Quando jovens, todos temos muita pressa!
No meu tempo de estudante secundarista e
universitário, a inquietação era imensa.
Contestávamos os valores culturais,
especialmente a colonização a que o Brasil já era submetido. Nasceram daí o Cinema
Novo, a Bossa Nova, o Tropicalismo e tantas outras
manifestações de nova cultura ou contra-cultura. Contraditamos costumes e
derrubamos, por exemplo (mas não só), a inapelável exigência de virgindade como
exigência para a mulher casar. Contestamos fundamentos da autoridade paterna e
do distanciamento entre professores e alunos.
Perseguíamos cada vez maior liberdade,
justamente quando o Brasil vivia sob uma ditadura, que não tardou a se tornar
sanguinária. Mas não repelíamos apenas toda a forma de repressão, censura,
perseguição às manifestações libertárias. Aqueles jovens eram sinceramente
indignados com as condições sociais do País.
O retirante, banido de sua terra pela seca,
pela sede, pela miséria e pela fome era uma bofetada em cada um de nós.
Considerávamos simplesmente inaceitável a impossibilidade de acesso aos estudos
pelas classes (em tudo) marginalizadas. Quanto mais o analfabetismo, chaga que
contaminava parcela enorme da população! A morte prematura, especialmente dos
que com comiseração eram chamados de “anjinhos”, pequenos caixões brancos que desfilavam
diante de nós, mesmo nas capitais e cidades maiores. Moléstias como a doença de
chagas, que tragavam famílias inteiras de moradores em casas de taipa, a
tuberculose, a elefantíase, comum aos moradores dos “alagados”, do mangue, dos
mocambos. As mortes por verminoses ou diarreias.
Tudo isso nos agredia, pois nos sentíamos
responsáveis pelas condições de exclusão social. Era enorme a ansiedade por
mudarmos tudo isso.
Não dava para crer em mudanças por meio de
eleições. Dois partidos: o do poder e o criado para aparentar uma democracia.
Se esse partido figurante, o MDB, oferecia algum risco para a supremacia do
poder central, mandatos eram cassados ou as regras do jogo eram mudadas. Bem
simples assim.
E nós com uma pressa enorme para superar
aquilo tudo. Muitos acabamos concluindo que a saída era a revolução.
Às favas as eleições. E, já que iríamos fazer
a luta para tomar o poder, por que conquistar apenas a liberdade? E muitos
enveredamos por organizações que se propunham a implantar o socialismo no
Brasil. Em curto prazo, claro. Polop (depois POC), PCBR, PCdoB, MR 8, Var
Palmares, dissidências várias do PCB, AP (a minha Ação Popular) eram siglas que
corriam de boca em boca, disputando a arregimentação de militantes e espaços no
movimento estudantil.
Vários foram para a luta armada, determinados
a derrubar o regime e implantar o socialismo ou, no mínimo, um estado popular.
As organizações foram praticamente
exterminadas, milhares dos jovens mais comprometidos com a superação de miséria
da sociedade brasileira foram presos, torturados, mortos. Não poucos tiveram
que deixar o País. É claro que muita gente se acomodou. Seduzida pela fortuna
ou pelo sucesso, passou a considerar uma bobagem aquele passado. Um erro ou uma
brincadeira de crianças.
O regime, especialmente hegemônico após a
decretação do AI 5, impôs o seu modelo. Inacreditáveis ingressos de capital
estrangeiro – que gerariam uma enorme dívida externa – financiaram o que era
apresentado à sociedade como modelo de desenvolvimento e modernização.
É claro que houve crescimento econômico e
desenvolvimento tecnológico, com a implantação de lógica, diretrizes,
concepções e estilo importados. Não foram poucas as empresas que se
beneficiaram com esse processo. O capital especulativo dizimou as pequenas
organizações financeiras, surgindo imensos conglomerados. A economia
concentrou-se ainda mais nos centros urbanos, especialmente os do Sudeste.
Enquanto se expandia a fronteira agrícola e
devastavam-se os recursos florestais, o campo foi sendo contraditoriamente
esvaziado, multiplicando as populações marginalizadas das grandes cidades.
Devemos a esse processo o inchaço e a favelização de nossas regiões
metropolitanas.
Esse processo de urbanização foi avassalador,
invertendo-se o perfil de ocupação do espaço territorial ao cabo de pouco mais
de duas décadas: os 70% que viviam no campo minguaram para discretos 30%.
