Dois fatos se reúnem no mesmo dia, justamente a véspera da
comemoração da Proclamação da República, para evidenciar a que nível chega a
luta da sociedade brasileira. Para avançar na sua efetiva democratização ou
para conter as forças transformadoras.
Passados 37 desde a sua estranha morte, quando até o
comparecimento popular ao sepultamento teve que ser um ato popular de rebeldia,
já que as autoridades militares o vetavam, o corpo do ex-presidente João Goulart
é exumado para que se possa tentar, enfim, esclarecê-la.
Raríssimas pessoas – ao menos a que se dê o mínimo de crédito
– duvidam de que Jango foi assassinado. Ainda mais quando se considera o curto
período em que ocorreram as mortes dos três maiores líderes civis então na
oposição ao regime militar: Juscelino Kubitschek, em 22 de agosto de 1976;
Jango, no dia 6 de dezembro do mesmo ano; Carlos Lacerda, em 21 de maio de
1997. As mortes não foram aceitas como explicadas por suas famílias ou parte
considerável da opinião pública.
A novidade é a iniciativa de buscar provas de que o
ex-presidente tenha realmente sido envenenado e morto. O assunto foi proibido até
a democratização formal do Brasil, em 1984, e seguiu sem merecer atenção da
mídia ou das autoridades até muito recentemente, quando passou a ser encarado
com seriedade, especialmente a partir da constituição da Comissão da Verdade,
em maio de 2012.
A apuração da causa da morte de Jango é ainda mais simbólica
que as de JK e Lacerda. Afinal, foi ele quem teve o poder usurpado pelo regime militar
instaurado em 31 de março de 1964, com a execrável participação do Congresso
Nacional.
Antes da morte, Jango foi vítima de uma guerra midiática, que
buscou inclusive atingi-lo moralmente e à sua família, e querendo impregnar-lhe
a pecha de desonesto. O Inquérito Policial Militar (IPM) a que foi submetido concluiu
por acusar o ex-presidente de haver cometido crimes contra o Estado e a ordem
política e social, atribuindo-lhe "corrupção administrativa; aplicação
indevida do dinheiro público; concessão de vantagens, favores e privilégios a
apadrinhados e a organizações de classe que (...) conturbavam a vida nacional
(...); diluição do princípio de autoridade e solapamento das instituições".
As portas estão abertas para as apurações de denúncias sobre as
mortes de JK e Carlos Lacerda, que também teriam sido provocadas criminosamente.
Pode até ser tecnicamente impossível comprovar o
envenenamento de João Goulart, dado o tempo decorrido desde o óbito. Ou mesmo
que os dois outros líderes tenham sido vítimas de atentados criminosos. Mas a
perseguição da verdade se sobrepõe a isso, por assinalar que, finalmente, a
sociedade amadureceu politicamente, a liderança civil está estabelecida e o
passado está sendo revisto.
Enfim, ao menos no âmbito do Poder Executivo, chegamos à
República, no mais completo sentido do termo. Não há nada escondido à
sociedade. A coisa é pública (res publica).
Tudo indica que vai ser muito difícil o Poder Legislativo
chegar a isso pelo simples fato de que são os seus próprios membros que definem
as regras para essa transformação.
Tentativa até que houve. Dilma Rousseff ouviu as vozes das ruas
se levantarem em junho para exigir, além de políticas públicas em seu efetivo
favor, o fim da baixa política. Incorporou-se a esse clamor e empunhou medidas
concretas, com ações, entre outras, para melhorar a mobilidade urbana e a prestação
de serviços de saúde pública (Mais Médicos), mas também mostrou o caminho para
modernizar as práticas políticas. Propôs uma constituinte exclusiva para fazer
a Reforma Política. Sabendo que o Congresso não a convocaria, lançou o desafio:
que isso fosse feito por um plebiscito. O Congresso percebeu que estava acuado
e a maioria conservadora reagiu. Parte dela está na base de apoio do governo,
mas fez questão de mostrar que esse apoio tem limite. Não saiu reforma nenhuma.
Pois do outro lado da Praça dos Três Poderes, do Judiciário,
o mais conservador do Estado, em parceria com o Ministério Público, advém o
outro fato. O STF também aproveita o simbolismo da data para fazer o anúncio de
como vê o jogo do poder e pretende exercê-lo, se possível impondo-se aos demais.
Sem legitimidade no meio do povo, que lhe dedica níveis
constrangedores de descrédito, propõe-se a tomar um atalho, achando que se
legitimará pela bravata, já que comemorada pela grande mídia nacional.
Como não lhe renderiam homenagens em tais processos, dá de
ombros a casos sobejamente conhecidos de práticas ilegais para a manutenção do
poder, como a compra de votos para a reeleição de Fernando Henrique (em que não
faltaram confissões) e o mensalão
mineiro, para citar apenas dois.
Prefere a condenação dos que, simbolicamente, representam as
transformações iniciadas com a eleição de Lula, em 2002. Alguém pode até pôr na
conta de meras coincidências, mas são tantas as capazes de evidenciar uma
tramitação diferenciada no processo que não custa enumerar algumas. Com o voto
já conhecido, alterou-se a ordem dos trabalhos para que não se perdesse a manifestação
do ministro Cezar Peluso pela condenação dos indiciados, promovendo-se
inclusive o seu “fatiamento”. Antes já se tinha evitado o duplo grau de
jurisdição ao trazer diretamente o processo, com todos os seus réus, para o
STJ. Os prazos parecem ter sido explicitamente trabalhados, sendo isso
reclamado ostensivamente pela mídia, para que a culminância coincidisse com
momentos eleitorais. Provas deixaram de ser juntadas, levando à condenação de
uns e não citação de outros, como no caso de diretores do Banco do Brasil, em
que Henrique Pizolato acabou responsabilizado isoladamente. Por fim, à falta de
provas, utilizou-se a inédita teoria do “domínio do fato”, que teóricos alegam
ter inclusive sido aplicada indevidamente. No fim, pelo menos, não frutificou a
tentativa, quase desesperada de parte da Corte, para que se negasse o exame de
embargos infringentes. No fim, a emissão acelerada de ordens de prisão, a serem
cumpridas em pleno feriado, como se alguém pretendesse se evadir, negando-se ao
cumprimento da pena.
De concreto, conclui-se um processo eivado de dúvidas, que
não convence grande parte da sociedade. Talvez a maioria, a julgar por seu infrutífero
uso contra o Partido dos Trabalhadores em sucessivas eleições majoritárias.
Lula (uma vez), Dilma e, por último, Haddad (para não falar de candidaturas em
inúmeros estados e outros municípios), derrotaram nas urnas os arautos do
mensalão.
Fica o sabor de que a justiça virá daqui a alguns anos,
espera-se que não tantos como no caso da investigação de envenenamento de
Jango, quando a República inundar toda a Praça dos Três Poderes e chegar ao
Judiciário.
Fernando Tolentino
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