Estamos na hipotética
virada do ano 2065 para 2066. Lúcido e saudável (claro), estou cercado de
jovens curiosos, que então estarão preferindo refletir a partir da experiência
dos velhos que se embriagar em manchetes de TV. Se ainda houver televisão...
Uma pena. Mas muitos
dos amados leitores já não estarão conosco. Não custa contar como as coisas
estarão, até porque seus netos e filhos viverão nessa época.
Os meus jovens
interlocutores estarão vivendo em um país democrático, com instituições
sólidas. Poder Judiciário que funcionará, além de independente. Independente do
poder econômico, dos políticos de quaisquer partidos e da mídia. Legislativo
constituído por políticos eleitos segundo a preferência da população por
partidos políticos de que conhecem a essência e em que acreditam, constatado o
respeito aos seus compromissos programáticos e eleitorais. Políticos eleitos
sem a influência do poder econômico e, por isso, sem precisar colocar os seus
mandatos à disposição de grupos empresariais ou interesses escusos. Poder
Executivo com mandatos respeitados sucessivamente, presidentes completando os
seus períodos governamentais, sendo aplaudidos ou censurados ao longo deles,
conforme estejam comprometidos com os seus programas e efetivamente obtenham
resultados favoráveis para a maioria da população.
Enfim, os brasileiros
viverão em uma sociedade plena de direitos. Em que o crime será uma exceção, será
sempre apurado e punido, mas o peso das penas ou a sua aplicação não será
condicionado às condições pessoais dos criminosos ou suas vítimas: a cor da
pele, o gênero, a orientação religiosa ou sexual, o poder econômico ou
político.
PENSANDO
SOBRE O PRESENTE
Nessa conversa entre
2065 e 2066, o assunto será o que houve no Brasil de hoje. Afinal, serão jovens
informados e conscientes. Natural, com o acesso universal à educação de
qualidade, com escolas equipadas, professores preparados e adequadamente
remunerados. Quer mais? A informação será um direito inquestionável, não sendo
cabível a sua sonegação ou sua malversação pela mídia.
E informação traz curiosidade.
Ainda mais em um bate-papo com alguém que viveu intensamente os dias de hoje.
-
Em um país com longos anos de ditadura, qual foi o ano mais difícil?
Tenho que explicar à
jovem estudante como foram duríssimos os anos de ditadura, a censura aos meios
de comunicação e à produção cultural, o rigoroso controle sobre as
universidades, o funcionamento do Judiciário. No Parlamento, cassações de
mandatos por posições mais contundentes,
fechamento do Congresso e mudanças de regras eleitorais quando do crescimento
da oposição. O movimento de estudantes, trabalhadores ou outros grupos sociais
seriamente reprimido. Depois, a quase inevitável opção pela luta armada.
Oposicionistas presos, torturados, mortos, exilados. No período mais duro, os
órgãos de espionagem farejando qualquer movimentação ou emissão de opiniões,
mesmo nos púlpitos das igrejas ou nas salas de aula.
Seria impensável que
algum ano viesse a ser tão difícil. Mas a luta pela preservação do domínio sobre
o Estado tem formas variadas. Superada a sustentação pelas armas, viriam formas
mais sutis para brecar a inclusão social e a democratização da sociedade.
O que parecia
impossível acabou ocorrendo: a eleição de presidente de esquerda, oriundo da
classe operária. Dobrou o mandato e, mais, conseguiu eleger a sua sucessora. É
pouco? Uma mulher e com passado de militância clandestina contra a ditadura. Ao
final de quatro anos, ela se reelegeu, mesmo no momento em que chegara com
força ao Brasil a maior crise econômica da era capitalista desde 1929.
Mais um momento de
curiosidade.
-
Com 12 anos e a garantia de mais quatro com presidentes de compromissos populares,
como o senhor fala deste ano difícil?