O Brasil se tornou um país com imensas
megalópoles: São Paulo beirando os 12 milhões de habitantes; Rio de Janeiro aproximando-se
6,5 milhões; Salvador, com 2,9 milhões; o Distrito Federal, já atingindo 2,8
milhões (cerca de 4 milhões, se considerado o seu entorno goiano e mineiro);
Fortaleza, com mais de 2,5 milhões; Belo Horizonte, com apenas 100 mil
habitantes a menos e Manaus, já ultrapassando os 2 milhões. Outras 14 capitais
ultrapassam a casa de um milhão, juntando-se a esse grupo as paulistas
Guarulhos e Campinas, assim como São Gonçalo, no Estado do Rio.
Esse quadro era apresentado aos brasileiros
como mais uma comprovação de modernidade e desenvolvimento. Mas a verdade é que
raros países do mundo convivem com uma realidade dessas.
Nos Estados Unidos, em que Nova Iorque chega
a 8 milhões de habitantes, o seu tradicional centro industrial, Detroit, é a
décima maior cidade, com 950 mil moradores. Paris é a única cidade francesa que
bate a marca de 1 milhão e Marselha (segunda maior cidade) tem a população equivalente
à de Teresina. Na Alemanha, são três: Berlim, Hamburgo e Munique (1,3 milhão). Ceilândia,
maior cidade satélite de Brasília, tem população equivalente à de Florença
(Itália) e à de Miami (Estados Unidos).
Nunca é demais lembrar que não se trata
somente de um problema de tamanho dessas cidades, mas principalmente do caráter
abrupto do processo de urbanização.
Chegaram às cidades pessoas despreparadas
para a vida em centros urbanos, sem habilitação para o mercado de trabalho e facilidade
para conviver com os padrões de vida de cidades. Basta lembrar o forte
significado da unidade familiar que haviam deixado no meio rural. A família é
uma unidade produtiva no campo e uma unidade de consumo na cidade. As migrações
raramente traziam famílias para as cidades, mas quase sempre apenas um de seus
membros. Em muitos casos, não se deram propriamente migrações. Pequenas cidades
passaram a ter só havia mulheres e crianças, os homens deslocando-se pelo
Brasil para aproveitar épocas de plantio e colheita ou constituindo o exército
de “barrageiros”, gente com ocupação transitória em grandes obras.
Com níveis consideráveis de desemprego e a
inexistência de programas sociais para recepcionar ou amparar as novas
populações marginalizadas de nossas imensas cidades, é fácil concluir o impacto
em níveis de morbidade e problemas de segurança.
Esse foi um dos aspectos mais perversos do novo
Brasil, herdado dos longos anos de ditadura. E que provocaria efeitos
duradouros, impactando fortemente a vida das cidades.
Ninguém diga que é fácil adaptar cidades a
essa realidade, suas redes de serviços urbanos (água, eletricidade, rede
viária, transportes) ou estruturas de saúde, educação, formação de mão de obra.
Para não falar da face não menos visível, a de insegurança, irmã siamesa de uma
sociedade socialmente desestruturada e sem condições razoáveis de sobrevivência.
É chocante ver alguém, diante dos grandes
problemas atuais, dizer que isso não havia durante a ditadura, sem atentar quem
foi responsável por chegarmos a tal ponto.
COMO
ENCARAR ESSA HERANÇA?
Assim se deu o processo de democratização,
com uma sociedade desorganizada, sindicatos frágeis e pouco representativos das
categorias profissionais, além de partidos que, na quase totalidade dos casos
eram apenas arranjos eleitoreiros.
A sociedade de alguma forma se viu com a
liberdade nas mãos e sem entender o que poderia fazer com aquilo.
As mudanças no modelo político tiveram o seu
próprio ritmo, extremamente lento, e o modo brasileiro de se assegurar que as
transições se dão sem que o poder mude de mãos.
Mal saído de um quadro político com dois
partidos fortemente controlados por um regime de força, que fazia o arremedo de
democracia com o uso sistemático de regras casuísticas, o Brasil ingressou em
um processo constituinte, encavalado com o funcionamento de um Congresso eleito
segundo as regras anteriores, até incluindo a presença de senadores que apenas
cumpriam a segunda metade de seus mandatos.
De tanto ansiar por influir decisivamente na
vida nacional, ali foi produzida uma Constituição moldada para o parlamentarismo.
Quando o sistema foi derrotado no plebiscito de 1993, o texto constitucional
não sofreu qualquer reparo, permanecendo o Legislativo com enorme capacidade de
submeter decisões de governo.
