Quem é você?
Você
tem afinidades comigo? É baiano, homem, branco, alto? É um jovem, uma pessoa
madura ou quase um idoso? Você é culto? Ao menos alfabetizado? Não sei. Nada
sei. Um professor, um advogado, um trabalhador braçal. Talvez um policial,
daqueles que já me fizeram temê-lo, ao passar com seu ar arrogante, ao
afrontar-me ou a um amigo, ou daqueles que me deixaram grato por socorrer-me em
uma situação difícil. Que pena que não sei quem você é ou no mínimo como você
é.
Era
uma pessoa abastada ou um pobre coitado, um miserável a depender da caridade de
desconhecidos para assegurar a alimentação de cada dia. Passava o dia em um
escritório, em um balcão, uma fábrica, no cabo de uma enxada ou distribuindo
panfletos em um semáforo.
Gostaria
de saber se era cristão, budista, evangélico, se seguia o espiritismo,
kardecista ou alguma variante de crença que nos trouxeram os negros e se
tornaram tão comuns em minha terra. Que bom se pudesse ter convivido com você.
Terá sido você um bom homem, bom pai, bom filho, bom companheiro de sua mulher,
amigo de seus amigos? Será que tratou as crianças com carinho, gostava de
animais, de plantas, compunha poemas ou cantava bem?
É
terrível que não saiba nada de você. Nem mesmo se era um negro, um
homossexual...
Nada
sei de você e, mesmo assim, devo-lhe a vida. Devo-lhe quase tudo que me resta,
ainda que você tenha sido alguém que não mereceria minha aprovação para os seus
atos. Talvez até, em um momento de ira, possa ter lhe desejado mal. Fico a
imaginar se você teria cometido algum crime, talvez até com perversidade, a
ponto de que eu desejasse lhe ver punido com as piores penas. Quem sabe até com
a perda da vida!
Sei
somente que – em um momento qualquer ou ao cabo de muita reflexão – você decidiu
fazer o bem a alguém. É impressionante que, por algum motivo, que desconheço,
você tenha decidido isso, a ponto de concluir que não fazia diferença quem
mereceria a sua caridade. Para você, o importante foi que uma pessoa qualquer
seria beneficiada definitivamente por você.
Foi
um gesto extremo. Alguém – tão desconhecido para você quanto você é pra mim –
seria presenteado com uma parte de você! Ou, não sei, até mais que isso, várias
pessoas receberiam diferentes partes de você.
Quem
quer que você tenha sido, como tenha sido você ou a sua vida, sei que foi um
grande homem ou uma grande mulher.
Como
aquele desconhecido que você decidiu premiar, declaro com todas as minhas
forças que lhe devoto grande admiração. E grande gratidão. Você é um grande amigo
e eu o amo.
Mais,
entendi que é assim que devo olhar para os outros desconhecidos. Cada um deles
merece o meu amor como uma homenagem a você.
*Doar um órgão não é apenas uma forma de manter uma parte de si viva após a nossa morte.
É principalmente
um gesto de amor extremado, pois de amor a alguém, quem quer que seja. Significa permitir
que alguém alongue a sua vida e, assim, também propiciar maior felicidade para
os seus familiares, as pessoas que a amam.
Esse órgão que é doado
de nada servirá para quem perde a vida, mas significa a própria vida para quem
o recebe. É isso que faz a força do amor ao próximo do doador.
Vi meu irmão, Paulo,
ampliar a sua expectativa de vida e, mais que isso, com uma qualidade de vida
que não teria antes do transplante de fígado. O mesmo privilégio que, anos
atrás, teve a minha prima Mary Lou. Entendi que não só eles foram beneficiados
por essa caridade alheia. Todos nós temos o resto de nossas vidas para
comemorar esse gesto absolutamente espontâneo de pessoas que não conhecemos.
Se esse texto ajudar ao
menos uma pessoa a se declarar doador, eu já me sentirei recompensado.
Fernando Tolentino
Emocionante...
ResponderExcluirÉ muito lindo o texto. Traduz o que a gente sente quando tem em si uma parte que outra pessoa nos doou.
ResponderExcluirÉ um presente não digo divino, mas humano no melhor sentido da palavra!
Obrigada, Fernando, por escrever tão lindamente sobre este tipo de ato.
ML
Tive esse sentimento e não pude deixar de concluir que estão sendo premiadas pessoas que realmente merecem.
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