Não esqueçam. O Brasil
vivia o que se chamava “presidencialismo de coalizão”, uma espécie de parlamentarismo-presidencialista, herança
da Constituinte de 1988. Os presidentes tinham compromissos populares, mas a
correlação de forças não lhes era favorável. A maioria do Congresso Nacional
era conservadora durante todos esses anos. A eleição exigia uma verdadeira
fortuna para quase todos os seus membros. Quem bancava eram os grandes grupos
econômicos e os ruralistas, que depois se apropriavam dos mandatos. Somava-se
ao lado conservador uma forte bancada eleita por igrejas. O jeito era o
presidente compartilhar o poder com parte substancial desse conjunto de forças.
Ou seja, dividir poder, reduzir expectativas de mudanças. E a cada eleição o
poder econômico ampliou a sua presença no Legislativo, chegando ao pico em 2014.
Pensem ainda que a
grande herdeira do poder militar foi a mídia, em grande parte controlada por
sete famílias. E o Brasil era dos raros países em que um mesmo grupo podia
controlar TV, rádio e jornais. A chamada propriedade cruzada.
O grande enfrentamento
veio em 2014. Aproveitaram-se justamente de que os governos populares haviam
criado instrumentos de transparência e apuração efetiva da corrupção e usaram
até onde não mais pudessem as investigações sobre malversação de recursos na
Petrobras. Manchetes caluniosas envolviam os dois presidentes populares. O
noticiário sublinhava a participação de membros do seu partido e ofuscava a
presença dos demais. Houve reeleição, embora com pequena margem de votos.
Já imaginaram o que
veio pela frente? Os derrotados chegaram a comemorar precipitadamente a vitória
e não se conformaram. Pediram recontagem de votos, alegaram irregularidades em
contas de campanha, radicalizaram o discurso, disseminando ódio de classes,
racial e até regional. Tudo em vão. As ameaças de interrupção do mandato vieram
imediatamente. O maior partido conservador já encomendava um parecer sobre a
possibilidade de “impeachment” da presidenta eleita apenas 15 dias após a posse.
As classes dominantes tinham como inadmissível mais quatro anos de afirmação de
um projeto de mudanças.
De um lado, instalou-se
o cisma onde o governo tinha menor expressão, no Congresso Nacional, eleito
pelos conservadores para a Presidência da Câmara dos Deputados um adversário
declarado, político que utilizara um enorme orçamento de campanha e elegeu mais
de duzentos deputados. Inescrupuloso, seria capaz de aplicar quaisquer golpes e
o fez. Os partidos conservadores acuavam o governo com a exigência de cargos para
apoiá-lo e impunha-se a redução do número desses mesmos cargos. O presidente
instituiu a “pauta bomba”: aprovação de projetos que aprofundassem as
dificuldades orçamentárias do governo. Enquanto isso, travava votações
necessárias à gestão e articulava a derrota de outras medidas indispensáveis
para isso. O ano legislativo de 2015 foi praticamente perdido assim.
As páginas dos jornais
mais expressivos e dos grandes canais de TV sonegavam notícias positivas, por
mais expressivas que fossem: o Brasil ter saído do mapa da fome, ter retirada
da extrema pobreza uma população superior à de Angola ou de Minas Gerais
inteira, grandes obras e ações governamentais ou a forma elogiosa como o
governo era tratado por líderes mundiais. Os espaços eram reservados a
exageradas conjecturas negativas na economia, derrotas politicas do governo,
vazamentos do inquérito de corrupção sobre a Petrobras com envolvimento de
pessoas ligadas ao PT ou ao governo, denúncias variadas contra órgãos
governamentais e, claro, vasto espaço para as ações oposicionistas. Exceção dos
três dias de carnaval, não houve dois dias seguidos em que as manchetes não
buscassem acuar o governo.
Enquanto isso, um
imenso esforço era feito para colocar a população nas ruas em manifestações que
criassem o caldo de cultura para a interrupção, por qualquer meio, do mandato
presidencial. Cobertura de TV ao vivo, mudança de horários em jogos de futebol
e até roleta livre em metrôs. A maior foi em 15 de março, realizada
simultaneamente em quase todas as capitais e algumas grandes cidades. Outras
viriam, em 12 de abril, em agosto, no dia 7 de setembro e em 13 de dezembro.
Foram repetidas paralisações de caminhoneiros por duas vezes no mesmo ano, uma
repetição da tática usada em 1973 no Chile nas vésperas do golpe contra Allende,
como forma de provocar revolta nas cidades por causa do desabastecimento.