O meio político e as elites econômicas se
ambientaram rapidamente. A criação de mais de meia centena de legendas
partidárias casou-se perfeitamente com o modelo de eleições parlamentares, com
o voto apurado proporcionalmente, mas o sufrágio realizado pelos nomes dos
candidatos. Somado a isso o fato de que as coligações são amplamente livres,
sem qualquer limite de número de siglas ou mesmo coerência nos diferentes
níveis em disputa. Assim, as agremiações partidárias podem juntar-se em um
arranjo para apoiar candidatos majoritários locais (governadores e senadores),
outro no apoio aos que disputam a Presidência da República, um terceiro para a
eleição de deputados estaduais (distritais no Distrito Federal) e mais um para
concorrerem a deputados federais.
Essas composições sequer chegam ao
conhecimento dos eleitores, que também não sabem como serão aproveitados os
seus votos. Raríssimos deles têm noção que o voto dado ao seu candidato, caso
ele não seja eleito, será somado para permitir a eleição de outro do mesmo
partido ou coligação.
O fato se agrava pelo fato de que, fora os
dos partidos com nitidez ideológica (como PT, PCdoB, PSol e poucos outros),
raros candidatos usam identificação partidária em sua propaganda eleitoral.
Durante a campanha, também não é cobrada
coerência dos candidatos com os compromissos assumidos por seus partidos de
apoio a campanhas majoritárias, sendo comum identificar os que pedem votos para
nomes presumivelmente adversários.
SEUS
CANDIDATOS NÃO APOIAM QUEM VOCÊ QUER ELEGER!
Passada a eleição, a coligação é desfeita. Os
partidos e os parlamentares que eles tenham eleito não têm qualquer compromisso
de apoiar governadores ou presidente com os quais tenham feito campanha!
Começa a temporada de caça. Presidente e
governadores eleitos são praticamente obrigados a correr atrás de apoio parlamentar
para governar. São definidas as moedas de troca, poucas vezes reivindicações
aceitáveis para a sociedade, quase nunca compromissos programáticos.
Essa é a discussão colocada na atual campanha
com o nome de “nova política”.
Uma proposta sem dúvida encantadora, tal a
justa revolta da população com o preço que supõe ser pago por esse apoio
parlamentar, seja nos governos estaduais ou no nível federal, provocando
imensas mobilizações populares em junho de 2013.
A presidenta Dilma Rousseff respondeu aos
manifestantes com a proposta de cinco pactos: pela responsabilidade fiscal; a
proposta de uma Constituinte exclusiva para tratar da reforma política
(simplesmente desconsiderada pelo Legislativo); pela mobilidade urbana (R$ 50
bilhões foram acrescentados aos R$ 93 bilhões já investidos no setor desde 2011);
a destinação de 100% dos recursos dos royalties do petróleo para a
educação (o Congresso aprovou a medida, mas reservando 25% para a saúde); o
Programa Mais Médicos, para resolver nacionalmente o problema da atenção básica
à saúde.
Dilma aproveitou, portanto, as manifestações
de junho, ao perceber que não eram principalmente contra o governo, mas uma
denúncia enfática da necessidade de aprofundamento nas mudanças. Por mais que
se tentasse dar a ideia do inverso, não foi um movimento por menos Estado, mas
justamente por um Estado mais comprometido com a mudança e as carências básicas
da população.
O seu governo e o de Lula fizeram até o ponto
em que seria possível com uma presença progressista minoritária no Congresso
Nacional. Foi muito. E é exatamente isso que me faz concluir que, com a
terrível lentidão das transformações em nosso país, consegui ver realizado
muito do sonho de minha adolescência: a universalização da educação, inclusive
com o acesso à universidade, quando não à pós-graduação, de considerável número
de filhos de pais humildes; a perspectiva, em curto prazo, de universalização
da atenção básica de saúde; a garantia de uma renda mínima, que assegure a
sobrevivência das pessoas não incluídas no mercado; a desconcentração regional
da atividade econômica; o acesso de praticamente toda a sociedade à alimentação,
à moradia e a bens de consumo e serviços antes privativos dos ricos e da alta
classe média; aproximação do pleno emprego e melhor nível de remuneração, por
meio da valorização do salário mínimo; maior respeito pelas manifestações
culturais e religiosas diferenciadas da maioria da sociedade; maior respeito aos
direitos da mulher e dos negros; reconhecimento internacional. Enfim,
conquistas de que a sociedade não pode abrir mão, até por virem (pelas contas
dos meus anos) atrasadas em pelo menos meio século, e que estão atravessados
nas gargantas de quem sempre se beneficiou, com exclusividade, dos frutos do
trabalho de todos.
