Hoje não
é um dia qualquer ao menos na lembrança de quem está com pelo menos 40 anos.
Lembra um momento que jamais desaparecerá da História Política do Brasil.
O ano de
1984 apenas começava, mas já se sentia certa inquietude nos meios políticos.
Para nós, militantes de esquerda e da resistência democrática, vislumbrava-se
uma fresta de luz na esperança de fecharmos definitivamente o período de
ditadura que insistia em se impor, manipulando toda a sorte de instrumentos. Do
apoio de grande parte da mídia hegemônica à manipulação de casuísmos
eleitorais, da manutenção de amplos bolsões de votos conservadores à propaganda
ou à repressão pura e simples aos movimentos de contestação.
Havia
dois motivos para esse fio de esperança. Sentia-se na camada urbana das
cidades, em um país já fortemente urbanizado, que não se suportava mais a
ditadura. E, finalmente, os grupos e partidos políticos progressistas e
comprometidos com a democracia, com raras e insignificantes exceções,
articularam-se taticamente em torno de uma meta, o que não se verificava desde
a luta pela anistia.
Recém-eleito
pelo PMDB do Mato Grosso, em 1982, o deputado Dante de Oliveira resolvera
apresentar uma Proposta de Emenda à Constituição reinstituindo eleições diretas
para presidente da República. Novato – e talvez ainda despretensioso na sua
iniciativa – chegou a receber assinaturas de jornalistas, seguranças e outros
funcionários do Legislativo ao coletar as de deputados e senadores que
precisava para alcançar o número mínimo para dar entrada na proposição. Sua
emenda acabaria sendo a meta desse acordo suprapartidário e estuário das
memoráveis mobilizações políticas de 1984, trinta anos atrás.
A
campanha das “Diretas Já” inovou do ponto de vista de organização política no
Brasil. Por sua grandeza, acabou abrindo um imenso espaço para a criatividade,
mas a sua concepção não foi improvisada. Os publicitários entenderam que o
primeiro momento deveria ser no que definem como uma praça de testes. O Brasil
tem duas grandes cidades com tal característica: Brasília e Curitiba. Brasília
por ser uma espécie de síntese do País e Curitiba pela semelhança de sua
sociedade com a de São Paulo. A receptividade de produtos pode ser, portanto,
testada nessas duas cidades sem serem queimadas com um lançamento global. A
“Boca Maldita”, em Curitiba, foi escolhida como cenário de teste. O comício,
realizado em 12 de janeiro, atraiu cerca de 40 mil pessoas. O sucesso da
campanha estava assegurado.
Jornalistas
e então militantes do PCdoB, eu e Moacyr de Oliveira Filho, o Moa, resolvemos
participar do grande comício marcado para São Paulo, em 25 de janeiro, data em
que se comemora o aniversário da cidade. Meus filhos mais velhos – Iuri e
Miliane – já viviam em Salvador e estavam passando férias comigo, em Brasília.
Resolvi levar Iuri, o mais velho, então com 11 anos.
Embarcamos
à noite e chegamos a São Paulo na madrugada. Moa é paulistano, de modo que não
haveria a menor dificuldade para nos orientarmos. Fizemos uma visita breve à
sua família, dali fomos à sede do PCdoB e chegamos cedo à Praça da Sé. No
caminho, a ansiedade aumentava a cada minuto ao vermos grandes grupos se
deslocando pelas ruas, a pé. Levavam suas próprias faixas e muitos haviam
confeccionado camisetas alusivas ao evento. Ao chegarmos, só havia militantes
de partidos políticos. Já tínhamos tido uma ideia de como se daria isso quando
passamos pelo PCdoB. Todos os partidos, inclusive os ainda clandestinos, tinham
certeza de viver um momento histórico e queriam deixar suas marcas para a
eternidade. Era preciso ocupar lugares destacados, em que as bandeiras,
símbolos e faixas aparecessem nas fotografias.
Essa
sadia disputa por evidência, uma emulação que contribuía para a mobilização
popular, ajudou também a criar o clima de festa da democracia, quando a Praça
da Sé explodiu de participação, com não menos de 300 mil pessoas.