Esse clima de
insatisfação generalizada abria espaço para manobrar-se no Poder Judiciário,
onde se buscava questionar a própria eleição, por alegadas irregularidades em
contas de campanha. Esgotada essa possibilidade, foi levantada a tese de que as
doações legais decorriam dos esquemas de corrupção da Petrobras. Paralelamente,
articulava-se no Tribunal de Contas a denúncia de que teria havido crime de
responsabilidade pelas chamadas “pedaladas“, manobra de fechamento de contas
anuais realizadas em todos os governos anteriores, como também nos governos
estaduais. Ainda assim, isso ocorrera em um mandato anterior, o que
tecnicamente isentava a presidenta da acusação. No final, o presidente da
Câmara deu início a um dos mais de trinta processos de questionamentos do
mandato presidencial e interferiu para que a comissão criada para examiná-lo
tivesse maioria favorável à aprovação.
No início do segundo
semestre, era difícil apostar que a presidenta concluísse o seu primeiro ano de
mandato. O modelo de enfrentamento adotado pelo governo para enfrentar a crise
econômica e fiscal, caracterizado por forte arrocho na economia, afastava a sua
base social, acostumada a um projeto redistributivista, do qual muito esperavam
os setores mais carentes e a nova classe média, aquela que fora alçada a essa
condição justamente pelos três governos anteriores. A crise era, portanto, um
trunfo para os inconformados, ao trazer formidável desgaste para o governo. As
sondagens de opinião pública apontavam para um índice de popularidade que baixou
até 7%.
Estava tudo
combinadinho demais para dar certo. No final, com uma carta ridícula de cinco
anos de lamúrias, até o vice-presidente se bandeou para um projeto que se
revelava nitidamente golpista. Os setores populares entenderam que era possível
recuperar o governo para si. Afinal, em quem iria se ancorar a presidenta. Era
só ocupar as ruas, com um enfático apoio à continuidade do governo e a
exigência de que a gestão da economia tivesse novos rumos.
Muito contribuiu para
isso a desmoralização do sócio principal do golpe, o presidente da Câmara dos
Deputados. A mesma investigação de uma corrupção na Petrobras que era colada ao
governo acabou provando que ele seria o principal beneficiário. No final do
ano, já havia um processo contra ele em andamento no Judiciário e abria-se, na
própria Câmara, o de cassação do seu mandato.
Como manter a massa na
rua com o discurso de combate à corrupção se estava provado que o maior
corrupto estava de braços dados com o líder do movimento, o candidato derrotado
um ano antes?
As manifestações
golpistas foram perdendo fôlego na medida inversa do crescimento das lideradas
pelas organizações populares, especialmente a CUT e o MST. À última, em 13 de
dezembro, revelou-se esvaziada, além de se manchar com a nódoa da proposta de
intervenção militar, pois marcada justamente para o aniversário do AI 5, o
instrumento que promoveu o recrudescimento da ditadura em 1969. Três dias
depois, as ruas seriam tingidas de vermelho, em manifestações muito mais
expressivas que pediam o respeito ao mandato da presidenta e a correção dos
rumos da economia.
Era o fim do ano e os
sinais favoráveis ao golpe frustravam-se diante da ofensiva pela estabilidade.
Ao lado do eco das ruas, o STF julgou inconstitucional a
manobra pelo “Impeachment” do presidente da Câmara, inclusive estabelecendo que
a palavra final seria do Senado. Foi pedido o afastamento do presidente da
Câmara pela Procuradoria Geral da República e o PMDB, que dividia com o PT a
condição de um dos maiores partidos de sustentação ao governo, reagrupou-se,
escapando ao controle do presidente da Câmara e do vice-presidente. No meio
empresarial, surgiram importantes vozes contra o golpe (Anfavea e Abimaq),
cindindo a aparente unidade contra o governo. Quase simultaneamente, foi
aprovado o orçamento para 2016 pelo Congresso Nacional, na forma proposta pelo
governo, acalmando-se mais uma fonte de instabilidade. O ano se fechou com a
revelação do relator das contas do governo de que o seu parecer seria pela
aprovação.
