atratividade da mulher. Daí, sem meias palavras, o que a sociedade tem como xingamento é, nesse caso, a mais deslavada comprovação de despeito.
Por
fim, o uso da expressão como xingamento passa por cima do direito do casal de
dispor livremente de sua própria relação. Em outras palavras, a moral do casal
pertence exclusivamente a eles. Não é alguém alheio à relação que vai ter o
direito de julgar se a relação é condenável caso ela, por decisão do casal, seja
aberta.
Pra
mim, portanto, o xingamento de corno
é uma perfeita idiotice.
Não
poderia deixar de estender a análise para a outra variância suscitada por Duvivier , o filho da puta. De novo, usa-se
como xingamento um atributo que está longe de quem se quer efetivamente
atingir. Além disso, regulamentada ou não, socialmente aceita ou não, a
prostituição é uma profissão. E não conheço, salvo na literatura, um só estudo
sério em que se ela se afirme como fruto de uma vocação, algo a que alguém se
destine por sua própria índole.
Ainda que a mulher (ou o homem, pois não dá pra ver
prostituição como exclusivamente feminina) tenha especial interesse no sexo,
mesmo que tenha sensualidade acima da média, não terá sido esta a razão de
abraçar a profissão. Afinal, não é preciso profissionalizar-se para ter uma
vida sexual intensa.
Mais fácil é identificar, em comunidades exageradamente
conservadoras, mulheres levadas à prostituição por causa de pais
preconceituosos, que não as aceitam no convívio familiar quando descobrem que
iniciaram a vida sexual. Mesmo nesses casos, o sexo não é causa, mas
circunstância. Essas pobres mulheres são (ou eram) na verdade expulsas de casa,
restando a prostituição como única porta aberta para a sobrevivência.
Portanto,
a prostituição não é motivo para execrar alguém. No máximo para a comiseração. Ter
uma mãe prostituta, então, não pode ser motivo para a condenação de ninguém. Pode
ser motivo para a solidariedade pela condições que a terão levado a essa opção e pelas condições de vida a que estiveram relegados os seus filhos.
Absurdamente,
o xingamento é tido como a suprema desqualificação de um homem. A ponto de ser
aceito como tal até por quem seja filho do infortúnio. Como dito na conhecida
quadra (pesquisei e não encontrei o autor, aceitando a contribuição de quem conhecê-lo,
para enriquecer o texto): “Do pai, que nunca viu, tem o retrato na sala; mas,
da puta que o pariu, não tem retrato, nem fala.”
Achei o seu texto. Até para ser corno o homem precisa da mulher . rs.
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