A
organização e as dimensões do comício eram impressionantes. O palanque tomava
toda a frente da Igreja e tinha uma altura entre 5 e 8 metros. Nele, várias
dezenas de artistas, comunicadores, políticos, sindicalistas surgiam junto ao
conhecido narrador esportivo Osmar Santos, que fazia a apresentação, ou às
lideranças dos partidos oposicionistas: Ulysses Guimarães e Tancredo Neves
(PMDB), Luís Inácio Lula da Silva (PT), Leonel Brizola (PDT), além do então
governador de São Paulo, Franco Montoro.
A
multidão se amontoava para identificar os seus ídolos e se deslumbrar com a
aparição deles. Iuri assinalava a presença de cada celebridade. “Olhe, pai,
Chico Buarque”, “Fernanda Montenegro, pai”, “aquele é Paulinho da Viola”. E
desfiava, um a um, aquela gente famosa: Fafá de Belém, Milton Nascimento,
Carlos Zara, Bete Mendes, Bruna Lombardi...
Cada uma
das personalidades famosas deixava claro o seu apoio àquela luta. Cada música
era uma convocação a cerrar fileiras para exigir a eleição direta para
presidente. Os grandes nomes da política brasileira discursavam nesse sentido e
manifestavam a confiança de que, mesmo com a maioria governista, seria possível
obter a vitória das diretas se a multidão enchesse as ruas do País.
O povo
respondia entusiasmado, alternando palavras de ordem propostas pelo próprio
Osmar Santos, pelos partidos ou por grupos que as levavam ou criavam na própria
praça. O grande grito de guerra: “1, 2, 3, 4, 5 mil; queremos eleger o
presidente do Brasil!”
A saída
da Praça da Sé era ainda um momento de incontrolável emoção para aquela gente.
Na estação ou no metrô, desconhecidos se congratulavam, alguns tinham lágrimas
nos olhos, havia quem puxasse palavras de ordem dentro dos vagões, outros riam
sem parar. Todos comentavam, exultantes, sobre o que presenciaram, não faltava
quem observasse que estavam escrevendo, nas ruas, uma nova história para o
Brasil. Ditadura, nunca mais!
Já de
volta à rodoviária, esperávamos o horário da saída do ônibus para Brasília
quando começou, nas televisões instaladas no local, o noticiário local da TV
Globo. Aguardávamos ansiosamente as imagens daquela grande festa democrática.
De repente, lá estava a imagem do palanque: Lula, Brizola, Ulysses, Tancredo,
Osmar Santos, Montoro, várias celebridades da cultura e das artes. E o
apresentador dizia que, na Praça da Sé, políticos de expressão nacional e
grande número de artistas haviam participado, diante de grande público, de uma
festa pelo aniversário de São Paulo. É impossível refletir a revolta das
pessoas que ouviam aquilo.
De volta
a Brasília, já em casa, Iuri contava excitadíssimo: “Contei quase quarenta
artistas famosos!” E citava um a um: Martinho da Vila, Elba Ramalho, Raul
Cortez, Dina Sfat, Irene Ravache, Ziraldo, Lucélia Santos, Christiane
Torloni...
Ouvi uma
das primeiras repreensões que recebi, como pai, e que continuo ouvindo até
hoje, pois jamais fui perdoado. Miliane não entendeu que havia razões de
segurança – inclusive por não se poder prever como reagiriam as forças da
ditadura – quando escolhi a companhia do filho, um pouco mais velho. Ou a maior
facilidade, para um pai, de lidar com a companhia de um menino, ao virar duas
noites em ônibus e passar um dia inteiro em uma cidade diferente, sem acesso a
banheiros e outras comodidades. Nem notava que a empolgação do irmão com a
presença das celebridades, como a de todo o povo presente, não anulava o
envolvimento com a significação política do comício, que deve lhe acompanhar
até hoje. “Está vendo, meu pai? Você
preferiu levar Iuri do que eu, que sou muito mais politizada.” Com apenas dez
anos, Miliane questionava sua sensação de exclusão, denunciando que o irmão
prestara mais atenção aos artistas que à importância política do comício.
Fernando Tolentino
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