Como
se essas notícias favoráveis não bastassem, a espada da Justiça voltou-se
contra o PSDB, que liderava a campanha golpista. Após vinte anos de hibernação
na Justiça, o seu ex-presidente, Eduardo Azeredo, foi condenado a mais de 20
anos de prisão e a operação Lava-Jato (da corrupção na Petrobras) mais de 10
denúncias de fatos praticados nos
governos do partido. Pra completar, vazamento de delação premiada da Lava-Jato
mostrou que o candidato do PSDB derrotado um ano antes foi beneficiado com
vultosa propina.
Mesmo que não
obtivessem nenhuma ênfase na cobertura da mídia, foi emblemático que,
justamente nesse momento, Argentina e Venezuela desses enfáticos exemplos do
que significa democracia. Derrotada no pleito para a sua sucessão por uma
margem próxima da metade da eleição brasileira de um ano antes, a presidenta
Kirchner reconheceu elegantemente o resultado. Dias depois, foi a vez do
presidente Maduro, da Venezuela, ter idêntico gesto ao reconhecer a derrota em
eleições parlamentares.
UM EXERCÍCIO
PARA TODOS
Agora, sou eu que
pergunto aos atentos jovens de 2065, véspera de 2066, lembrando o difícil ano
de 2015 e os anos que o precederam, protagonizados por membros do Legislativo,
do Judiciário, da Procuradoria da República, do Tribunal de Contas, do Poder
Executivo.
Quem, por suas ações, terá
sido tão inexpressivo, incolor, que ninguém lembre seu nome?
Quem continuará
lembrado, por gestos nobres, posições firmes e afirmativas, embasadas no
conhecimento e no compromisso, por impulsionar a história para o futuro, deixar
um saldo de serviços para a sociedade?
Quem será lembrado como
um elemento execrável, um pústula, terá cometido os atos mais abjetos, usado o seu
mandato somente para auferir vantagens pessoais ou mesmo a evidência momentânea
dos holofotes e manchetes.
Não citei nomes, mas
estiveram direta ou indiretamente presentes nessa história, entre outros, João
Augusto Nardes, Aroldo Cedraz, Aécio Neves, Eduardo Cunha, Michel Temer, Rodrigo
Janot, Dilma Rousseff, Luiz Inácio Lula da Silva, Ayres de Brito, Joaquim
Barbosa, Ricardo Lewandowski, José Antonio Toffoli, Teori Zavascki, Luís Roberto
Barroso, Gilmar Mendes.
Bem que os meus os
amados leitores poderiam tentar adivinhar. Teria muita curiosidade de ver quais
indicariam como esquecidos e, entre os demais, quais acham que serão lembrados
por um passado nobre ou repulsivo.
O BRASIL DE
2065
Comecei falando do
ambiente em que se dará minha conversa com os jovens, na virada de 2065 para
2066.
Os mais céticos
certamente duvidarão da possibilidade de haverem condições tão favoráveis em
nosso país.
Sei que muitos sonharão
e é notório que estou neste meio. Vivi os últimos 50 anos do Brasil. Inclusive
15 anos de ditadura revoltante, mas também uma sociedade em que 70% da
população habitavam no campo e, mesmo assim, as cidades maiores sofriam com
falta de água e luz, além de não terem saneamento básico. Eram impensáveis palavras
como machismo, integração racial, inclusão social, para citar só algumas. Só chegava
à universidade um em cada cem alunos que entravam no ensino fundamental.
Vivi a luta desses anos
e os sonhos que nos embalavam. Muitas lutas e vários insucessos, como lutar
pelas Diretas Já e me ver diante de Collor como o presidente eleito diretamente.
Por isso, fiquei embriagado com a chegada de Lula á Presidência em 2003, mesmo votando
em Leonel Brizola no primeiro turno de 1989 e só aderindo a Lula no segundo. Embora
quisesse mais, me emocionei com cada conquista dos últimos 13 anos.
Estamos começando a
caminhada para 2065. Já conheço quem está na luta para a construção do futuro. Convido
quem acreditar a se integrar também.
Feliz futuro pra vocês.
Fernando Tolentino
Tamo junto e misturado !
ResponderExcluirTamo junto e misturado !
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