Iniciada a disputa eleitoral, a dobradinha
Eduardo Campos – Marina Silva tratou de assenhorear-se da grita de junho,
alegando que representava aquela proposta da “nova política”. Beneficiada com a
comoção decorrente da trágica morte de Campos, Marina assumiu-se como o
verdadeiro arauto dessa bandeira. E o fez no melhor estilo demagógico, descendo
ao nível de consciência das massas. Ou seja, tentando massificar a impressão de
que isso seria possível pela mera declaração de princípios de quem viesse a
ocupar o Palácio do Planalto. Alardeou que comporia o seu governo por um mero
processo de análise de currículos, selecionando “os bons” de todas as posições
políticas.
Criou-se, assim, uma conjunção de fatores que
a impulsionou para o limiar de uma vitória no primeiro turno.
É claro que sua candidatura foi alvejada por
uma sucessão de fatos que desmentiram cabalmente o seu perfil: a descoberta da
ainda não explicada história de um avião sem dono, o que levara Eduardo Campos
e mais seis pessoas à morte, e que, agora se sabe, era frequentemente usado por
Marina; a presença na coordenação de sua campanha de uma herdeira do Itaú, por
sinal o principal sustentáculo financeiro de sua aventura política; o fato de
ser a sua presença determinante em questões tão importantes quanto a autonomia
do Banco Central e a redução do papel dos bancos públicos; o compromisso com a
flexibilização das leis trabalhistas, inclusive com a liberalização da
terceirização; o passa-moleque do pastor Malafaia, por ela aceito com
assustadora subserviência em questões de interesse da comunidade homossexual, entre
tantos outros eventos.
Que bom! Nada tão pedagógica quanto a
dissecação imposta pelo debate eleitoral.
Mas é indispensável enfatizar a mentira da “nova
política” na questão da relação com o Poder Legislativo.
Diante de uma Constituição com sério viés
parlamentarista, como governar sem base de apoio substancial no Congresso
Nacional? Representando um partido e liderando uma coligação que não prometem
eleger sequer um décimo da composição da Câmara e do Senado, além de não
aparentar possibilidade de eleger um conjunto minimamente representativo de
governadores?
Dos três candidatos mais cotados, até por não
dispor de qualquer capital de representatividade política além de uma possível
votação, Marina tenderia a ser a mais submissa às negociações com as raposas da
velha política.
Isso pode ter sido
justamente o que a fez, em determinado momento, a favorita da fina flor do
grande capital brasileiro, a musa dos grandes grupos de mídia. Frágil, sem
expressão política própria, sem sustentação parlamentar, nas mãos de quem vocês
acham que cairia para poder ao menos manter-se à frente do governo?
Essa gente sabe o que
representa uma nova derrota política. São insistentes os sinais de que um novo
governo liderado pelo PT pode não ficar apenas na satisfação de anseios
populares por inclusão social. Ao contrário, pode sustentar-se na ampla
aceitação da sociedade para impor mudanças de fundo e que tiram muito mais que
o sono dos eternos controladores da política nacional, como a reforma política
e a regulamentação dos meios de comunicação.
Constatando a
incapacidade de derrotar Dilma Rousseff com uma candidatura marcadamente à
direita, enamorou-se por Marina, por sua imagem popular, mas principalmente pela
enorme capacidade de dobrar a coluna. Como no episódio Malafaia e ao assimilar
teses dos grandes grupos econômicos, mesmo quando representando a mais clara
confrontação com o seu tradicional perfil de ambientalista, como se deu com os
ruralistas que antes enfrentava.
A base conservadora de sua campanha não
oferece qualquer expectativa de que Marina viesse a assumir o perfil populista
de governar com as massas nas ruas, acuando permanentemente os demais poderes,
como poderia parecer crível para o eleitorado mais ingênuo. Disso, resta apenas
a leitura equivocada de alguns jovens sonhadores, os que sobraram à frente de
seu palanque depois dos sucessivos recuos exibidos nesse mês e meio de
campanha.
Melhor seria Marina assumir que a “nova
política” foi só uma estratégia de publicidade eleitoral para seduzir aqueles
segmentos da juventude tão apressados como os dos revolucionários da minha
adolescência, mas que, hoje, não tem razões para lançar-se em algum sonho
revolucionário.
Fernando
Tolentino
Belo texto, prezado Tolentino. Só tem raposa velha na nova política da Marina
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